quarta-feira, 24 de outubro de 2012

"O Manual do Homem Novo" - Terceira Parte

(continuação)
 

Bound for Distant Shores - Vladimir Kush

 
Ajuda
 
Quando te sentires impulsionado a ajudar, pára. É muito provável que a tua intenção surja de um obscuro sentimento de superioridade: tu, superior, aquele que dá; o outro, subtilmente menosprezado, recebe.
 
Nessa ajuda deliberada existe um espaço imenso entre ti e aquele que ajudas, mas quando te sentes em comunhão com todos, e existe amor, surge uma ajuda que não procuraste, que não tem objectivo, e à qual nem te passará pela cabeça dar-lhe o nome de “ajuda”. Quando esse espaço imenso desaparece, como acontece entre amigos verdadeiros, surge a ajuda sem nome, que não se procura, não se pede, nem se outorga, a ajuda sem espaço e sem pausa e que não tem sequer a recompensa de uma satisfação momentânea.
 
Acaba com os assuntos (o múltiplo condicionamento)
Os astros, os seres humanos, os alimentos, as radiações, as ideias, o relógio, o dinheiro, mil e uma coisas te influenciam, isto é, alegram-te ou entristecem-te, exaltam-te ou deprimem-te, dão-te vida e saúde ou doença e morte.
 
Mas há um estado do ser em que estás livre de tudo isso: quando te tornas independente do passado e do futuro, quando, ainda que existam, não te afectam os planos ou as lembranças. Um estado em que o tempo não existe: quando, cheios de vida, damos o salto súbito e intemporal para a eternidade.
Então libertas-te do cosmos, dos homens, das mulheres, das ideias e das coisas. Então és Um com tudo isso, e esse vazio enche-se, sem pausa, do prazer de uma profunda e vibrante independência total.
 
Activar-se
Une-te sem perder o teu próprio ser. Aceita os outros totalmente, sem procurar causas. Surpreende aqueles que te rodeiam com ternuras imprevistas. Olha para o relógio mas com a mente liberta do tempo. Entra em tua casa sem te preocupares se é tua ou não. Sorri.
 
Não sejas um grande garfo, o centro das atenções e não estejas sempre disposto a receber passivamente elogios, fama, lucros, alegria e inclusivamente amor. Activa-te.
Podes fazê-lo sozinho. És absolutamente capaz. És forte, não esmagues o teu potencial latente com o atractivo abandono a esta civilização que nos destrói subtilmente e nos distrai grosseiramente com os jornais, a TV, a rádio, o trabalho febril e desagradável, as modas (o mais recente e o novo), os alimentos de grande variedade e quantidade mas de escassa qualidade, tal como a literatura. Tu podes prescindir dessas falsas necessidades, tu és capaz.
Não permitas que esmaguem essa luz que não escolhe, não analisa, não interpreta e não acumula, que está dentro de ti, continuamente, sem pausas.
 
Trevas e distracção
As trevas que latejam dentro de ti são velhas e profundas.
 
Acompanham-te desde sempre e crescem contigo desde o teu nascimento.
As trevas que te rodeiam, ainda que muitas vezes te pareçam ser a luz, juntamente com as que persistem no teu interior, estão em contínua expansão para invadir e ocultar a luz que arde na essência do teu ser. É por isso que um minuto de desatenção equivale a muito tempo de escuridão. Não te distraias. Vigia constantemente, em cada instante. Observa tranquilamente cada voz, cada som, cada silêncio. Tudo aquilo que te rodeia em cada momento. Verás tu mesmo e somente tu, como tudo passa a fazer parte da tua luz interna, essencial e permanente.
 
Bem-estar e professores
O mais importante é que te sintas bem no íntimo do teu ser.
 
Necessitas de uma atenção relaxada e espontânea, de uma tranquila e contínua vigilância para identificar as coisas que verdadeiramente se opõem ao teu real e profundo bem-estar, que é uma das bases mais firmes do bem-estar de todos os que te rodeiam. Se não abandonares essa contemplação continuada, não poderás enganar-te. Não precisas de quem to faça ver. Não precisas de professores nem de conselheiros. Não esperes que a tua força chegue do exterior, tu podes fazê-lo: és absolutamente capaz, não acredites em quem te diga que és fraco ou louco. Não duvides. As dúvidas produzem atraso. Dá o salto agora mesmo. Desfaz o teu coração, as tuas mãos e o teu cérebro para poder reconstruí-los à tua própria maneira. Não discutas, começa a viver de uma vez por todas a tua própria vida. Os gatos, os milionários, o trabalho agradável, o lazer silencioso, o vento, os mendigos, os teus amigos, a lua, os sorrisos, entre muitas outras coisas, serão os teus professores. Tu próprio verás.
 
