quarta-feira, 14 de março de 2012

Prisioneiros Voluntários


Tela de René Cabodi


“Eu penso que é importante compreender que a liberdade está no princípio e não no fim. Pensamos que a liberdade é algo a alcançar, que a libertação é um estado de espírito a obter gradualmente através do tempo, através de várias práticas; mas para mim, esta é uma abordagem totalmente errada. A liberdade não é para ser alcançada, a libertação não é uma coisa a obter. A liberdade, ou libertação, é um estado de espírito que é essencial à descoberta de qualquer verdade, de qualquer realidade; por conseguinte, ela não pode ser um ideal; ela tem de existir mesmo de início. Sem liberdade no princípio não podem existir momento de compreensão directa porque todo o pensamento está então limitado, condicionado. Se a sua mente estiver atada a qualquer conclusão, a qualquer experiência, a qualquer forma de conhecimento ou crença, ela não é livre; e uma mente assim não pode perceber o que é a verdade.”
Jiddu Krishnamurti



Assim há que começar, assim há que partir à descoberta da vida. Com a liberdade, intacta e imaculada, como única bagagem.
Mas são poucos os que assim modestamente ataviados põem pés a caminho pela vida fora. Os outros, os muitos, esses enchem-se de bagagem. Malas e maletas, sacos e sacas, até baús que trazem a reboque de um passado que nem sequer é deles.
Desde tenra idade que os enchem de bagagem. “Ouviste rapaz? O meu clube é o maior! Tens de ser do meu clube!” repete o pai entusiasticamente quase até à exaustão. “Meu filho, já disseste as tuas orações? Olha que nosso senhor castiga-te!” admoesta a mãe a um ritmo diário.
À medida que o tempo decorre, a liberdade vai sendo mutilada de diversas maneiras. “Grande vitória, a do nosso partido, hein pá?! Temos que lutar pela liberdade!” exclama o pai enquanto dá ao rapaz uma orgulhosa palmada nas costas. “Sabes filha, tens de ter estatuto social se queres que te respeitem!” aconselha ciosamente a mãe.
Entre conselhos e deveres, entre tradições e obrigações, entre crenças e dogmas, entre patriotismos e idolatrias, o indivíduo consente placidamente em que lhe encham malas e baús. E quanto mais bagagem lhe acrescentam, mais liberdade lhe retiram. A vida transforma-se-lhe num contínuo e ensurdecedor ruído exterior, num movimento dirigido e condicionado, num incessante emalar de conceitos, preconceitos, ideias e ideologias prontos a consumir, nunca tocados pelo questionamento, nunca abordados pela dúvida, nunca explorados sob ângulos distintos. Arrasta-se o indivíduo penosamente pela vida fora, vergado pelo peso da bagagem, e em vão procurando por entre a tralha acumulada, que sempre lhe serviu de prisão, a liberdade que um dia possuiu sem se dar conta.
Milhões de indivíduos procuram fora o que dentro de si truncaram.
Mas alguns, muito poucos, tendo-se apercebido da inigualável importância da liberdade, pegaram nela quando ainda quase intacta, e lançando fora as poucas tralhas que todavia carregavam, com ela pavimentaram o caminho da sua vida.
Enquanto ao homem de excessiva bagagem, a cada passo que dá, parece afunilar-se-lhe o caminho, ao homem imbuído de liberdade, perde-se-lhe a vista, qual vertigem, num horizonte infinito e sempre mais amplo.

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