sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Nascer

Já vivi tantos anos e não sei o que é nascer. Ou melhor, saber até sei, não pelo facto de ter nascido uma vez há tantos anos atrás mas porque, sabe-se lá porquê, nasço todos os dias. Alguns chamam a isto esperança mas francamente não reconheço a este pequeno fenómeno tal atributo. É que se fosse esperança isso significava que era a infelicidade, ou o infortúnio, ou o desespero ou até mesmo a estupidez que me faziam nascer de novo. Significava que teimosamente insistia em voltar a nascer até que as condições me fossem mais convenientes. Mas é que não é nada disso; eu nasço porque sim, e nem sequer é porque quero, e não trago comigo razões do dia anterior. Até porque quando acordo de manhã estou mais interessada no que vou descobrir nesse dia do que propriamente no que abandonei quando morri na noite anterior.

Mas há os que não nascem. Nem tão-pouco morrem. Fazem de uma média de sete décadas, que é o tempo que pensam que têm entre nascer e morrer, um contínuo desfiar de mágoas e resignações, de tentativas e frustrações, de penas e pesares. E depois, de dia para dia, como se de troféus se tratasse, fazem questão de nada deixar para trás nem esquecer e enchem a albarda até abarrotar. Como hão-de depois envelhecer graciosa e dignamente se insistem em transportar semelhante carga pela vida fora sem a largar por um segundo? É que não há corpo que aguente tal peso e consiga, ao mesmo tempo, manter a discreta elegância da inteligência.

Confesso que, às vezes, morro albardada. Sinto-lhe o peso nas molas do colchão quando me deito. Mas nascer, aí sim, nasço sempre leve e desnudada. A roupa de ontem ficou pendurada nas costas da cadeira à espera de ser lavada e preparada para um eventual uso futuro. Tal como com a albarda que ficou, cheiinha como estava, no mundo da transição, que é o mundo que faz a ponte entre o nascer e o morrer, entre o pôr-do-sol e a alvorada. É onde se despeja a carga, onde se deixa armazenada e ajeitada, pronta para um dia qualquer, se preciso for, fazer uso dela.

Mexo-me bem melhor, desenvencilho-me bem melhor, penso bem melhor acordando desalbardada: é que começo outra vez do nada. E portanto descubro o novo com olhos novos, com pensamentos por pensar, com uma mente fresquinha e ampla, totalmente pronta para partir à descoberta.

Assim vou, dia após dia, nascendo e morrendo. E uma ocasião qualquer, talvez numa noite de Inverno que me faça aconchegar ainda mais no leito, por certo não vou estranhar, tantas vezes repetido aquele ciclo, quando realmente morrer.

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