Tinha-se passado quase um ano. A cidadezinha continuava pacificamente enraizada na sua rotina.
Quase nada tinha mudado: os rituais sociais eram os mesmos, as discussões de café repetiam o de sempre, o trânsito às horas de ponta continuava infernal e os cães, sem e com dono, continuavam a defecar pacificamente nos passeios sem que alguém parecesse importar-se ou até se tocasse pelo facto das caganitas serem do seu próprio animal de estimação. De vez em quando lá se ouvia uma imprecação proferida entre dentes: - Merda, lá borrei os sapatos todos! – mas a coisa ficava por aí. Aliás como tudo fica por aí. Passa-se um pano ou uma folha de jornal para limpar os vestígios da porcaria que se calcou e passada a fúria inicial da constatação de um facto desagradável e tão rapidamente quanto o cheiro desaparece, o conformismo volta, impávido, a instalar-se nos corações empedernidos e nas mentes mentecaptas do cidadão robotizado.
A mulher de meia-idade, sentada em frente ao seu laptop, como tantas vezes fazia, antes de começar a escrever relembrou mentalmente e com um sorriso aquele fim de tarde de inauguração na junta de freguesia. Inspirada pelas lembranças agradáveis, começou a escrever:
"Estimado Sr. Presidente, esperando que se recorde de mim… “ e lá ia escrevendo embalada por um convite que lhe pareceu sincero, espontâneo, verdadeiro. “Num mundo que se vê cada vez mais insensível, indiferente ao sofrimento dos seres humanos, num mundo que insiste em mergulhar profundamente nas trevas e que não deseja sequer vislumbrar a sensatez e a formosura da claridade, num mundo de crescente crueldade, do salve-se quem puder, nem que isso signifique espezinhar das formas mais hediondas o nosso semelhante, é preciso que a sensibilidade de uns poucos, que o seu sentido de preocupação e de seriedade, que a sua inequívoca e verdadeira intenção de mostrar o lado belo, criativo e humano do homem possa florescer! Ainda que em pequena escala, ainda que num pequeno círculo, o importante é que a semente seja lançada à terra!
"E foi precisamente esta oportunidade de semear que o Sr. Presidente tão simpática e altruisticamente ofereceu aos artistas que dentro de si transportam o desejo fervente de uma humanidade melhor, mais sensível, mais justa; e esse desejo deles manifesta-se, cresce e expande-se em cada obra que criam, em cada mensagem que, cada um à sua maneira, transmitem; ao convidá-los para expor no fórum do concelho, o Sr. Presidente ofertou, não só a eles mas a todos, um solo fértil para que a semente de um mundo melhor cresça e prolifere!
"É, pois, neste âmbito, que venho de novo incomodá-lo com as minhas palavras, pedindo-lhe que, tão prontamente quanto as suas ocupações lho permitam, me indique qual seria a melhor data para a realização da exposição…”
A resposta não se fez esperar. Dois dias depois o chefe do gabinete da presidência faz saber à mulher de meia-idade que o presidente “de imediato despachou o assunto ao Vereador do Pelouro da Cultura para tentar arranjar uma data em que fosse possível realizar-se a exposição que sugere.”
- A exposição que sugere? Que sugere? Mas eu não sugeri nada. Foi o presidente que convidou… – pensava ela enquanto lia e relia o e-mail tentando perceber o verdadeiro valor e sentido da palavra “sugere”.
Passadas duas semanas, a mulher de meia-idade, a tal que entre risotas e boa disposição tinha sido nomeada representante dos artistas, recebe um e-mail de um funcionário do pelouro da cultura a solicitar que ela o contactasse para marcarem uma data para a calendarização da exposição. Podia ler-se no e-mail “gostaria que entrasse em contacto comigo no sentido de combinar uma data para nos encontrar-mos no forum, para ter opurtunidade de conhecer os trabalhos que pretende expor, assim como discutir pormenores para a calendarização e produção de uma exposição.” Os erros ortográficos eram tão gritantes que não só fariam cair o Carmo e a Trindade como fariam corar todas as pedras da calçada, e a mulher de meia-idade deu por ela a questionar-se sobre como era possível trabalhar-se numa área ligada à arte e assassinar uma língua de forma tão contundente. Sim, porque para ela, as palavras constituíam um tesouro e deviam ser respeitadas. Aliás, deviam ser respeitadas tanto as palavras como a palavra.
