terça-feira, 6 de março de 2012

As gentes do deserto



Não são apenas as terras do interior que sofrem do flagelo da desertificação. É todo o interior. O interior humano. Fogem as gentes do natural, do sadio interior e aglomeram-se no irreal, no doentio exterior.

Estão secas as gentes. Se lhes perguntamos algo respondem-nos com aspereza, com custo, com esforço, como uma engrenagem mal oleada obrigada a funcionar. Mas sempre distantes, sobranceiras, como se valorizando a resposta e menosprezando o inquiridor. Se tivermos a sorte de que a elas lhes seja um dia favorável, quiçá lhes vejamos esboçado, ainda que logo se desvaneça, o início de um sorriso. Mas se foi o azar que lhes tocou ao levantar, será um esgar desagradavelmente azedo e antipático que acompanhará uma resposta geralmente monossilábica e desprovida de qualquer contacto visual. Não há comunicação, permuta, palavra ainda não pronunciada que o olhar, porque os olhos estão nos olhos, já adivinhou.
Estão secas as gentes. Dir-se-ia que as afinidades inerentes à espécie exercem a função contrária e em vez de galvanizarem, repelem. Mas haveria que ver como lhes brilham e se lhes dilatam as pupilas perante trivialidades inanimadas: um objecto caro, um agasalho de marca, um espectáculo ou um jogo.
São estéreis as gentes. Interpeladas, agem e reagem da mesma forma. Ajustam-se, solícitas e na perfeição, aos padrões vigentes. Automatizam-se e estereotipam-se com o mesmo à vontade com que atiram ao chão um caroço ou uma beata. Cegas, mente embotada, nada geram no interior, mas exteriormente proliferam como erva daninha. Áridos de princípios, carecidos de valores, infrutíferos e improdutivos, albergando sentimentos emurchecidos e sequiosos, são estes os interiores desérticos e monocromáticos das gentes de hoje.
Giram e rodopiam entre irrealidades, feitas piões que alguém lançou, as gentes de hoje. Envolvem-se e revolvem-se entre palavras velhas cujo sentido primeiro se perdeu no folhear do tempo. Enchem cérebros e mentes de ideias e teorias, feitas poeirentos repositórios de pensamentos alheios. Espolinham-se na matéria grotesca do exterior, feitas alvos do alheamento e da perversão.
Povoam-se as ilusões, desertificam-se as almas.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...
Licença Creative Commons
This obra is licensed under a Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Não a obras derivadas 2.5 Portugal License.