terça-feira, 14 de setembro de 2010

Conto - O dito por não dito - VI

Capítulo VI

- Fui ver a exposição que me recomendaste mas estava fechada – informou um amigo da mulher de meia-idade.

-
Fechada? Não é possível. Vai estar patente ao público até ao final da próxima semana – respondeu ela admirada.

-
Pois, mas eram seis da tarde quando lá fui – insistiu o amigo – e apesar de na net o horário de fecho indicado ser às sete, garanto-te que estava fechada. Fui embora sem conseguir vê-la!

N
o dia seguinte resolveu ir ao local da exposição. Quando lá chegou verificou que não estava afixada, na entrada, uma única indicação sobre a exposição, ou sobre os horários de funcionamento da mesma. Nada, rigorosamente nada! Quem por ali passasse jamais diria que dentro do edifício estava a decorrer algum evento cultural. Entrou e dirigiu-se à sala de exposições. Para sua surpresa a sala estava às escuras. Olhou em redor e não se via vivalma. Tinha entretanto verificado também que nenhum jornal havia noticiado o que quer que fosse a respeito da exposição. Já quase certa de que a coisa afinal era bem pior do que aquilo que pensava, no dia seguinte a mulher de meia-idade telefonou à irmã do doutor Cicrano:

-
Bom dia Isaura! Como está? Olhe, diga-me uma coisa: de certeza que chegou a fazer o mailing da exposição a convidar as pessoas habituais, os jornalistas, etc?

-
Ah, isso não é comigo, é com o gabinete de imprensa – apressou-se ela a dizer num timbre de voz que não disfarçava uma determinada atrapalhação.

-
Ah, pois, com o gabinete de imprensa! – repetiu algo cinicamente a mulher de meia-idade – Então obrigada. Muito bom dia – disse pousando o telefone. Sim, senhor! Que rico grupinho se juntou: uns mentem, outros enganam, outros fazem figuras tristes! – pensou ela, ponderando se havia de ficar contente por não se ter enganado nas suas deduções, ou triste por tomar consciência da existência de tantos seres humanos indignos de tal denominação!

V
oltou a pegar no telefone e desta vez ligou para o gabinete de imprensa da câmara:

-
Bom dia! Eu gostaria de saber por que razão é que esse gabinete não fez a divulgação da exposição que está a decorrer no fórum.

-
Desculpe? Exposição que está a decorrer? Mas que exposição? – perguntou o homem inequivocamente surpreendido. – Não temos conhecimento de nada – afirmou ele.

-
Mas eu acabei de falar com uma funcionária do pelouro da cultura que me disse que o gabinete de imprensa é que teria que ter feito a divulgação – contrapôs ela.
- Desculpe minha senhora, mas isso não é bem assim – contrariou educadamente o homem do outro lado da linha. – Nós só procedemos à divulgação de qualquer evento se o pelouro da cultura nos informar dele. Como compreenderá, se nada nos disserem, nós não vamos certamente adivinhar… - prosseguiu ele.

-
Claro, claro. Tem toda a razão – assentiu a mulher de meia-idade. – Quer dizer então que não foram informados por parte do pelouro da cultura sobre a exposição que está a decorrer?

-
Exactamente – corroborou o homem.

-
E portanto o gabinete não informou a imprensa nem enviou convites para os nomes constantes na lista de pessoas a convidar? – insistiu ela.

-
Obviamente que não – reconfirmou ele. – No que respeita a este gabinete essa exposição é inexistente!

A
gradecendo ao homem educado e simpático que tão bem a atendeu, a mulher de meia-idade pousou o telefone e desta vez a tristeza profunda instalou-se-lhe mesmo na alma! O que levaria o ser humano à mentira, à perfídia, à má acção deliberada e consciente? Seria a sua própria natureza ou seria apenas a sua ignorância? Seria a ânsia de poder ditada pela constatação da própria insignificância ou seria a total inconsciência perante o bem e o mal? Que incapacidade teria o ser humano para conseguir compreender que se hoje vitima amanhã será vitimado? Pondo de lado a fealdade dos actos, a argúcia das artimanhas, a mesquinhez dos propósitos e a falta de respeito pelos semelhantes, eu diria que o homem, em termos de valores e princípios, é todavia uma criança e não tem a mínima consciência do dano que as suas brincadeiras e os seus brinquedos podem causar – concluiu ela tristemente em pensamento.

E
ntretanto a exposição termina e mais uma vez aquele aparente clima de normalidade se instala na cidadezinha, palco e exemplo vivo da ignomínia e da mediocridade do ser humano. E se eu, um perfeito energúmeno, alguém que aos vossos olhos não passará de um ser desprezível e abjecto, não lhes tivesse contado este conto, provavelmente os caros leitores iriam, mais cedo ou mais tarde, cair em análoga esparrela ou continuar enganados a respeito de alguns dos vossos conterrâneos. Pelos menos assim, quando desconfiarem de que algo não está a correr como devia, podem sempre lembrar-se deste conto e tomar cautela. Sim, porque caros leitores, não creiam que vida real está assim tão longe da ficção!

S
enão reparem: em quantas cidades, em quantas câmaras, de quantos países do mundo podemos encontrar presidentes mentirosos, peritos em afirmar que não disseram o que disseram, hipócritas e fracos como o deste conto? Quantos vereadores do pelouro da cultura, manipuladores e sub-reptícios, silenciosos e ardilosos, podemos encontrar por esse mundo fora, como o do nosso conto? Quantos doutores Cicranos, papagaios repetitivos, ufanos de um valor que não têm, convencidos de uma superioridade inexistente e com personalidades inconsistentes não conseguiremos nós encontrar iguaizinhos ao deste conto? Quantas funcionárias sem qualquer noção de sensatez e coerência, tontas e servis, incapazes de enfrentar consequências sem lançar mão da mentira, tal qual a irmã do doutorzito, conseguiremos encontrar ao virar de cada esquina? E quantas situações tão francamente imaturas e tão degradantemente tristes como a deste conto poderemos encontrar nesse vasto mundo? Quantos? Quantas? Respondam vocês, caros leitores, porque eu, tendo-lhes contado o conto, dou por finda e cumprida a minha missão!

E
o presidente desta cidadezinha igual a tantas outras que se acautele, não vá a mulher de meia-idade, imprevisível e intempestiva como é, forçá-lo a cumprir a oferta que lhe fez de fazer a apresentação do livro que ela escrevesse precisamente no mesmo lugar da exposição sabotada! Cuidado, porque palavras nem sempre as leva o vento!


F
im

(Este conto é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com factos ou pessoas reais é simples e pura coincidência.)

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