Capítulo V
Sexta-feira, vinte e uma e trinta. A mulher de meia-idade chega ao local da exposição. As únicas pessoas que lá estavam a essa hora eram o porteiro e o doutor Cicrano. A mulher de meia-idade, com alguma ansiedade estampada no rosto, cumprimentou-o:
- Olá, boa noite! Então, está tudo a postos?
- Olá. Sim, sim, está tudo – confirmou ele com um olhar inexpressivo.
- E a sua irmã? Ela vem, não vem? Teria muito gosto em conhecê-la! – perguntou a mulher de meia-idade.
- Sim, deve ir – respondeu ele com a mesma inexpressividade do olhar plasmada na voz.
Entretanto a mulher de meia-idade dirigiu-se à sala de exposições e, agora com o agrado estampado no rosto, concluiu que tudo estava a postos. Aos poucos foram chegando, primeiro os artistas e depois familiares e amigos dos artistas. A mulher de meia-idade, enquanto falava alegremente com as pessoas presentes, ia olhando para a porta na expectativa de ver o presidente da câmara. Depois começou a estranhar a ausência de jornalistas. Era deveras estranho! Pelo menos um dos jornais locais deveria ter aparecido, a exemplo do que tinha acontecido na exposição na junta de freguesia dois anos antes – pensava ela. O tempo ia passando e nem sinal do presidente, dos jornalista e da irmã do outro.
Circulando por entre familiares e amigos dos artistas, subitamente a atenção dela foi captada por uma conversa no mínimo espantosa.
- É inadmissível – dizia indignada uma senhora – eu nunca teria aceitado que alguém me dissesse que obras é que eu deveria expor! Mas afinal quem é aqui o artista?
A mulher de meia-idade, não conseguindo conter-se, perguntou:
- Desculpe intrometer-me, mas o que é que se passou afinal?
- O que se passou foi que houve censura às obras dos artistas, – desabafava ela com acrescida indignação – os quadros expostos foram escolhidos pelo fulano que andava a organizar a exposição e três ou quatro deles nem sequer foram expostos!
A surpresa tomou intensamente conta do rosto da mulher de meia-idade e também ela, agora que começava a ter certezas quanto às suas desconfianças, sentiu crescer em si a indignação. Mas quem diabo se julgava aquela criatura desconchavada, aquele aspirante a crítico, aquele nariz empinado “tomador de ares de entendido”, para se atrever a semelhante coisa? – ia pensando ela enquanto se dirigia com passo enérgico à dita criatura.
- Quer fazer o favor de me explicar porque carga d’água é que decidiu o que se ia expor? Estamos outra vez com a mania de que somos críticos de arte, é? – explodiu ela perante o ar surpreendido e algo nervoso do doutor Cicrano.
- Eu falei com o artista em causa… - começou ele a dizer.
- Mas você não está a perceber que no que toca às obras você não tem que opinar nada, e muito menos decidir? – barafustava ela visivelmente irritada perante tão prepotente atitude.
- Eu tenho um curso de arte – lançou ele como arma de arremesso, como que a pretender intimidar, como se aquela afirmação o ilibasse totalmente do abjecto ataque de autoridade que o tinha assolado aquando da montagem da exposição.
- Você não tinha esse direito, não tem esse direito – cortou ela.
Visivelmente sem argumentos, comprovadamente sem capacidade de contraposição, patente no rosto, nos gestos a impossibilidade de se explicar, a criatura foi procurar refúgio e conforto na sensatez, nos princípios e educação irrepreensíveis dos artistas. “Eles eram pessoas bem mais tranquilas que a mulher de meia-idade. Essa era insuportável, um autêntico furacão indominável” – pensava o doutorzito enquanto balbuciava, procurando apoio para a razão que julgava ter, frases básicas e inconsistentes.
Entretanto os ânimos acalmaram. A mulher de meia-idade, readquirida a serenidade, constatou, desta vez sem qualquer sombra de dúvida, que não se tinha enganado: a exposição tinha tido lugar única e exclusivamente pela tenacidade e insistência dela. A vontade do pelouro, tivesse ela partido do seu ilustre desconhecido vereador ou dos seus incompetentes funcionários, era obviamente a de não a realizar. E tudo fizeram para que assim fosse: silenciaram o presidente, protelaram o quanto puderam a sua realização, ludibriaram hipocritamente a mulher de meia-idade durante dois anos.
O presidente, nitidamente um joguete nas mãos de vereadores e quiçá de funcionários, não apareceu. Tal como todos os políticos, disse e escreveu “tenho por hábito participar em todas as iniciativas … sempre que para tal sou convidado. Só raramente não vou e faço-me representar se…estou ausente ou não posso, de nenhuma forma estar presente” e depois não fez nada disso. Geralmente, as figuras de topo em qualquer hierarquia, não importa a dimensão dela, são meramente ornamentais e por isso mesmo desprovidas de carácter. Aparentam mandar muito mas são manipuladas a bel-prazer por aqueles que ilusoriamente lhes são subalternos. São figuras de temperamento amorfo e descaracterizado, munidas de uma importância balofa que elas próprias se atribuem. Impulsionadas por aqueles que as rodeiam, por aqueles que raramente dão a cara e que na realidade detêm o poder, essas figuras dançam, consciente e inconscientemente, ao ritmo dos seus caracteres fortes, porém vis e desprezíveis.
