quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Rodopio

Inóspitas paisagens
Se desenrolam, insistentes,
Perante o meu olhar que deseja recusar-se a ver…
Mais bem miragens,
Ilusórias, incongruentes,
De uma rotina persistente
A rigor vestida de fantasia…
E no deserto árido da vida
Em que ela própria é porém o ser,
Nessa dor agudamente sentida
Desperto de novo,
Viçosa, fresca, renascida,
Num oásis verdejante de verdade,
Onde o nada é pleno saber
E a ilusão não tem guarida!
É aqui que quero ficar,
Insegura,
Talvez mesmo perdida,
Livre e despojada de amargura,
Porque assim insegura me reconheço,
Assim perdida me encontro,
Assim livre e despojada desvaneço
Num infinito rodopio sem conta nem medida.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Ouvir

Não nos ouvimos! E isto é um facto.
Habituámo-nos de tal maneira ao ruído exterior, prestamos-lhe tamanha atenção, que esquecemos totalmente o nosso ruído interno, o borbulhar do corpo, o bater do coração, os sussurros da alma.
Ouvimos o ruído externo. E ouvimo-lo muito atentamente. As vozes de aclamação, os gritos de protesto, as declarações políticas, as narrações, os relatos e as invenções dos meios de comunicação, a publicidade, etc., etc.
Ouvimos as opiniões dos outros, ouvimos as nossas próprias convicções, ouvimos o que nos interessa e o que não nos interessa, e produzimos mais ruído ainda ao contestar, ao defender, ao apologizar, aom julgar, ao acusar. Enfim, entregamo-nos voluntariamente ao ruído que nos aturde e nem sequer nos apercebemos que esse aturdimento nos ensurdece.
Não ouvimos o nosso pensamento, que sentindo-se livre porque não é ouvido nem controlado, cavalga desenfreado e enche o mundo de disparates, de maldades. Não o ouvimos quando ele segreda sensatezes e não o ouvimos quando explode em absurdos.
Não ouvimos o corpo. Não ouvimos o seu movimento de máquina perfeita nem os pequenos ruídos que o seu funcionamento gera. Nunca o ouvimos. Atafulhamo-lo de porcarias, alimentos impróprias, substâncias tóxicas. Violentamo-lo com a violência do abuso, dos ritmos excessivos que o levam à exaustão. E quando ele pede socorro, através da indisposição, da dor, da doença, mil razões são apontadas para o problema, mil soluções apresentadas para a cura, mas nenhuma dessas razões é a razão que verdadeiramente o apoquenta nem nenhuma das soluções é a adequada ao seu problema.
Não ouvimos o coração. Não prestamos atenção ao seu bater. E vemos ódio onde há amor, vingança onde há boa-vontade, tristeza onde há alegria. Porque não o ouvimos, não sabemos nem dar nem receber. Porque ignoramos o seu suave palpitar ou o seu furioso galope, passamos pela vida sem compaixão e em constantes enganos, que é afinal o caminho trilhado por aqueles que, não sendo surdos, não querem ouvir.
Não ouvimos a alma. Essa então, cuja voz é tão suave e murmurada ainda que de infinita firmeza e verdade, nunca é ouvida. A essa calámo-la até antes que fale. Chamamos-lhe “a voz da consciência” e zombamos dela. Achamos que não tem realidade, que é totalmente obsoleta, e se por vezes falámos nela, ou é para lançarmos uma boa gargalhado à custa de quem nela acredita, ou para brincarmos um pouco à poesia e ao romantismo onde achamos que, palavras como essa, encaixam na perfeição.
Não queremos ouvir a alma, nem quando ela dói. Nem quando ela, no seu quase silêncio, nos pede aos gritos que a ouçamos; que lhe demos mais crédito a ela do que aos milhentos iluminados espertos, eruditos cartesianos, teóricos cristalizados e interesseiros argutos que inundam as nossas vidas com um ruído ensurdecedor, impedindo-nos de a ouvir.
Se alguma vez, por uma fracção de segundo que fosse, conseguíssemos eliminar o ruído exterior e nos permitíssemos prestar atenção ao ruído leve e suave de nós próprios, a nossa vida, a partir desse momento, jamais seria a mesma.