A reunião foi agendada telefonicamente e o diálogo tido foi insípido e insensível. A frase infeliz nessa altura pronunciada pelo funcionário – “nós costumamos trabalhar com artistas” – era já indubitável prenúncio do lastimável desfecho que um convite presidencial, ou melhor, uma “escorregadela” presidencial, viria a ter. Mas não nos adiantemos aos acontecimentos! A mulher de meia-idade à hora marcada, ou melhor, um pouco antes da hora marcada, encontrava-se já no local combinado. Convidaram-na a sentar-se e pediram-lhe para aguardar. Agradeceu e sentou-se. Estava um pouco cansada e tinha andado à pressa para não se atrasar, já que era sua convicção que o tempo dela era tão importante quanto o dos outros e portanto tinha por hábito não se fazer esperar. Era uma questão de respeito pelos outros, dizia ela muitas vezes.
Esperou talvez uns vinte minutos. Então, com um andar algo indolente e desconchavado, lá apareceu o funcionário do pelouro da cultura. Com um ar estudado que exibia talvez para tentar transmitir uma segurança e uma superioridade que na realidade não tinha, intento esse perfeitamente inútil aos olhos de um qualquer atento observador, o funcionário deu início ao seu discurso. Em cada palavra tentava deixar ficar patente o distanciamento que pretendia criar. Nada, no entanto, que afectasse a mulher de meia-idade que, sem papas na língua e sem preconceitos e inibições, lhe estendia, a pedido dele, o portfólio de um dos artistas.
O funcionário, pegando nele, fez um notório esforço para, desta vez, dar ares inequívocos de entendido. Esforço inútil, diga-se. Folheou-o lentamente e com uma expressão que ele supunha ser de especialista na matéria, e com a mesma lentidão, exclama:
- Isto não é um trabalho profissional. Mal tem qualidade para ser exposto.
- Desculpe-me, mas o senhor é crítico de arte? – indagou a mulher de meia-idade com um tom que podia já deixar adivinhar um certo sarcasmo.
- Não, não sou – apressou-se a dizer o funcionário.
- Ah, bom – disse a mulher de meia-idade sorrindo e atirando as mãos para trás num gesto de despreocupação – então o que acabou de dizer não passa da sua opinião pessoal! Assim sendo, podemos continuar – incitou ela.
Depois deste pequeno incidente que por certo desagradou a ambos, e a cada um por razões diferentes, a impossibilidade de comunicação estabeleceu-se firmemente e ainda mais se solidificou quando a mulher de meia-idade lhe disse que não gostava da pintura de um reconhecido pintor e o funcionário ficou com o ar aparvalhado de quem é beato até ao tutano e é apanhado desprevenido ante uma infame blasfémia. A mulher de meia-idade ainda tentou explicar-lhe que os seres humanos sendo iguais em natureza, não o são porém em matéria de gostos, e que a beleza não pode ser definida por decreto mas reside nos olhos de quem a vê, mas tudo foi em vão. É que quem estuda a cartilha e se autolimita, acreditando piamente que o conhecimento universal e absoluto está nela contido, jamais conseguirá pensar pela própria cabeça e ter o dom do discernimento.
Os tempos que se seguiram foram tempos difíceis. Começaram pela mulher de meia-idade a tentar obter uma data para a exposição e o funcionário empenhado em não lha dar. Ela telefonava a perguntar se já havia uma data e ele dizia-lhe que todavia não e pedia-lhe para ela voltar a ligar no mês seguinte. Aconteceu duas ou três vezes e a mulher de meia-idade sentia-se algo exasperada.