Se abrires os teus olhos, a tua mente e o teu coração, não necessitarás de interromper o teu despertar.
(continua)

terça-feira, 23 de outubro de 2012

"O Manual do Homem Novo" - Segunda Parte

(continuação)



Atlas of Wander - Vladimir Kush



Palavras
Chega de argumentos. Chega de discussões intelectuais. Chega de conversas estereotipadas e banais. É preciso estar muito atento para não chegar sequer a mencionar o velho, para não se emaranhar no velho nem sequer com a palavra.
 
Palavra pausada, com ritmo humano, não com o ritmo frenético das máquinas que te rodeiam. Palavra amável, sem agredir ninguém porque aceitas todas as pessoas tal como são, que é a melhor maneira de permitir-lhe que mudem, já que nada mais podes fazer por elas. E nada menos também. Aceitá-los. A mudança é pessoal e da conta de cada um. A mudança não te separa de ninguém. Une-te a toda a gente.
Se aceitas o teu amigo, a tua esposa, marido ou filho tal como é, permites-lhe ser sincero. Ser ele mesmo (ou ela). E ninguém pode transformar-se se não souber primeiro quem é e como é. O esforço do verdadeiro valor social não reside em fazer-se ouvir, mas sim em saber permanecer, apesar de si mesmo, dentro do silêncio criador.
 
Energia
Pouco alimento. Alimento menos elaborado e mais natural. Muita serenidade. Toda a alegria que surja sem procurá-la. Não penses senão no que te acontece neste momento, no que fazes neste momento, no que te dizem neste momento. Exercita-te incansavelmente na muito difícil arte do silêncio amável. Reunirás assim a imensa energia de que precisas para tomar completamente consciência do que acontece. Vive a cada instante aqui e agora.
 
 
A transmutação
Na crise total, regida pela completa confusão, cada verdade foi transmutada para servir os astutos. Esse astuto é o homem velho, aquele que sabe gratificar os seus desejos, sejam eles quais forem.
 
O homem novo é inteligente. O homem novo compreende. O mundo novo é o da compreensão e nele não há lugar para a velha astúcia que decai e morre, porque a astúcia é tangencial à realidade. No mundo novo, não se transmutam as realidades. A realidade enfrenta-se e compreende-se, acima da dor e do prazer. Acima dos desejos individuais ou colectivos, pequenos ou grandes.
O homem novo compreende cada verdade, porque só a inteligência sincera penetra no âmago da verdade. Menospreza com alegre tranquilidade as interrupções no seu caminho. O homem novo precisa de aprender a estar só e triste no centro da realidade. O homem novo precisa de aprender a estar só e alegre no silêncio sem pausa da realidade. E a partir dessa solidão, que não é tal, intui a comunhão consigo mesmo, com os outros homens e com tudo.
 
Trabalho e recreação
Quando tiveres feito da Religião, da Política, da Técnica, da Ciência, da Psicologia, da Economia, da Recreação, da Amizade, etc., uma só e única coisa, terás dado o passo mais decisivo para terminar com a confusão e o conflito crescentes no nosso planeta.
 
Olhar realmente a glória diurna ou nocturna do céu, ou a beleza de um rosto, ou simplesmente fazer qualquer coisa, morrendo nesse instante para qualquer outra coisas que sejas ou tenhas sido, que faças ou tenhas feito, é proporcionar crepitante fogo a cada instante da tua vida.
O trabalho realizado com prazer, como uma constante recreação, será um trabalho inevitavelmente bem realizado e essa é a mais pura e honesta política, a melhor higiene mental, porque pertence a cada momento e à própria eternidade. Olhar, trabalhar, escutar, caminhar, viver dessa maneira a cada momento e não consentir sob pretexto algum viver de outra maneira, é a melhor contribuição para a economia do planeta, para a saúde mental e física, para a harmonia do mundo que é o reflexo final da nossa própria harmonia. Sê inflexível contigo mesmo para que não te impeças de viver dessa forma flexível, solta, aberta e eficaz.
Porque esperas sair do trabalho para te distraíres ou fazer política, quando ambas, distracção e política, existem no preciso instante em que se trabalha plenamente? Se o teu trabalho não pode ser assim, recreativo e total, isso significa que deves mudá-lo.
Se as tuas relações não são místicas, recreativas (o que não significa divertidas), saudáveis, harmónicas, amistosas, é fundamental que ponhas a tua essência à frente do espelho, porque te falta misticismo, recreação, saúde, amor e harmonia, porque estás confuso e em conflito.
A diversão não é mais do que uma tentativa de fugir transitoriamente de uma realidade que de alguma forma não nos agrada.
A recreação é enfrentar a realidade a cada momento de uma maneira total e coerente, é criar continuamente, e portanto, o gosto e o desgosto não têm cabimento. O que fazes ou és não pode agradar-te ou desagradar-te uma vez que se queima a cada instante no fogo da vida única e completa. Uma vida recreativa.
(continua)