Semear

Qualquer atitude que tomemos, qualquer acção que façamos, tem indiscutivelmente a sua repercussão. A lei da causa e efeito aplica-se, sem excepção, a tudo na vida.
Semear significa fomentar, significa preparar o aparecimento de algo, disseminar, espalhar. Significa ser na verdadeira acepção da palavra porque o ser humano não é um compartimento estanque mas sim o somatório e o gerador da pluralidade.
É portanto indispensável que, ao pretender semear, tenhamos em consideração alguns pontos fundamentais:
- Há que semear com a consciência plena de que a colheita será sempre da mesma natureza da semente.
- Há que semear sem a expectativa de colher, porque contrariamente ao que se pensa, querer não é poder.
- Há que semear com o firme propósito de não interferir com as leis da natureza. Ela tem o seu papel e é, queiramos ou não, indiferente às opções humanas.
- Há que semear com o propósito firme e consciente de não prejudicar.
- Há que semear com inocência, com pureza, com altruísmo.
A semente assim lançada à terra germinará nas condições ideais, e nem a geada nem o vento furioso poderão impedir ou deteriorar a sua plena germinação e florescência.

domingo, 26 de setembro de 2010

Inquérito / Enquiry / Encuesta

Dear reader,
Would you like my posts originally in Portuguese to be translated into English? If you would please let me know.
Thank you.

Estimado lector,
Le gustaría que lo que publico en Portugués fuera traducido al Español? Si fuera el caso por favor dígamelo.
Gracias

Reflexão

Fiz recentemente cinquenta anos. Não que isso me preocupe do ponto de vista físico, mas num exercício analítico,  olhando para trás com o distanciamento sensato que a vida parece conferir, não posso deixar de lamentar as barbaridades que a ignorância de nós próprios nos faz cometer. Não se trata de arrependimento, trata-se de discernimento. Não se trata sequer de corroborar a frase batida do “se eu soubesse o que sei hoje”. Não, não é isso.  É, sim, a constatação do que é a evolução do ser humano.
O que outrora nos parecia correcto, a coisa certa a fazer, agora passados alguns anos, à luz do presente e do conhecimento que vamos tendo de nós mesmos,  parece não ter passado de uma acção insustentada, infundamentada, completamente errónea. Na ocasião tinha parecido lógica, coerente mas como podem as acções ser lógicas e coerentes quando apenas se tem delas um conhecimento pontual, ocasional, inserido somente nessa faixa de tempo?
As coisas não deixam de ser o que são pela nossa reacção. Elas são o que são e sempre serão o que são, ponto. As nossas reacções geralmente são um esforço inconsciente de mudar o que é, mas isso é uma impossibilidade. A nossa reacção nunca é isenta. Ela nasce do nosso próprio contexto de vida e a prova disso é que perante um mesmo acontecimento, cada um reage à sua maneira. A acção sem um conhecimento mais abrangente da causa e do efeito é apenas uma reacção baseada no condicionamento, no background de cada um, e o resultado só pode ser pura e simplesmente catastrófico!
Assim sendo, porquê reagir? O que aconteceria se em vez da acção, da reacção, a nossa inteligência nos conduzisse à inacção? O que aconteceria se permitíssemos que as coisas fossem o que são? Se não quiséssemos moldá-las, ajustá-las à nossa conveniência? O que aconteceria se a reacção psicológica não existisse? O que seria a vida de cada um se cada um permitisse que ela se desenrolasse naturalmente, sem necessidade de a modificar, de a moldar?
Coloca-se então a questão fundamental: como posso agir a partir de agora para que, dentro de dez ou vinte anos, não chegue à conclusão de que afinal não era bem assim, que no final de contas a lógica, a fundamentação não era essa?
Mudança, transformação, sim, mas em que moldes? E terá importância a lógica, a fundamentação particularizada? E o tempo, que papel desempenhará em tudo isto? Será que é factor de mudança? Ou será apenas uma ilusão, e tudo o que há existe perenemente aqui e agora? Será a falta dessa consciência que nos faz agir e reagir sem nexo, sem lógica, sem compaixão, numa tentativa vã de modelar a vida? Será a contextualização que nos impede de ver a perenidade?
Sejam quais forem as respostas individuais, porque a tendência é arranjarmos uma resposta e uma explicação para tudo, sem ao menos ponderarmos se estaremos na via correcta, alguma vez ousaremos aceitar as coisas como elas são, sem querer mudá-las?