Cansada da falta de informação e da inércia em que o pelouro da cultura parecia estar imerso, resolveu escrever ao presidente. Talvez ele conseguisse agilizar as coisas já que tinha sido ele o autor do convite. Se bem o pensou melhor o fez, e para sua surpresa, não recebeu do presidente qualquer resposta. Silêncio total. Como se o e-mail que ela mandou nunca tivesse existido. Depois dos telefonemas foram os e-mails, muitos, que ela mandava directamente para o chefe desse funcionário e aos quais não recebia resposta. E se recebia, eram sempre respostas evasivas e cuja única finalidade era indiscutivelmente a de empalear.
(continua)
A mulher de meia-idade, sentada em frente ao seu laptop, como tantas vezes fazia, antes de começar a escrever relembrou mentalmente e com um sorriso aquele fim de tarde de inauguração na junta de freguesia. Inspirada pelas lembranças agradáveis, começou a escrever:
"Estimado Sr. Presidente, esperando que se recorde de mim… “ e lá ia escrevendo embalada por um convite que lhe pareceu sincero, espontâneo, verdadeiro. “Num mundo que se vê cada vez mais insensível, indiferente ao sofrimento dos seres humanos, num mundo que insiste em mergulhar profundamente nas trevas e que não deseja sequer vislumbrar a sensatez e a formosura da claridade, num mundo de crescente crueldade, do salve-se quem puder, nem que isso signifique espezinhar das formas mais hediondas o nosso semelhante, é preciso que a sensibilidade de uns poucos, que o seu sentido de preocupação e de seriedade, que a sua inequívoca e verdadeira intenção de mostrar o lado belo, criativo e humano do homem possa florescer! Ainda que em pequena escala, ainda que num pequeno círculo, o importante é que a semente seja lançada à terra!
"E foi precisamente esta oportunidade de semear que o Sr. Presidente tão simpática e altruisticamente ofereceu aos artistas que dentro de si transportam o desejo fervente de uma humanidade melhor, mais sensível, mais justa; e esse desejo deles manifesta-se, cresce e expande-se em cada obra que criam, em cada mensagem que, cada um à sua maneira, transmitem; ao convidá-los para expor no fórum do concelho, o Sr. Presidente ofertou, não só a eles mas a todos, um solo fértil para que a semente de um mundo melhor cresça e prolifere!
"É, pois, neste âmbito, que venho de novo incomodá-lo com as minhas palavras, pedindo-lhe que, tão prontamente quanto as suas ocupações lho permitam, me indique qual seria a melhor data para a realização da exposição…”
A resposta não se fez esperar. Dois dias depois o chefe do gabinete da presidência faz saber à mulher de meia-idade que o presidente “de imediato despachou o assunto ao Vereador do Pelouro da Cultura para tentar arranjar uma data em que fosse possível realizar-se a exposição que sugere.”
- A exposição que sugere? Que sugere? Mas eu não sugeri nada. Foi o presidente que convidou… – pensava ela enquanto lia e relia o e-mail tentando perceber o verdadeiro valor e sentido da palavra “sugere”.
Passadas duas semanas, a mulher de meia-idade, a tal que entre risotas e boa disposição tinha sido nomeada representante dos artistas, recebe um e-mail de um funcionário do pelouro da cultura a solicitar que ela o contactasse para marcarem uma data para a calendarização da exposição. Podia ler-se no e-mail “gostaria que entrasse em contacto comigo no sentido de combinar uma data para nos encontrar-mos no forum, para ter opurtunidade de conhecer os trabalhos que pretende expor, assim como discutir pormenores para a calendarização e produção de uma exposição.” Os erros ortográficos eram tão gritantes que não só fariam cair o Carmo e a Trindade como fariam corar todas as pedras da calçada, e a mulher de meia-idade deu por ela a questionar-se sobre como era possível trabalhar-se numa área ligada à arte e assassinar uma língua de forma tão contundente. Sim, porque para ela, as palavras constituíam um tesouro e deviam ser respeitadas. Aliás, deviam ser respeitadas tanto as palavras como a palavra.
