quarta-feira, 21 de março de 2012

Deixai-me em Paz

Quereis que pense o que pensais,
que aja como agis, viva como viveis.
De dedo apontado, semblante carregado em prenúncio d’ameaça,
a cada hora mo lembrais. Pois perdeis o vosso tempo!
Não faço tenções de provar tal tormento.
Prefiro cair em desgraça a reinar no atoleiro que criastes,
a fingir submissão a um deus inventado,
a ser escrava de um sistema desumano, absurdo, calculado.
Julgais acaso que sou espantalho, a quem encheis de palha
e logo abandonais à sua sorte, esperando que faça o vosso trabalho?
Pois se de nada preciso, nem de palha sequer,
p’ra vos dizer com todo o siso que tudo o que fazeis não é viver!
Quando muito vegetais, andais p’ra lá e p’ra cá, sem rumo, sem norte.
 
E não me venhais com essas tretas
de que arderei no inferno por infame e blasfema,
que com a mesma régua vos está medida e aplicada igual pena
não no reino do Demo, mas aqui mesmo, no vosso limbo terreno.
Ao contrário de vós, eu mesma talho a minha sorte!

Deixai-me em paz com as crenças, com o certo e o errado,
causadores que são das desavenças, da guerra, do desaguisado.
Não me peçais nem à alma nem à razão quaisquer pressas,
que eu, sem elas, sem vós e sem um deus,
sem líder, sem sistema, sem qualquer simbólica cor,
sem toda a inútil parafernália que criais,
sem falar, sem olhar, sem me mover, sem ruído, conflito ou dissabor,
a cada segundo viro o mundo às avessas
e vivo como quero, penso, livre e plenamente, sem meças!

                               Isabel G



No Dia Mundial da Poesia, transcrevo os meus dois poemas favoritos de dois dos meus poetas preferidos:



 


Da Minha Ideia do Mundo


Da minha ideia do mundo
Caí...
Vácuo além de profundo,
Sem ter Eu nem Ali...

Vácuo sem si-próprio, caos
De ser pensado como ser…
Escada absoluta sem degraus…
Visão que se não pode ver 

Além-Deus! Além-Deus! Negra calma...
Clarão de Desconhecido...
Tudo tem outro sentido, ó alma,
Mesmo o ter-um-sentido… 

                         Fernando Pessoa




  
 
Cântico Negro
 

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe  

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...  

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?  

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...  

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.  

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...  

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...  

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.  

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí! 

                                      José Régio

quarta-feira, 14 de março de 2012

Prisioneiros Voluntários


Tela de René Cabodi


“Eu penso que é importante compreender que a liberdade está no princípio e não no fim. Pensamos que a liberdade é algo a alcançar, que a libertação é um estado de espírito a obter gradualmente através do tempo, através de várias práticas; mas para mim, esta é uma abordagem totalmente errada. A liberdade não é para ser alcançada, a libertação não é uma coisa a obter. A liberdade, ou libertação, é um estado de espírito que é essencial à descoberta de qualquer verdade, de qualquer realidade; por conseguinte, ela não pode ser um ideal; ela tem de existir mesmo de início. Sem liberdade no princípio não podem existir momento de compreensão directa porque todo o pensamento está então limitado, condicionado. Se a sua mente estiver atada a qualquer conclusão, a qualquer experiência, a qualquer forma de conhecimento ou crença, ela não é livre; e uma mente assim não pode perceber o que é a verdade.”
Jiddu Krishnamurti