sábado, 25 de setembro de 2010

Só, completamente só,
Tendo-me apenas a mim mesma por companhia,
Deixo que o rio da vida siga o seu curso,
Deixo que a água serena da verdade
Percorra cada canto do meu ser,
Cada espaço recôndito e obscuro
Que jamais ousei trazer à luz do dia…
Deixo que o canto das águas
No seu correr infinito e eterno
Me ajude a escutar
O pranto contido do sofrer…
Deixo que apague o inferno
De um vazio incompreendido
E que nutra o solo de um silêncio
Imenso que quero compreender…
Só, comigo mesma,
Num aparente penar,
De um estado amorfo e frio
Renasço como água, como rio,
E no leito do meu sentir
Que por instantes se volve sensível e terno
Descubro, dentro de mim
Toda uma vida todavia por nascer…

Centella

Por muy penoso
Que sea nuestro dolor,
El dolor que al final
Colma un mundo en llanto,
Fruto de nuestra propia creación,
Siempre habrá,
Guardada muy adentro
Como un secreto silencioso,
Allí, donde se cobija el amor
Y donde la vida destella
Su esplendor,
Una centella!
Y esa centella, en su fulgor,
Mantendrá siempre encendido
El brillo de la eternidad,
Que no es el de una distante estrella,
Sino el de la risa y del llanto
De quién busca
En la vida
El porqué de su existencia,
La música de su canto,
Su universal identidad!

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Calma

Só quando me rodeio de calma,
E faço do silêncio e da imensidão
O lar da minha alma,
O meio do meu ser…
Só então vivo, só então vou,
Despojada de quereres,
Isenta de desejos e de quaisquer haveres,
Mera vertigem levada pelo muito do que não sou,
Ao encontro da liberdade.

E porque não me defino,
Navego no seu seio e entendo as marés.
Sei das fases da lua e dos ventos do norte,
Sei da divindade
E da semente em que germino,
Entendo os mundos e a verdade…

Afasto-me assim da sorte gerada pelo homem,
Imune ao mais ínfimo revés,
Porque o verso e o reverso
Da medalha que o homem tão bem engendrou
São farinha do mesmo saco,
São a própria ilusão, a própria falsidade,
Que sempre o alimentou…

Quando cesso de ser
Sou!
E neste findar está o início e o fim
Do que não principia nem acaba,
De tudo o que houve, há, e vai haver
P’ra além de mim!

Se a cabeça pensasse...

A cabeça não pensa. Não pensa que o seu prazer poderá ser a dor de outro, o seu capricho a desgraça de outro, o seu querer o sacrifício de outro. A cabeça não pensa no efeito das suas causas, na consequência dos seus actos, no resultado das suas extravagâncias.
A cabeça não pensa. Não pensa porque não sabe, mas está convencida que a sua ignorância é conhecimento. Está convencida que os seus actos, os seus disparates, as suas fantasias e imaginações são a realidade que sustenta a vida. Está convencida de que quem não é assim é aberração da natureza.
A cabeça não pensa. E de disparate em disparate, de fantasia em fantasia, de narcisismo em narcisismo a cabeça mirra, definha, seca, cristaliza. E o mundo mirra, definha, seca e cristaliza.
Se a cabeça pensasse…

