terça-feira, 14 de setembro de 2010

Conto - O dito por não dito - I

Capítulo I
Era uma pequena cidade, igual a tantas outras; igual a todas afinal, independentemente do seu tamanho e da sua localização geográfica.

Tal como as outras, esta pequena cidade continha em si todos os ingredientes necessários para a sua subsistência actual: tinha pessoas ocas e ambiciosas, tinha pessoas sérias e honestas, ainda que, destas, poucas, muito poucas, tinha edifícios pomposos e elitistas, tinha casas que transbordavam pobreza e miséria. Tinha estruturas públicas que afinal não eram tão públicas assim, tinha estátuas e monumentos que homenageavam vá-se lá saber quem ou o quê. Tinha infra-estruturas deficientes que, como não poderia deixar de ser, beneficiavam uns e prejudicavam outros. E tinha, obviamente, os seus homens de poder, uns corruptos e outros nem tanto, os políticos e os homens de negócios, essa minoria que, à sombra dos interesses pessoais, puxa os cordelinhos do destino dos ignorantes e dos incautos. Como em toda a parte, nesta cidade também se mostrava a obra feita para encobrir a “obra” que se ia fazendo.

Com papas e bolos se enganam os tolos! É antigo o ditado mas sempre tão actual o seu significado! E a cidadezinha tinha, portanto, ostentação e empáfia quanto bastem para transmitir aos cidadãos, aos fúteis e aos ignorantes claro está, a ideia de uma cidade pautada pela modernidade e pelo progresso. Já o mesmo não se passava no que tocava a valores: imperavam ainda os mesmos pelos que se regiam os cro-magnons há cerca de trinta mil anos atrás.

Eram uma constante as críticas e as conspirações de mesa de café, que nunca passam disso mesmo; a coragem que magicamente aparece ante meia dúzia de imperiais, o cortar na casaca alheia que sempre se finaliza com um “Oh, pá, vê lá, não digas nada senão ainda me arranjas problemas”; a bajulação e a aparente vassalagem prestadas aos políticos e às ditas pessoas importantes com toda a parafernália inerente: “se me conseguires isto, arranjo-te aquilo”, “é só fechares os olhos desta vez e vais ver que não te arrependes”, “meu caro, faça-me este favor e verá como isso só lhe trará vantagens”. Como em todas as cidades, um oculto vaivém de “luvas”, um secreto rodopiar de “sacos” e o esboçar de sorrisos que nasciam dos lodos do egocentrismo e das entranhas da ambição de poder, constituíam o quotidiano citadino.

Sentado na esplanada do café que diariamente frequentava, quanto mais não fosse para ter oportunidade de se mostrar solidário e atento no convívio com os seus concidadãos, o presidente da câmara desta pequena cidade olhava em volta com ar satisfeito. A coisa corria-lhe de feição. O partido dele, na oposição, ganhava terreno eleitoral, o que não era difícil dada a conjuntura presente, e o povo, que tem memória curta e comportamento robotizado, se nas anteriores eleições tinha votado no partido do governo, nas próximas votaria no seu partido. Para além disso, na sua autarquia tudo rolava pacífica e serenamente. Ninguém se queixava e por conseguinte nada interferia nos sistemas implantados.

- Bom dia Sr. Presidente! E então, a coisa rola?

- Bom dia – respondia ele com ar de quem sabe que é reverenciado.

- E então diga lá – perguntava curiosamente o cidadão enquanto se sentava algo estrepitosamente na mesa do presidente – o arquitecto Salgado já tem o projecto aprovado?
- O gabinete ainda não me informou acerca disso. Passe pela câmara mais logo, vou ver o que posso fazer.

- Óptimo, Sr. Presidente, óptimo – dizia enquanto esfregava as mãos sapudas que faziam jus à sua estatura pequena e redonda. – É preciso andar p’ra frente. As condições que temos agora para construir o empreendimento são as melhores. Há dificuldades e sabe que quando há dificuldades é mais fácil negociar. Materiais e mão-de-obra, é tudo mais fácil, o senhor sabe.

