O autoconhecimento é o começo da sabedoria,
em cuja tranquilidade e silêncio está o incomensurável.
J. Krishnamurti
em Comentários sobre o Viver – 1ª série
Todos os dias me deparo com pessoas que se sentem incomodadas.
No café, logo pela manhã, já se ouvem resmungos e reclamações. No trânsito, o rádio do carro propaga mais incómodos. O custo de vida, o mau tempo e as queixas dos agricultores, as convulsões sociais por esse mundo fora. O futebol, os eventos culturais, as modas e as vidas alheias. À hora de almoço, enquanto se engolem à pressa alguns alimentos processados e de fraca nutrição, disparam-se comentários em todas as direcções, partilha-se o desagrado acerca disto e daquilo. Tudo incomoda. A atitude do colega, o discurso do político, a má-criação do vizinho, o trânsito, a fila, a coscuvilheira do prédio que espalha boatos, o treinador que não sabe o que faz, o mau desempenho do jogador. Tudo incomoda. O excesso de calor, a chuva que não pára, o fim-de-semana estragado, a praia que não se aproveitou. Tudo incomoda toda a gente. Ou quase toda.
Mas nem de ano a ano me deparo com alguém que sinta o grande incómodo.
O verdadeiro incómodo. Aquela inquietação penetrante e profunda que nos deixa à deriva num aparente sem sentido. Aquele mal-estar importuno e mordaz que seca a garganta, produz calafrios angustiantes e nos força a pensar na velha e recorrente questão do “Quem sou eu?”. Pergunta molesta. Perturbante. Insistente. Instigante.
O grande incómodo é feito de interrogações, de questionamentos que tantas vezes ficam em suspenso por falta de respostas. Na sua natureza pululam silêncios e espaços incomensuráveis e desconhecidos. E vazios insuportáveis que, que a jeito de buraco negro, parecem sugar-nos toda a energia. Uma vez sentido, o grande incómodo jamais desaparecerá. Poderá diminuir de intensidade, ficar em estado cataléptico, permanecer em letárgica hibernação, mas jamais desaparecerá.
Ao contrário daqueles que se incomodam por tudo e por nada no quotidiano transitório, aquele que sente o grande incómodo tende a entregar-se ao silêncio e à reflexão. Abandona o espalhafato e a atitude instável do incomodado leviano e inconsequente. Começa a distinguir, com um discernimento antes insuspeitado, o valor intrínseco das coisas. Aparta o trigo do joio e dá a cada um apenas e simplesmente a importância que lhe cabe. Não agiganta nem subestima, não exalta nem humilha. Permanece flexível porém firme e equilibrado, mesmo quando o grande incómodo o obriga a mergulhar em profundezas insondáveis. Não dá ouvidos ao ruído exterior mas escuta atentamente os murmúrios quase inaudíveis do seu interior.
O grande incómodo por vezes dói. Dói deveras. Sem dor localizada, dói por toda a parte. Dói no coração, dói na alma, dói dentro e dói fora, dói na estrela, na galáxia, no universo inteiro. E outras vezes alegra. Alegra sem razão. Concede uma alegria imensa, quase extática, vinda do nada, cheia de tudo. Uma alegria que revela horizontes inusitados de infinitas possibilidades.
Os pequenos incómodos, que indignam, que excitam, que estimulam acções e alvoroços, conduzem a becos sem saída, a círculos viciosos, a repetições entorpecentes.
O grande incómodo, que incendeia sem queimar, que inquieta sem agitar, que estimula a inacção, a ponderação, o autoconhecimento, conduz ao desconhecido ilimitado, ao que é verdadeiramente novo, à suprema liberdade.
O antepenúltimo parágrafo sintetiza o contraste inerente ao grande incómodo. Embora esse contraste até possa ser indizível, foi aí expresso e muito bem. Gostei de ver Krishnamurti em ajustada epígrafe. O seu texto está excelente.
ResponderEliminarMuito obrigada, caro José. Krishnaji é sempre uma inspiração, não é?
ResponderEliminarIsabel,
ResponderEliminarEu penso que Krishnamurti foi dos poucos mestres espirituais que ensinou o discípulo a ser mestre. Só quem conhece bem o que significa "ser livre" é que é capaz de exercer tal generosidade.
Bom dia Cara Isabel,
ResponderEliminarA leitura dos vossos textos foi um reconforto na fase atual da minha vida, em que ando...a procura! Estou a ler o livro do Bhagwan Shree Raneesh "The book of the secrets". Pelo menos percebo que as leituras não chegam. Mas por onde começar? Sinto-me um pouco isolada neste cantinho de Europa.