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Silêncio e solidão

A sombra escondia-se do raiar da aurora. O silêncio instalado com o adormecer dos homens cobria ainda o mundo com o seu afago e eu, repousada por um sono no abraço condescendente da noite, abri a janela do meu horizonte e enchi os pulmões com o ar quedo e vivo do amanhecer.
Que longe pareciam as trevas de outrora que nem o sol fulgurante de um meio-dia quente e brilhante podia então iluminar. Despertei com a alma nua e por um instante quis agarrar o tempo e prendê-lo numa mão fechada, crispada até, tal era a vontade de romper o carácter efémero do momento. Silêncio e solidão.
Que medo têm os homens da solidão! E como temem o silêncio! Preferem a multidão controversa e antagónica à natureza pura e desnudada sem a presença de seres atribulados e em tonta correria. Preferem o ruído dissonante que eles próprios criam ao suave murmulhar das árvores e ao sussurro reconfortante da brisa que passa.
Depois sentem-se infelizes porque se sentem sós. E nem sequer se dão conta de que a infelicidade e a solidão só existem porque eles próprios se afastam deles mesmos.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Só eu sei de mim

Quem vai compreender a dor que sinto?
A felicidade que me inebria?
Eles, que nada sabem de mim?
Eles que correm, feitos doidos, feitos cópia,
Em constante frenesim, atrás de um ideal absurdo
Que os faça deixar de ser assim para ser de outra maneira? 

Mas que inútil brincadeira, essa do devir.
Onde querem chegar afinal?
Onde pensam que podem ir se não sabem sequer o que os faz respirar?
Reagem sem pensar, vivem d’imitação,
Enganados, iludidos, vêem uma imagem original
Num espelho por demais repetido.
E veneram o logro, futuro de um presente irreal…
Vivem em segunda-mão: que quotidiano tão bem urdido!
Pena que não passe dum modelo instituído,
Mera projecção leviana de um insano colectivo…

Que lhes assista a coragem de deitar por terra
O que foi decidido, por vantagem, por conveniência;
Que se atrevam e se despojem no silêncio e no nada.
Talvez nessa nudez exposta encontrem a verdade…

Que não queiram galgar montanhas
E vencer obstáculos
Num caminho já traçado e gasto pelo arrastar dos séculos;
Que não queiram ser vencedores de metas alheias,
Títeres de políticas e ideias,
Seguidores de vãs filosofias,
Actores secundários d’estranhos espectáculos…

Que ousem ser o que são, sem destinos nem caminhos,
Que se atrevam a mudar de opinião
E saibam permanecer livres e sozinhos!
Que nessa solidão se deixem levar pelo eterno desafio da mudança,
E sejam como um rio que, num movimento sem fim
E embora tenha leito definido,
Jamais se impede de secar, de transbordar
Ou de fluir assim-assim!

Quem vai compreender a dor que sinto?
A felicidade que me inebria?
Só eu mesma sei de mim.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Diálogo da treta?

- Crítica?
- Só a auto-crítica.

- Moda?
- Desculpe?

- Pisca?
- Sinal luminoso que caiu em desuso.

- Prioridades?
- Egoísmo.

- Sinais exteriores de riqueza?
- Sinais exteriores de mediocridade.

- Comida gourmet?
- Cocktail de insulto e imbecilidade.

- Política?
- Brincar ao poder.

- Poder?
- Um brinquedo, como os carrões, as mansões, as posições, as relações, os piões, os balões, as colecções, as play-stations...

- Greve da fome?
- Isso afecta quem, mesmo?

- Greves em geral?
- O contrário da greve da fome mas com maior grau de estupidez.

- Originalidade?
- Onde? Aqui, no mundo da imitação?

- Sorriso?
- Actualmente? Demonstração egocêntrica.

- Informação?
- Manipulação.

- Globalização?
- Interesses pessoais em larga escala.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Finja-se