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

A Mudança – “O Manual do Homem Novo”, Intróito e Primeira Parte



Sunrise by the Ocean - Vladimir Kush

 
Quem se tem dado à maçada de me ler poderá certamente ter constatado que sou apologista da mudança individual. Para mim, todas as grandes mudanças exteriores têm forçosamente de nascer de uma profunda mudança individual. É a mudança qualitativa interior de cada um que dá origem ao desenvolvimento positivo no mundo exterior. É o pensamento do indivíduo singular que origina o pensamento colectivo. E a acção é sempre precedida pelo pensamento. Há que ter cuidado, por conseguinte, com o que se pensa, pois o pensamento que se concretiza na acção individual é sempre, sem excepção, um componente do pensamento e da acção globais.
Há uns anos atrás encontrei na internet um pequeno livro, em língua espanhola, intitulado “El Manual del Hombre Nuevo”. O título despertou-me a atenção e li-o. Depois voltei a lê-lo, uma e outra vez. É de uma simplicidade gritante, no entanto alcança uma vertiginosa profundidade.
Obviamente, os que entendem a vida como um mero percurso do nascimento à morte, e fazem questão de vivê-la futilmente não encontrando nela qualquer objectivo senão o impulso momentâneo ditado por uma sociedade escravizante, frívola e vazia, jamais lhe descortinarão a profundidade e verão nele apenas uma amálgama de palavras sem sentido. Mas aqueles que vêem a vida como um propósito sublime, que sabem que não são meros piões num jogo de xadrez fortuito e caótico, que reconhecem em si próprios um dever intrínseco para com ela, verão em cada palavra sensatez, discernimento e sabedoria.
O livrinho, na altura, era de autoria anónima e circulava livremente na internet. No entanto, alguns anos depois, vim a saber que o seu autor é o Dr. Feldman González. Tendo entretanto verificado que a obra continua livremente disponível na net, permiti-me traduzi-lo para português e vou oferecê-lo, ao longo dos próximos posts, aos meus leitores e a todos os meus semelhantes. Faço votos para que as palavras que contém possam ajudar a despertar o “homem novo” que existe dentro de cada um de nós pois o “O Manual do Homem Novo” é, inquestionavelmente, uma apologia à mudança individual!

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O Manual do Homem Novo

Todos, com maior ou menor dificuldade podem entender, mas nem todos o desejam. Vão portanto estas palavras para os que querem entender.
 
Introdução
Estas páginas não têm autor já que pertencem a todos aqueles que conseguiram, pela sua constância, atingir uma unidade com o Pensamento. A sua essência foi extraída do âmbito mental da nova humanidade, daquela energia que se irá encaminhando para cada um de nós: para o homem novo.
 
Estas palavras foram escritas em momentos de iluminação que chegaram, em todos os casos, simultaneamente com estados de relaxamento e atenção (serena vigilância). Deves lembrar-te que as palavras não são importantes em si mesmas, por isso, “os que desejam entender” passarão por entre elas, e assim na sua ânsia de descobrir a luz, descobrirão a que elas ocultam, uma vez que não é a mesma coisa falar do sol e ver o sol.
É mais importante levar à acção um só parágrafo do que ler cem vezes o texto. É essencial pensar que este livro nos fala a nós próprios e que cada coisa que nos diz está relacionada com os acontecimentos deste mesmo dia, por mais importantes ou triviais que os possamos considerar.
Pôr o manual em prática é uma tarefa e uma responsabilidade pessoal e individual aqui e a cada momento.
 
Ser, estar e fazer
Aprender o que é o lazer silencioso. Saber o que é que realmente te agrada. Não desejar ser herói. Simplificar as ideias, aproximar-te da luz. Estar sereno para compreender e aceitar os outros como são.
 
Ser totalmente livre. Forte para estar atento. Comedido para ser forte. Incansável na tranquila intenção de ver. Valente para aceitar a iniludível dor da existência. Implacável na destruição do desejo de te deixares enganar.
Existe para ti um pedaço de céu na terra: aqui e agora.
 