Assim há que começar, assim há que partir à descoberta da vida. Com a liberdade, intacta e imaculada, como única bagagem.
Mas são poucos os que assim modestamente ataviados põem pés a caminho pela vida fora. Os outros, os muitos, esses enchem-se de bagagem. Malas e maletas, sacos e sacas, até baús que trazem a reboque de um passado que nem sequer é deles.
Desde tenra idade que os enchem de bagagem. “Ouviste rapaz? O meu clube é o maior! Tens de ser do meu clube!” repete o pai entusiasticamente quase até à exaustão. “Meu filho, já disseste as tuas orações? Olha que nosso senhor castiga-te!” admoesta a mãe a um ritmo diário.
À medida que o tempo decorre, a liberdade vai sendo mutilada de diversas maneiras. “Grande vitória, a do nosso partido, hein pá?! Temos que lutar pela liberdade!” exclama o pai enquanto dá ao rapaz uma orgulhosa palmada nas costas. “Sabes filha, tens de ter estatuto social se queres que te respeitem!” aconselha ciosamente a mãe.
Entre conselhos e deveres, entre tradições e obrigações, entre crenças e dogmas, entre patriotismos e idolatrias, o indivíduo consente placidamente em que lhe encham malas e baús. E quanto mais bagagem lhe acrescentam, mais liberdade lhe retiram. A vida transforma-se-lhe num contínuo e ensurdecedor ruído exterior, num movimento dirigido e condicionado, num incessante emalar de conceitos, preconceitos, ideias e ideologias prontos a consumir, nunca tocados pelo questionamento, nunca abordados pela dúvida, nunca explorados sob ângulos distintos. Arrasta-se o indivíduo penosamente pela vida fora, vergado pelo peso da bagagem, e em vão procurando por entre a tralha acumulada, que sempre lhe serviu de prisão, a liberdade que um dia possuiu sem se dar conta.
Milhões de indivíduos procuram fora o que dentro de si truncaram.
Mas alguns, muito poucos, tendo-se apercebido da inigualável importância da liberdade, pegaram nela quando ainda quase intacta, e lançando fora as poucas tralhas que todavia carregavam, com ela pavimentaram o caminho da sua vida.
Enquanto ao homem de excessiva bagagem, a cada passo que dá, parece afunilar-se-lhe o caminho, ao homem imbuído de liberdade, perde-se-lhe a vista, qual vertigem, num horizonte infinito e sempre mais amplo.

terça-feira, 6 de março de 2012

As gentes do deserto



Não são apenas as terras do interior que sofrem do flagelo da desertificação. É todo o interior. O interior humano. Fogem as gentes do natural, do sadio interior e aglomeram-se no irreal, no doentio exterior.

Estão secas as gentes. Se lhes perguntamos algo respondem-nos com aspereza, com custo, com esforço, como uma engrenagem mal oleada obrigada a funcionar. Mas sempre distantes, sobranceiras, como se valorizando a resposta e menosprezando o inquiridor. Se tivermos a sorte de que a elas lhes seja um dia favorável, quiçá lhes vejamos esboçado, ainda que logo se desvaneça, o início de um sorriso. Mas se foi o azar que lhes tocou ao levantar, será um esgar desagradavelmente azedo e antipático que acompanhará uma resposta geralmente monossilábica e desprovida de qualquer contacto visual. Não há comunicação, permuta, palavra ainda não pronunciada que o olhar, porque os olhos estão nos olhos, já adivinhou.
Estão secas as gentes. Dir-se-ia que as afinidades inerentes à espécie exercem a função contrária e em vez de galvanizarem, repelem. Mas haveria que ver como lhes brilham e se lhes dilatam as pupilas perante trivialidades inanimadas: um objecto caro, um agasalho de marca, um espectáculo ou um jogo.
São estéreis as gentes. Interpeladas, agem e reagem da mesma forma. Ajustam-se, solícitas e na perfeição, aos padrões vigentes. Automatizam-se e estereotipam-se com o mesmo à vontade com que atiram ao chão um caroço ou uma beata. Cegas, mente embotada, nada geram no interior, mas exteriormente proliferam como erva daninha. Áridos de princípios, carecidos de valores, infrutíferos e improdutivos, albergando sentimentos emurchecidos e sequiosos, são estes os interiores desérticos e monocromáticos das gentes de hoje.
Giram e rodopiam entre irrealidades, feitas piões que alguém lançou, as gentes de hoje. Envolvem-se e revolvem-se entre palavras velhas cujo sentido primeiro se perdeu no folhear do tempo. Enchem cérebros e mentes de ideias e teorias, feitas poeirentos repositórios de pensamentos alheios. Espolinham-se na matéria grotesca do exterior, feitas alvos do alheamento e da perversão.
Povoam-se as ilusões, desertificam-se as almas.
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