(continua)
Sexta-feira, vinte e uma e trinta. A mulher de meia-idade chega ao local da exposição. As únicas pessoas que lá estavam a essa hora eram o porteiro e o doutor Cicrano. A mulher de meia-idade, com alguma ansiedade estampada no rosto, cumprimentou-o:
- Olá, boa noite! Então, está tudo a postos?
- Olá. Sim, sim, está tudo – confirmou ele com um olhar inexpressivo.
- E a sua irmã? Ela vem, não vem? Teria muito gosto em conhecê-la! – perguntou a mulher de meia-idade.
- Sim, deve ir – respondeu ele com a mesma inexpressividade do olhar plasmada na voz.
Entretanto a mulher de meia-idade dirigiu-se à sala de exposições e, agora com o agrado estampado no rosto, concluiu que tudo estava a postos. Aos poucos foram chegando, primeiro os artistas e depois familiares e amigos dos artistas. A mulher de meia-idade, enquanto falava alegremente com as pessoas presentes, ia olhando para a porta na expectativa de ver o presidente da câmara. Depois começou a estranhar a ausência de jornalistas. Era deveras estranho! Pelo menos um dos jornais locais deveria ter aparecido, a exemplo do que tinha acontecido na exposição na junta de freguesia dois anos antes – pensava ela. O tempo ia passando e nem sinal do presidente, dos jornalista e da irmã do outro.
Circulando por entre familiares e amigos dos artistas, subitamente a atenção dela foi captada por uma conversa no mínimo espantosa.
- É inadmissível – dizia indignada uma senhora – eu nunca teria aceitado que alguém me dissesse que obras é que eu deveria expor! Mas afinal quem é aqui o artista?
A mulher de meia-idade, não conseguindo conter-se, perguntou:
- Desculpe intrometer-me, mas o que é que se passou afinal?
- O que se passou foi que houve censura às obras dos artistas, – desabafava ela com acrescida indignação – os quadros expostos foram escolhidos pelo fulano que andava a organizar a exposição e três ou quatro deles nem sequer foram expostos!
A surpresa tomou intensamente conta do rosto da mulher de meia-idade e também ela, agora que começava a ter certezas quanto às suas desconfianças, sentiu crescer em si a indignação. Mas quem diabo se julgava aquela criatura desconchavada, aquele aspirante a crítico, aquele nariz empinado “tomador de ares de entendido”, para se atrever a semelhante coisa? – ia pensando ela enquanto se dirigia com passo enérgico à dita criatura.
- Quer fazer o favor de me explicar porque carga d’água é que decidiu o que se ia expor? Estamos outra vez com a mania de que somos críticos de arte, é? – explodiu ela perante o ar surpreendido e algo nervoso do doutor Cicrano.
- Eu falei com o artista em causa… - começou ele a dizer.
- Mas você não está a perceber que no que toca às obras você não tem que opinar nada, e muito menos decidir? – barafustava ela visivelmente irritada perante tão prepotente atitude.
- Eu tenho um curso de arte – lançou ele como arma de arremesso, como que a pretender intimidar, como se aquela afirmação o ilibasse totalmente do abjecto ataque de autoridade que o tinha assolado aquando da montagem da exposição.
- Você não tinha esse direito, não tem esse direito – cortou ela.
Visivelmente sem argumentos, comprovadamente sem capacidade de contraposição, patente no rosto, nos gestos a impossibilidade de se explicar, a criatura foi procurar refúgio e conforto na sensatez, nos princípios e educação irrepreensíveis dos artistas. “Eles eram pessoas bem mais tranquilas que a mulher de meia-idade. Essa era insuportável, um autêntico furacão indominável” – pensava o doutorzito enquanto balbuciava, procurando apoio para a razão que julgava ter, frases básicas e inconsistentes.
Entretanto os ânimos acalmaram. A mulher de meia-idade, readquirida a serenidade, constatou, desta vez sem qualquer sombra de dúvida, que não se tinha enganado: a exposição tinha tido lugar única e exclusivamente pela tenacidade e insistência dela. A vontade do pelouro, tivesse ela partido do seu ilustre desconhecido vereador ou dos seus incompetentes funcionários, era obviamente a de não a realizar. E tudo fizeram para que assim fosse: silenciaram o presidente, protelaram o quanto puderam a sua realização, ludibriaram hipocritamente a mulher de meia-idade durante dois anos.
O presidente, nitidamente um joguete nas mãos de vereadores e quiçá de funcionários, não apareceu. Tal como todos os políticos, disse e escreveu “tenho por hábito participar em todas as iniciativas … sempre que para tal sou convidado. Só raramente não vou e faço-me representar se…estou ausente ou não posso, de nenhuma forma estar presente” e depois não fez nada disso. Geralmente, as figuras de topo em qualquer hierarquia, não importa a dimensão dela, são meramente ornamentais e por isso mesmo desprovidas de carácter. Aparentam mandar muito mas são manipuladas a bel-prazer por aqueles que ilusoriamente lhes são subalternos. São figuras de temperamento amorfo e descaracterizado, munidas de uma importância balofa que elas próprias se atribuem. Impulsionadas por aqueles que as rodeiam, por aqueles que raramente dão a cara e que na realidade detêm o poder, essas figuras dançam, consciente e inconscientemente, ao ritmo dos seus caracteres fortes, porém vis e desprezíveis.
(continua)
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