Dizer
Podem ter-te falado com intenção sincera, mas tudo o que te ensinaram é absolutamente mentira. Mentiras que se transmitiram por repetição de boca a boca entre os humanos no decurso de milénios.
 
Salta por cima de tudo isso, sem tocá-lo nem mencioná-lo. Voa por cima de tudo isso com os olhos postos à tua volta e dentro de ti, sem olhar para baixo.
Fá-lo tu. Di-lo tu. Pensa-o tu. Não acredites naqueles que te disserem que não és capaz ou que é uma loucura. Segue sem dúvidas o teu coração e ele dir-te-á onde está a tua verdade. Começa de novo. Não consintas a mais pequena pausa nesta trilha em direcção ao caminhar.
 
Força e esperança
A força do homem é a sua energia psicofísica que lhe permite a atenção a cada instante (e que não é análise) à vida interior e exterior. A debilidade do homem é a perseguição de distracções, excitações e estímulos cada vez mais numerosos. É uma pausa e um atraso indesejável no seu caminhar.
 
A esperança do homem novo está no libertar-se das aquisições, do consumismo, da experiência do homem velho e das guerras do homem velho (sejam conflitos mundiais, nacionais, familiares ou os próprios e íntimos de cada dia).
A única opção autêntica para o homem novo reside no recomeçar tudo e atrever-se mesmo sem esperança.
(continua)

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

O Corcel


White Horse Wind - Marcia Baldwin


De vez em quando é preciso parar. É preciso consolidar propósitos, espanar recantos, cortar pontas soltas. Uma pausa na rédea solta do pensamento é a diferença entre manter a lucidez ou enveredar pela insanidade global. O ruído e o movimento do dia-a-dia podem parecer um fogoso e belo corcel galopando ao sabor de atractivos e contagiantes ventos. Mas há que saber puxar as rédeas a tempo, não vá o belo animal tomar o freio nos dentes e levar-nos desenfreadamente por caminhos sombrios e tortuosos.
Uma pausa tranquila sob a sombra da árvore da percepção e do discernimento, o corcel bem atado ao seu velho e possante tronco, um entrecerrar dos olhos para que a luz exterior não ofusque a que de dentro vem chegando, é tudo o que é preciso para sair da influência destrutiva do desabrido cavalgar quotidiano. Arrestado o pensamento, abafada toda e qualquer palavra que teime em expressar-se, numa entrega incondicional e profunda ao grande silêncio e a uma muito desejada solidão, surgem então um poderoso e estático movimento, uma assombrosa e construtiva inacção, um existir inominável, que branda e firmemente renovam e fortalecem as fundações originais.
Para lá do sonho e da ilusória realidade do comum viver, ergue-se, do nada e no nada, toda a sustentação do ser…

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

A Barbárie



Há seres humanos absolutamente ignóbeis. Têm uma tal baixeza moral, uma tal ausência de escrúpulos, uma tal vileza entranhada, que compará-los aos animais seria subestimar estes e sobrestimar aqueles.
Talvez já não reste mais nada que esses seres execráveis não façam por dinheiro. Já mentem, já enganam, já manipulam, já roubam, já torturam, já matam. Pouco mais lhes deve faltar. E quando descem assim tão baixo, quando a ignomínia e a crueldade lhes parecem virtudes a exaltar perante o altar do deus-diabo-dinheiro-poder, esses seres, de humanos, já nada têm. São apenas uma estrutura de ossos e órgãos e tecido que funcionam por instinto, têm um cérebro mecanizado e animalesco cujo único e supremo objectivo é a total dependência do vil metal. Podem ter boas falas, maneiras correctas, ser até corteses e amáveis. Mas tudo isso são apenas fúteis adornos que ocultam uma natureza astuta, obscura, abominável, predadora.
Lamentavelmente, os exemplos deste tipo de seres são profusos. Hoje conheci e dei a conhecer mais um elucidativo exemplo:  http://aventar.eu/2012/10/18/campanhas-de-marketing-superagressivas-ou-fraude/comment-page-1/#comment-78169.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Dias Internacionais? Dias Mundiais?