A reunião foi agendada telefonicamente e o diálogo tido foi insípido e insensível. A frase infeliz nessa altura pronunciada pelo funcionário – “nós costumamos trabalhar com artistas” – era já indubitável prenúncio do lastimável desfecho que um convite presidencial, ou melhor, uma “escorregadela” presidencial, viria a ter. Mas não nos adiantemos aos acontecimentos! A mulher de meia-idade à hora marcada, ou melhor, um pouco antes da hora marcada, encontrava-se já no local combinado. Convidaram-na a sentar-se e pediram-lhe para aguardar. Agradeceu e sentou-se. Estava um pouco cansada e tinha andado à pressa para não se atrasar, já que era sua convicção que o tempo dela era tão importante quanto o dos outros e portanto tinha por hábito não se fazer esperar. Era uma questão de respeito pelos outros, dizia ela muitas vezes.
Esperou talvez uns vinte minutos. Então, com um andar algo indolente e desconchavado, lá apareceu o funcionário do pelouro da cultura. Com um ar estudado que exibia talvez para tentar transmitir uma segurança e uma superioridade que na realidade não tinha, intento esse perfeitamente inútil aos olhos de um qualquer atento observador, o funcionário deu início ao seu discurso. Em cada palavra tentava deixar ficar patente o distanciamento que pretendia criar. Nada, no entanto, que afectasse a mulher de meia-idade que, sem papas na língua e sem preconceitos e inibições, lhe estendia, a pedido dele, o portfólio de um dos artistas.
O funcionário, pegando nele, fez um notório esforço para, desta vez, dar ares inequívocos de entendido. Esforço inútil, diga-se. Folheou-o lentamente e com uma expressão que ele supunha ser de especialista na matéria, e com a mesma lentidão, exclama:
- Isto não é um trabalho profissional. Mal tem qualidade para ser exposto.
- Desculpe-me, mas o senhor é crítico de arte? – indagou a mulher de meia-idade com um tom que podia já deixar adivinhar um certo sarcasmo.
- Não, não sou – apressou-se a dizer o funcionário.
- Ah, bom – disse a mulher de meia-idade sorrindo e atirando as mãos para trás num gesto de despreocupação – então o que acabou de dizer não passa da sua opinião pessoal! Assim sendo, podemos continuar – incitou ela.
Depois deste pequeno incidente que por certo desagradou a ambos, e a cada um por razões diferentes, a impossibilidade de comunicação estabeleceu-se firmemente e ainda mais se solidificou quando a mulher de meia-idade lhe disse que não gostava da pintura de um reconhecido pintor e o funcionário ficou com o ar aparvalhado de quem é beato até ao tutano e é apanhado desprevenido ante uma infame blasfémia. A mulher de meia-idade ainda tentou explicar-lhe que os seres humanos sendo iguais em natureza, não o são porém em matéria de gostos, e que a beleza não pode ser definida por decreto mas reside nos olhos de quem a vê, mas tudo foi em vão. É que quem estuda a cartilha e se autolimita, acreditando piamente que o conhecimento universal e absoluto está nela contido, jamais conseguirá pensar pela própria cabeça e ter o dom do discernimento.
Os tempos que se seguiram foram tempos difíceis. Começaram pela mulher de meia-idade a tentar obter uma data para a exposição e o funcionário empenhado em não lha dar. Ela telefonava a perguntar se já havia uma data e ele dizia-lhe que todavia não e pedia-lhe para ela voltar a ligar no mês seguinte. Aconteceu duas ou três vezes e a mulher de meia-idade sentia-se algo exasperada.
Cansada da falta de informação e da inércia em que o pelouro da cultura parecia estar imerso, resolveu escrever ao presidente. Talvez ele conseguisse agilizar as coisas já que tinha sido ele o autor do convite. Se bem o pensou melhor o fez, e para sua surpresa, não recebeu do presidente qualquer resposta. Silêncio total. Como se o e-mail que ela mandou nunca tivesse existido. Depois dos telefonemas foram os e-mails, muitos, que ela mandava directamente para o chefe desse funcionário e aos quais não recebia resposta. E se recebia, eram sempre respostas evasivas e cuja única finalidade era indiscutivelmente a de empalear.
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