Pronto! Cheguei à triste conclusão que, hoje em dia, época marcante da decadência e da ignomínia, se houver quem não finja, esse será sem dúvida a excepção que faz a regra.
Hoje em dia, quanto mais complicado melhor, quanto mais complexo melhor, quanto menos pessoas entendam melhor, quanto mais obscura e mais vernácula seja a linguagem, o intento, o ideal, tanto melhor! Choca-se para se sentir a vida! Oculta-se e ornamenta-se. Fomenta-se o culto do absurdo para encobrir uma condição incapaz. Como se a vida fosse um  abanão intermitente e não uma continuidade serena, criativa e nutriente.
E percebe-se porquê. À falta da coisa natural, espontânea, pura, inocente e verdadeira, coisa essa que o homem, quer queira quer não, intrinsecamente é, à falta de uma criatividade e de uma sensibilidade incontestavelmente genuínas, há que inventar um tal emaranhado que apenas uma pequena minoria, que se autodenomina literaria, filosofica e intelectualmente iluminada, possa entender. Ficará assim salvaguardada a verdadeira ignorância, a fétida impureza e a plena incapacidade do homem que se edifica no logro de si mesmo.
Que finjam então, que se construam e se conduzam nessa ridícula contranaturalidade.
Eu fico de fora. Não vou por aí.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Dancing

When I dance with the stars
Each movement I make
Is the movement of a soul
Which, being free, unattached and uncreated,
Is much more than nothing
But much less than the whole!

Lulled by the silence
At the sound of a million melodies,
And lulled by the breath of life
In the soft breeze of eternity,
Quiet, inebriated,
I indulge in an ever unfinished dance…

Extraordinary ride

I am one lost soul
Desperately holding on to unrealities
Though I know the real thing is right here,
At the single reach of my own hand.

And darkness seems to be a goal
Fed by illusions, by proven impossibilities,
Driven by an absurd fear,
Dangerous like moving sand.

But as quietness and peace appear
From some unknown place inside,
Bore beyond mi knowledge and sight,

When my soul is finally rested and clear,
I take the most extraordinary ride
To the limitless realm of pure light!

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Não brinco mais a isso

Acabou-se. Não quero brincar mais. Não quero mentir-te porque me minto. Não quero enganar-te porque me engano. Não quero iludir-te porque me iludo.

Não quero brincar mais às casinhas porque não sei onde é a minha casa. Não quero brincar aos carrinhos porque quero saber para onde vou sem me importar como.

Não quero brincar aos futebóis, nem às modas, nem às últimas tecnologias; se o fizer não passarei de uma bola arremessada ao acaso, de uma cópia plasmada, de um autómato imitativo programado para carregar em teclas e botões.

Não quero mais brincar às políticas porque serei escrava do interesse e magoar-te-ei em nome de um ideal que nem sequer professo. Não quero brincar às religiões porque os deuses são criações tuas e deles e não as quero para mim.

Não quero brincar aos amores, aos ciúmes e às invejas porque não quero amar as imagens que faço de ti, nem quero enciumar-me porque o sentimento não é exclusivo, e nem sequer invejar quem pensa que ama.

N
ão quero brincar mais aos críticos nem aos juízes, porque se te critico fecho os olhos ao meu preconceito e se te  julgo deixo soltos e ignorados por esse mundo fora os meus vis defeitos.

Não quero brincar mais às competições, nem às rivalidades nem às posições. Poderei ser melhor do que tu nisto ou naquilo mas por certo sou cem vezes pior e mais mesquinha em tantas outras; e serão os antagonismos e as posições que nos conferem autenticidade e carácter?

Não quero brincar mais à tolerância, à fraternidade e à solidariedade, porque ainda não aniquilei o meu egoísmo, ainda não me desfiz de interesses egocêntricos, ainda não tomei consciência de que não sou superior a ti.

Afinal, ainda não me conheço; como haveria pois de ousar pretender conhecer-te a ti?

Não quero brincar mais a nada disso. Agora quero ser um ser sério! A sério!

Vazio

Este vazio tão pleno
Q
ue me queima por dentro
D
ói tanto, tanto, tanto
Q
ue tamanha dor nem chega a ferir!
É
antes como se algo nascesse
A
cada momento,
C
omo se algo novo e vivo florescesse
S
em qualquer premeditado intento,
P
ronto a eclodir,
A
servir de alento ao meu viver!

E
de tão intensamente que o sinto
N
ão chego a saber
S
e sou o que pressinto
O
u apenas aquilo que julgo compreender…
T
al como a flor do absinto
C
om o seu sabor amargo,
Q
ue se transforma em licor adocicado,
A
ssim eu, de um apagado e insípido estado de ser,
M
e torno um rebento,
P
ujante e renovado,
Q
ue apenas esse insaciado vazio
P
ode fazer crescer!