Mas quem teriam sido os energúmenos que inventaram tal aberração? E quem serão as bestas que, ano após ano, alimentam semelhante estupidez? Um dia para lembrar a erradicação da pobreza? O dia mundial da alimentação? Só se for para chamar mais a atenção para os exageros maricas de uma alimentação gourmet, ridiculamente chamada saudável e estupidamente encarecida pelos profusos e bem disfarçados interesses financeiros que por detrás dela pululam. Mas será que toda a gente emparveceu? Mas afinal, até que grau de absurdo e de desumanidade conseguirá chegar o ser humano?
O homem existe na Terra há milhões e anos. A fome é, desde que temos consciência histórica, um flagelo que afecta a humanidade. Existem registos e evidências históricas de que a fome sempre tem ensombrado o percurso evolutivo do homem. E eis-nos no presente, tecnológica e cientificamente mais evoluídos, desfrutando de importantes avanços em áreas chave como a medicina e a física, e rodeados de todo o tipo de comodidades e de geringonças electrónicas. Temos paspalhos de jeitos hollywoodescos a brincar aos duplos da sétima arte que são generosamente amparados na sua estupidez pela tecnologia, apenas para bater recordes. Temos fêmeas desmioladas a serem assistidas pela tecnologia, na área da estética, que metem silicone no corpo por um lado e pelo outro tiram gorduras através do asqueroso processo da lipossucção. Ah, e temos também as unhas de gel, com direito a escola própria e consequentes “licenciaturas”, “mestrados” e “doutoramentos”! Temos também a manipulação genética dos alimentos, e a produção massiva de animais para abate, aos quais se têm vindo a proporcionar condições cada vez mais confortáveis (gaiolas mais espaçosas e arejadas) para minimizar os efeitos traumáticos.
Ora, tendo nós tudo o que acabei de enunciar, o que demonstra inteligência e engenho (salvo na parte dos saltos para quebrar recordes, os silicones, as unhas de gel, os alimentos geneticamente manipulados e a exploração desumana dos animais!) e continuando nós, século após século, a “tentar” erradicar a fome pensando nisso um dia por ano, ou mostrando como se deve comer saudável, também um dia por ano, só consigo tirar uma conclusão: nós não queremos erradicar a fome! Nós continuamos a construir a nossa felicidade sobre o sofrimento de milhões de seres humanos! Nós somos tão culpados como o são aqueles que fazem da fome um negócio, que transaccionam o sofrimento alheio como se de uma mera mercadoria se tratasse! A fome, longe de ser uma genuína preocupação dos poderosos e dos filantropos, é inquestionavelmente um filão a explorar para o enriquecimento dessa minoria.
Por isso, caro semelhante, pense profundamente nas suas atitudes, reflicta intensamente nas vidas ceifadas a cada segundo pelos monstros que fomentam a fome. Em vez de encher sacos em hipermercados ou enfardar comida dita saudável nos dias em que o mandam fazer isso, pondere na quantidade de coisas inúteis, fabricadas por mãos inocentes em jornadas de vinte e quatro horas de trabalho e pagas com uma malga de arroz, que a nossa dita sociedade “civilizada” nos induz a comprar!
A fome não se erradica com dias mundiais ou internacionais, nem com campanhas, nem com similares patetices. A fome erradica-se quando se erradicar a pobreza de espírito enraizada no coração humano!

domingo, 14 de outubro de 2012

Queixam-se de quê?




Acabei de ler o último post do meu amigo voza0db no seu esplêndido blogue.
Tenho constatado que as pessoas ficam ofendidíssimas quando se lhes diz que ir para a rua protestar (ou ouvir uma musiquinha, como foi o caso desta última manifestação!) de nada adianta. Ofender-se-ão porquê? Será porque são incapazes de vislumbrar outras soluções? Será porque intimamente precisam de uma multidão que consolide a razão que pensam ter? Mas afinal onde está essa razão? Andar em rebanho a balir em coro não é, nunca foi, sinónimo de razão!
A união que se pretende não se obtém de um ajuntamento cego de massas interiormente divergentes mas sim de uma consciência individual madura e direccionada para uma sustentabilidade global.
A grande maioria das pessoas que se indignam em público sempre teve o mesmo comportamento em privado. Insistem em repetir indefinidamente os mesmos erros achando que algo exterior a elas, um milagre pois, há-de resolver a situação só porque estão indignadas.
Por que não um exercício individual de pensamento, uma análise individual e conscienciosa à raiz dos males? Por que não procurar uma solução na diferença em vez de insistir na destrutiva repetição de velhos comportamentos divisores e comprovadamente errados?
Já cansa este ritual sucessivo de maus governos e indignações inertes. Já aborrece este ziguezaguear masoquista entre dois partidos como se nada mais existisse. Já enjoam a memória curta e a ingenuidade lamentável dos protestos de rua.
Meus caros semelhantes, se continuam a alimentar partidos, nutrindo assim divisões e conflitos, se continuam a prestar vassalagem aos seus representantes com vénias de nariz no chão e salamaleques como se de senhores feudais se tratasse, se continuam a ouvir os discursos políticos como se fossem escrituras, se continuam a seguir o caminho que lhes é imposto e nem sequer se questionam sobre a existência de outros, afinal, queixam-se de quê?
Com franqueza, a paciência tem limites e eu também tenho direito à minha indignação!