- Passe na câmara mais logo – concluiu o presidente pousando a chávena do café que tinha acabado de tomar e fazendo menção de meter a mão no bolso do casaco para tirar dinheiro.

- Não, não, Sr. Presidente, deixe estar. Tenho muito gosto em pagar-lhe o café – dizia o cidadão remexendo atabalhoadamente nos bolsos à procura de trocos.

- Bom, obrigado. Então até logo – e dizendo isto levantou-se dirigindo-se ao aglomerado de edifícios autárquicos construídos com o quinhão dos salários de muitas pessoas anónimas cuja única função na sociedade parecia ser a de produzir dinheiro para a classe política malgastar.

Ao entrar no gabinete a secretária seguiu-o até à mesa de trabalho que sem dúvida condizia com o cargo da pessoa que a ocupava: ampla, maciça, algo majestosa e com um toque de luxo, elementos imprescindíveis para poder confraternizar em pé de igualdade com os pares e para intimidar e apequenar os simples e os humildes.

- Sr. Presidente, acabou de chegar este e-mail – disse ela num tom de voz decidido e aparentando um ligeiro desagrado. Estendendo-lhe o e-mail perguntou com secreta esperança – quer que me ocupe disso? O senhor tem os ofícios para rever e assinar e há uma data de processos que requerem a sua atenção imediata…

- Não, deixe cá ver – disse ele pegando na folha de papel e dispondo-se a lê-la – vamos lá ver o que é isto.

E baixando os olhos, pousou-os no papel e iniciou a leitura. A secretária aguardava, calada e em pé, perscrutando com o olhar as expressões que o rosto do presidente ia fazendo à medida que avançava na leitura.

- Huuum – o que é que esta quer? Não tenho a certeza de estar a entender isto muito bem! O que é que ela quer dizer com “um exemplo inequívoco do apoio que uma autarquia pode dar à arte, à verdadeira arte, que é concebida sem segundas intenções”?

A secretária, sempre silenciosa, estava agora completamente focada nas expressões faciais do presidente, que iam do incrédulo até ao espantado, passando pela surpresa, pela dúvida e pela hesitação.

- Diz ela “Gostaria de ter o prazer de o cumprimentar e de constatar que, tal como eu, também o Sr. Presidente, apoliticamente, imparcialmente, apoia a arte pela arte, independentemente de todos os protagonismos e interesses que um tal acto possa suscitar!” – ó Ângela – interpelou ele a secretária – recebemos algum convite do gajo da junta?

- Que eu saiba não Sr. Presidente, mas também não é para admirar… - insinuou ela.

- Olhe, vou responder aqui a esta fulana que terei o maior prazer em aceitar o convite dela e que lá estarei na junta para a inauguração da exposição. E pode ir, não preciso de mais nada.

A secretária saiu fechando a porta atrás de si. Recostado na cadeira de executivo em pele preta e oscilando lentamente para a direita e para a esquerda, uma mão em gesto interrogativo acariciando o queixo e a outra segurando a folha de papel, o presidente lia e relia o conteúdo daquele e-mail.

- Será que a gaja está a gozar comigo ou está a falar a sério? – pensou. – Tem aqui partes que não percebo… não consigo perceber se está a ser sincera ou se me está a insultar com subtileza… Bom – disse pousando o papel e concluindo em voz alta – a junta é da oposição e como sempre os gajos não me convidaram. O convite desta fulana é uma boa desculpa para lá ir e marcar a minha presença.

Começou a redigir a resposta, aceitando o convite e tentando deixar bem patente e sem qualquer interpretação dúbia que:

- … tenho por hábito participar em todas as iniciativas realizadas no concelho – dizia ele em voz baixa à medida que ia batendo nas teclas – ou fora dele, quando envolvem pessoas do concelho, sempre que para tal sou convidado. Só raramente não vou e faço-me representar se, por qualquer motivo estiver ausente ou não posso, de nenhuma forma, estar presente. – continuava ele a teclar.

O texto ia fluindo e à medida que escrevia, sentia que devia dar toda a ênfase possível ao aspecto da aceitação de convites:

– …. uma vez que sempre faço questão de marcar presença… - e lá ia prosseguindo.


(continua)

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