Conto - O dito por não dito - VI

Capítulo VI

- Fui ver a exposição que me recomendaste mas estava fechada – informou um amigo da mulher de meia-idade.

-
Fechada? Não é possível. Vai estar patente ao público até ao final da próxima semana – respondeu ela admirada.

-
Pois, mas eram seis da tarde quando lá fui – insistiu o amigo – e apesar de na net o horário de fecho indicado ser às sete, garanto-te que estava fechada. Fui embora sem conseguir vê-la!

N
o dia seguinte resolveu ir ao local da exposição. Quando lá chegou verificou que não estava afixada, na entrada, uma única indicação sobre a exposição, ou sobre os horários de funcionamento da mesma. Nada, rigorosamente nada! Quem por ali passasse jamais diria que dentro do edifício estava a decorrer algum evento cultural. Entrou e dirigiu-se à sala de exposições. Para sua surpresa a sala estava às escuras. Olhou em redor e não se via vivalma. Tinha entretanto verificado também que nenhum jornal havia noticiado o que quer que fosse a respeito da exposição. Já quase certa de que a coisa afinal era bem pior do que aquilo que pensava, no dia seguinte a mulher de meia-idade telefonou à irmã do doutor Cicrano:

-
Bom dia Isaura! Como está? Olhe, diga-me uma coisa: de certeza que chegou a fazer o mailing da exposição a convidar as pessoas habituais, os jornalistas, etc?

-
Ah, isso não é comigo, é com o gabinete de imprensa – apressou-se ela a dizer num timbre de voz que não disfarçava uma determinada atrapalhação.

-
Ah, pois, com o gabinete de imprensa! – repetiu algo cinicamente a mulher de meia-idade – Então obrigada. Muito bom dia – disse pousando o telefone. Sim, senhor! Que rico grupinho se juntou: uns mentem, outros enganam, outros fazem figuras tristes! – pensou ela, ponderando se havia de ficar contente por não se ter enganado nas suas deduções, ou triste por tomar consciência da existência de tantos seres humanos indignos de tal denominação!

V
oltou a pegar no telefone e desta vez ligou para o gabinete de imprensa da câmara:

-
Bom dia! Eu gostaria de saber por que razão é que esse gabinete não fez a divulgação da exposição que está a decorrer no fórum.

-
Desculpe? Exposição que está a decorrer? Mas que exposição? – perguntou o homem inequivocamente surpreendido. – Não temos conhecimento de nada – afirmou ele.

-
Mas eu acabei de falar com uma funcionária do pelouro da cultura que me disse que o gabinete de imprensa é que teria que ter feito a divulgação – contrapôs ela.
- Desculpe minha senhora, mas isso não é bem assim – contrariou educadamente o homem do outro lado da linha. – Nós só procedemos à divulgação de qualquer evento se o pelouro da cultura nos informar dele. Como compreenderá, se nada nos disserem, nós não vamos certamente adivinhar… - prosseguiu ele.

-
Claro, claro. Tem toda a razão – assentiu a mulher de meia-idade. – Quer dizer então que não foram informados por parte do pelouro da cultura sobre a exposição que está a decorrer?

-
Exactamente – corroborou o homem.

-
E portanto o gabinete não informou a imprensa nem enviou convites para os nomes constantes na lista de pessoas a convidar? – insistiu ela.

-
Obviamente que não – reconfirmou ele. – No que respeita a este gabinete essa exposição é inexistente!

A
gradecendo ao homem educado e simpático que tão bem a atendeu, a mulher de meia-idade pousou o telefone e desta vez a tristeza profunda instalou-se-lhe mesmo na alma! O que levaria o ser humano à mentira, à perfídia, à má acção deliberada e consciente? Seria a sua própria natureza ou seria apenas a sua ignorância? Seria a ânsia de poder ditada pela constatação da própria insignificância ou seria a total inconsciência perante o bem e o mal? Que incapacidade teria o ser humano para conseguir compreender que se hoje vitima amanhã será vitimado? Pondo de lado a fealdade dos actos, a argúcia das artimanhas, a mesquinhez dos propósitos e a falta de respeito pelos semelhantes, eu diria que o homem, em termos de valores e princípios, é todavia uma criança e não tem a mínima consciência do dano que as suas brincadeiras e os seus brinquedos podem causar – concluiu ela tristemente em pensamento.