 

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

A Coisa

Heavenly Fruits - Vladimir Kush



A maior Virtude é seguir o Tao e só o Tao.

O Tao é elusivo e intangível.
Embora informe e intangível, ele origina a forma.
Embora impreciso e elusivo, ele origina os formatos.
Embora sombrio e obscuro, ele é o espírito, a essência,
o sopro da vida de todas as coisas.

Através dos tempos o seu nome tem sido preservado
para evocar o princípio de todas as coisas.
Como sei de que modo eram todas as coisas no princípio?
Olho para dentro de mim e vejo o que está dentro de mim.
 
Lao-tzu em O Tao – Verso 21





Podem dar-lhe o nome que quiserem, defini-la de mil e uma maneiras, explicá-la por A + B, rejeitá-la com argumentos intelectuais de peso, negá-la com rios de provas físicas. A Coisa, porém, não é definível, não é explicável. E mesmo que rejeitada, mesmo que veementemente negada, ela continua aí. Continua aqui. Porque a Coisa é. A Coisa existe. A Coisa e nós é uma coisa só.
A Coisa é confundida com muita coisa. Isto, claro, quando se sente a Coisa. A maioria não a sente, ou se a sente, sente-a tão pouco que é como se a não sentisse.
Outros sentem-na um pouco mais. Mas sentem-na como algo que não é deles, como algo que lhes é completamente alheio. Não compreendendo a Coisa mas adivinhando-lhe a existência, em vez de a explorarem com o mesmo cuidado e carinho com que se buscam sentimentos nos escaninhos da alma, trajam-na de divindade e veneram-na. Veneram-na lá longe, no atroz limiar entre o real e a ilusão, afastando-a assim ainda mais de si próprios. Criam toda uma panóplia de dogmas, explicações, imposições. E então a Coisa, mascarada, camuflada e distorcida, permanece na ignorância e no olvido, reduzida à serventia de um vazio ritual.
Outros há que por vezes a sentem com força, com vigor. Mas, porque as suas vidas estão tão orientadas para o exterior de si mesmos, a explicação fácil e comummente aceite parece-lhes tão satisfatória que dúvidas, se as houvesse, nem a nascer chegariam. “É a inspiração” dizem uns. “É a voz da consciência” dizem outros. “Sinto uma angustiazinha, mas isto há-de passar” comentam alguns. “Parece que tenho um mau pressentimento. O melhor é pensar noutra coisa e esquecer” ou “Parece que me falta qualquer coisa. Sinto insatisfação. Vou fazer umas compras. Vou sentir-me melhor, com toda a certeza” decidem outros ainda. E a Coisa, chamada por mil nomes que não o dela, é posta de lado, ficando arrincoada num qualquer obscuro recanto da mente onde também moram a incompletude, a insegurança, o medo…
Endeusar a Coisa ou ignorá-la de nada adianta. Esquecê-la, adiá-la, escondê-la, rejeitá-la, disfarçá-la, calá-la, é absolutamente impossível. Porque a Coisa e nós é uma coisa só. A negação da Coisa na vida é uma automutilação, como se se decidisse atar uma perna à nascença e passar pela vida tendo-a mas não a usando. Viver sem consciência da Coisa é viver com limitação: existe-se mas está-se incompleto; é-se, mas não se é pleno; vive-se, mas não na íntegra.
Viver na consciência da Coisa é tudo. E quando se tem tudo, não se precisa de coisa nenhuma...
 