E
ntretanto a exposição termina e mais uma vez aquele aparente clima de normalidade se instala na cidadezinha, palco e exemplo vivo da ignomínia e da mediocridade do ser humano. E se eu, um perfeito energúmeno, alguém que aos vossos olhos não passará de um ser desprezível e abjecto, não lhes tivesse contado este conto, provavelmente os caros leitores iriam, mais cedo ou mais tarde, cair em análoga esparrela ou continuar enganados a respeito de alguns dos vossos conterrâneos. Pelos menos assim, quando desconfiarem de que algo não está a correr como devia, podem sempre lembrar-se deste conto e tomar cautela. Sim, porque caros leitores, não creiam que vida real está assim tão longe da ficção!

S
enão reparem: em quantas cidades, em quantas câmaras, de quantos países do mundo podemos encontrar presidentes mentirosos, peritos em afirmar que não disseram o que disseram, hipócritas e fracos como o deste conto? Quantos vereadores do pelouro da cultura, manipuladores e sub-reptícios, silenciosos e ardilosos, podemos encontrar por esse mundo fora, como o do nosso conto? Quantos doutores Cicranos, papagaios repetitivos, ufanos de um valor que não têm, convencidos de uma superioridade inexistente e com personalidades inconsistentes não conseguiremos nós encontrar iguaizinhos ao deste conto? Quantas funcionárias sem qualquer noção de sensatez e coerência, tontas e servis, incapazes de enfrentar consequências sem lançar mão da mentira, tal qual a irmã do doutorzito, conseguiremos encontrar ao virar de cada esquina? E quantas situações tão francamente imaturas e tão degradantemente tristes como a deste conto poderemos encontrar nesse vasto mundo? Quantos? Quantas? Respondam vocês, caros leitores, porque eu, tendo-lhes contado o conto, dou por finda e cumprida a minha missão!

E
o presidente desta cidadezinha igual a tantas outras que se acautele, não vá a mulher de meia-idade, imprevisível e intempestiva como é, forçá-lo a cumprir a oferta que lhe fez de fazer a apresentação do livro que ela escrevesse precisamente no mesmo lugar da exposição sabotada! Cuidado, porque palavras nem sempre as leva o vento!


F
im

(Este conto é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com factos ou pessoas reais é simples e pura coincidência.)

Conto - O dito por não dito - V

Capítulo V

S
exta-feira, vinte e uma e trinta. A mulher de meia-idade chega ao local da exposição. As únicas pessoas que lá estavam a essa hora eram o porteiro e o doutor Cicrano. A mulher de meia-idade, com alguma ansiedade estampada no rosto, cumprimentou-o:

-
Olá, boa noite! Então, está tudo a postos?

-
Olá. Sim, sim, está tudo – confirmou ele com um olhar inexpressivo.

-
E a sua irmã? Ela vem, não vem? Teria muito gosto em conhecê-la! – perguntou a mulher de meia-idade.

-
Sim, deve ir – respondeu ele com a mesma inexpressividade do olhar plasmada na voz.

E
ntretanto a mulher de meia-idade dirigiu-se à sala de exposições e, agora com o agrado estampado no rosto, concluiu que tudo estava a postos. Aos poucos foram chegando, primeiro os artistas e depois familiares e amigos dos artistas. A mulher de meia-idade, enquanto falava alegremente com as pessoas presentes, ia olhando para a porta na expectativa de ver o presidente da câmara. Depois começou a estranhar a ausência de jornalistas. Era deveras estranho! Pelo menos um dos jornais locais deveria ter aparecido, a exemplo do que tinha acontecido na exposição na junta de freguesia dois anos antes – pensava ela. O tempo ia passando e nem sinal do presidente, dos jornalista e da irmã do outro.