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

As Manifestações ou Uma Visão Particular e Crua Sobre o Global




Se a mobilização a que se assiste neste momento tivesse em vista um concerto, um jogo de futebol, uma festa na praia com música pimba ou uma festa partidária, lá estaria o povinho em peso. Iriam todos sem hesitar, desde que a música puxasse o pé para a dança, o tinto e a cerveja escorregassem com fartura e os comes fossem de borla. E depois seria vê-los, anestesiados e aturdidos, autênticas baratas tontas, a idolatrar, com caras de basbaque e uma admiração estúpida no olhar, uma qualquer criatura dita famosa, criada à medida do tosco gosto da populaça.
Mas a mobilização é para uma manifestação. E o povo só comparece se não houver jogo na televisão, ou churrasco na casa dos amigos, ou sol que permita um picnic ou uma tarde de praia bem passada com bolas de Berlim e gelados. A indignação, essa, fica para outra altura, quando houver mais vagar. E isso se durar até lá, porque o que é costumeiro é desabafar em voz alta, quase a berrar, no café, com os amigos e conhecidos. Ou então mandar uns palpites às câmaras de televisão que, nem sei se por acaso ou por decreto, se empenham sempre em escolher a dedo, para entrevistar, os espécimenes mais broncos e mais rudes.
Este é o comportamento barbárico de uma das maiores faixas da população. Pela sua natureza e dimensão, portanto, constitui esta faixa a menina dos olhos dos governos! Ela é manipulável, contenta-se com pouco. Aguenta as pancadas sucessivas porque é formada por gente habituada ao trabalho duro e ao sacrifício, e por gente de mão leve no que toca ao alheio. O deus no céu e o clube de futebol na terra constituem um terreno firme para cultivar a ignorância, para alimentar as tradições que incentivam à não-mudança. Esta faixa é a grande garantia de um voto no quadrado certo do político velhaco. Uns beijos lambuzados, um aroma a peixe e umas escamas que teimosamente se agarram à mão dos passou-bens, é tudo o que é preciso para vender o voto e garantir a desejada continuidade. E o povo, inculto, ignorante, crédulo e impreparado compra-o, sem sequer olhar ao preço que por ele terá de pagar.
Nesta faixa incluem-se também os imbecis. São aqueles que acham que sabem tudo, que têm razão em tudo, que percebem de tudo. São os que, apesar de, na sua maioria, terem formação, permaneceram no nível básico no que toca à inteligência e ao senso comum. São os que vivem segundo valores e princípios de ocasião, distorcendo-os e tergiversando-os a seu bel-prazer, sempre com o intuito de ganhar, obter, subir. Normalmente passam pela vida montados em topos de gama e despedem-se dela com o mesmo grau de estupidez com que nasceram.
Estes são os que comparecem nas manifestações para fazerem a triste figura do engraçadinho no meio da multidão. Gostam de dar nas vistas e, se lhes for dada demasiada atenção, proferem parvoíces com a convicção do mentiroso patológico e com a cadência de um disco riscado. Têm tendência para gerar conflitos e desfrutam com os tumultos que causam. São bastante apetecíveis para os abutres do poder. Caracterizados pela imbecilidade dos seguidores de modas, votam pelo som que melhor satisfaz os seus ouvidos. Normalmente soam-lhes bem as palavras dinheiro, poder, luxo, etc. Costumam votar no partido da moda, isto é, no mais provável vencedor, mas não sabem, em consciência, porque o fazem.
E fica assim o governo descansado: o povo que for à rua vociferará alguns impropérios para aliviar a tensão e voltará a casa tão manso, tão passivo e tão conformado como antes!
A segunda maior faixa da população é constituída por aqueles que, tendo educação, formação específica, princípios e valores, são no entanto discretos, sensatos, ponderados. Tratando-se de pessoas equilibradas e responsáveis, elas apercebem-se com racionalidade e senso comum, da degradação galopante da sociedade, da economia, dos princípios democráticos e de sã convivência. São normalmente pessoas exemplares como cidadãos, como profissionais, como conterrâneos. As que votam fazem-no em consciência, dando sempre ao eleito o benefício da dúvida em nome de uma esperança mais que desejada. As que não votam, branda e persistentemente vão tentando melhorar o mundo que as rodeia.
Se comparecem nas manifestações, o seu comportamento é sempre cívico e educado. Mantêm no pensamento as dificuldades por que passam os seus semelhantes e tentam sempre fazer o seu melhor. Porque são pouco influenciáveis e pensam por si próprias, conhecem bem os poderosos maquinismos que se movem por detrás das desgraças de um povo. Sabem muito bem quem são os amos e senhores que ditam, implacáveis, os destinos do mundo.
É para esta faixa que se direcciona a pouca conversa inteligente dos políticos. Não é, no entanto, uma faixa fácil de convencer.
E finalmente, há uma terceira faixa de população que é, na sua esmagadora maioria, a responsável pela situação actual. É a faixa dos magnatas, dos banqueiros, dos grandes empresários, dos políticos, dos interesseiros, dos corruptos, dos ladrões, dos extorsionistas, dos habilidosos, dos alpinistas sociais, do jet-set, dos oportunistas, etc., etc., etc.
Ora estes, que se têm em grande conta e pertencem, segundo os próprios, a uma estirpe superior, jamais se misturam em aglomerados populares. Jamais partilham também do rosário de lamentações do povinho, que, aliás, se queixa por tudo e por nada. Alguém que passe dificuldades ou que não tenha que dar de comer aos filhos, para estes “seres superiores e intocáveis” são meras afirmações que soam vagamente a títulos deprimentes de filmes lamechas do pós-guerra. E, obviamente, para estes cérebros de cabeça de alfinete desprovidos de qualquer compaixão, um salário mínimo é mais do que suficiente para que as famílias, ainda que filhas de um deus menor, vivam confortavelmente.
Esta é a faixa que sustenta o poder no seu âmbito geral. Votam uns nos outros, formam compadrios e assinam acordos. Fazem pender o prato da balança para o lado que mais lhes convém e chamam a isso equidade. Possuem um sistema de interajuda a nível internacional e encobrem-se uns aos outros. Tudo em nome do país, da melhoria das condições de vida, de uma democracia que não passa de uma marca subliminal implantada no cérebro dos ignorantes, dos imbecis e dos crédulos.
Esta é a faixa que escora o sistema. Um sistema podre e corrupto, de interesses elitistas, de profundo desprezo pela vida humana, pelos valores fundamentais do homem. Esta é a faixa que salvaguarda a sua própria existência à custa da constante degradação das condições de vida, de educação, de saúde, de sustentabilidade.
Por tudo isto, as manifestações, por maior imponência que possam vir a ter, serão sempre, para a faixa que detém o controlo, um divertimento passageiro e nunca uma pedra no sapato.
 