C
irculando por entre familiares e amigos dos artistas, subitamente a atenção dela foi captada por uma conversa no mínimo espantosa.

-
É inadmissível – dizia indignada uma senhora – eu nunca teria aceitado que alguém me dissesse que obras é que eu deveria expor! Mas afinal quem é aqui o artista?

A
mulher de meia-idade, não conseguindo conter-se, perguntou:

-
Desculpe intrometer-me, mas o que é que se passou afinal?

-
O que se passou foi que houve censura às obras dos artistas, – desabafava ela com acrescida indignação – os quadros expostos foram escolhidos pelo fulano que andava a organizar a exposição e três ou quatro deles nem sequer foram expostos!

A
surpresa tomou intensamente conta do rosto da mulher de meia-idade e também ela, agora que começava a ter certezas quanto às suas desconfianças, sentiu crescer em si a indignação. Mas quem diabo se julgava aquela criatura desconchavada, aquele aspirante a crítico, aquele nariz empinado “tomador de ares de entendido”, para se atrever a semelhante coisa? – ia pensando ela enquanto se dirigia com passo enérgico à dita criatura.

-
Quer fazer o favor de me explicar porque carga d’água é que decidiu o que se ia expor? Estamos outra vez com a mania de que somos críticos de arte, é? – explodiu ela perante o ar surpreendido e algo nervoso do doutor Cicrano.

-
Eu falei com o artista em causa… - começou ele a dizer.

- M
as você não está a perceber que no que toca às obras você não tem que opinar nada, e muito menos decidir? – barafustava ela visivelmente irritada perante tão prepotente atitude.

-
Eu tenho um curso de arte – lançou ele como arma de arremesso, como que a pretender intimidar, como se aquela afirmação o ilibasse totalmente do abjecto ataque de autoridade que o tinha assolado aquando da montagem da exposição.

-
Você não tinha esse direito, não tem esse direito – cortou ela.

V
isivelmente sem argumentos, comprovadamente sem capacidade de contraposição, patente no rosto, nos gestos a impossibilidade de se explicar, a criatura foi procurar refúgio e conforto na sensatez, nos princípios e educação irrepreensíveis dos artistas. “Eles eram pessoas bem mais tranquilas que a mulher de meia-idade. Essa era insuportável, um autêntico furacão indominável” – pensava o doutorzito enquanto balbuciava, procurando apoio para a razão que julgava ter, frases básicas e inconsistentes.

E
ntretanto os ânimos acalmaram. A mulher de meia-idade, readquirida a serenidade, constatou, desta vez sem qualquer sombra de dúvida, que não se tinha enganado: a exposição tinha tido lugar única e exclusivamente pela tenacidade e insistência dela. A vontade do pelouro, tivesse ela partido do seu ilustre desconhecido vereador ou dos seus incompetentes funcionários, era obviamente a de não a realizar. E tudo fizeram para que assim fosse: silenciaram o presidente, protelaram o quanto puderam a sua realização, ludibriaram hipocritamente a mulher de meia-idade durante dois anos.

O
presidente, nitidamente um joguete nas mãos de vereadores e quiçá de funcionários, não apareceu. Tal como todos os políticos, disse e escreveu “tenho por hábito participar em todas as iniciativas … sempre que para tal sou convidado. Só raramente não vou e faço-me representar se…estou ausente ou não posso, de nenhuma forma estar presente” e depois não fez nada disso. Geralmente, as figuras de topo em qualquer hierarquia, não importa a dimensão dela, são meramente ornamentais e por isso mesmo desprovidas de carácter. Aparentam mandar muito mas são manipuladas a bel-prazer por aqueles que ilusoriamente lhes são subalternos. São figuras de temperamento amorfo e descaracterizado, munidas de uma importância balofa que elas próprias se atribuem. Impulsionadas por aqueles que as rodeiam, por aqueles que raramente dão a cara e que na realidade detêm o poder, essas figuras dançam, consciente e inconscientemente, ao ritmo dos seus caracteres fortes, porém vis e desprezíveis.

(
continua)
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