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Das Inutilidades e Da Alma



Inner Soul Search - Colette Guggenheim


É tudo tão inútil. Ou, pelo menos quase tudo. Não são inúteis os sorrisos, não aqueles que se esboçam com bonomia. Mas são inúteis aqueles que lembram uma irreprimida contracção muscular. Não são inúteis os bons dias que transpiram sinceridade e soam a um trinar primaveril. São inúteis, porém, os que são dados entredentes, que não transmitem nada mais que um visual esgar, contrariado por um som que se pretendia mudo.
É inútil o gesto que contraria a palavra e é inútil a palavra que não se espelha no movimento corporal. É inútil a cortesia estudada, a simpatia seca, a disponibilidade que se espera não receba aceitação. São inúteis os sim que são não, os assentimentos e as concordâncias como meros nutrientes para o ego. São inúteis as dádivas focadas no receber e os abraços vigorosos que esperam recompensa.
São inúteis os aplausos impregnados de inveja e as adulações nascidas do ciúme. Inúteis também as opiniões forjadas em pensamento alheio e as atitudes escolhidas em passerelle. É inútil o que se diz e desdiz ao sabor das gentes. São inúteis as palavras de honra ditadas pela ausência da honra, e as indignações em defesa de inexistentes integridades.
Todavia, jamais será inútil todo e qualquer acto, palavra, ou sentimento advindo da profundeza da alma do ser que, sozinho, procura no silêncio a marca da verdade.


domingo, 9 de setembro de 2012

A Era do Camaleão


Human Chameleon - Margarita Fields


Tal como eles, mudamos conforme o meio, no nosso caso, o meio social. Somos inconstantes, seguimos o turbilhão. Jamais paramos para pensar “Aonde é que isto me leva?”, tal é a pressa de chegar. Mas chegar onde?
Qualquer que seja o turbilhão, ele só pode desembocar no destino que o pensamento colectivo lhe ditou. Vai o pensamento da massa para ali, e todos vão para ali. Mas se o pensamento da massa indica agora que o caminho é o oposto, eis-nos que vamos pelo caminho contrário sem sequer pestanejar. O que somos? Títeres?
Avança por impulsos a humanidade. Ditados os destinos numa determinada direcção, parece desaparecer a individualidade, característica intrínseca, e o instinto de chegar a algum lado sobrepõe-se à razão. Mas chegar onde?
Não há destino comum que não passe por uma consolidação do pensamento individual. Não há lugar efectivo de chegada enquanto não houver consenso no lugar de partida.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Repouso


Pájaro - Jesús Díaz Ferrer

Já as últimas semanas haviam decorrido pardas. O pensamento, fugidio, escusava-se à concentração. As ideias iam e vinham, para depois, entre meias palavras e sem grandes explicações, se refugiarem em recantos da mente quase olvidados. Talvez façam ninho. Talvez proliferem. Ou talvez morram por ali e se tornem apenas resquícios empoeirados e ressequidos.
É tempo, pois, de dar descanso à máquina que alberga a mente, ao corpo que alberga o espírito. É tempo de deixar vaguear livremente os olhos e as vontades. Talvez em Setembro, tal como com as uvas, se possam colher frutos maduros, esperanças de puros néctares.
Aos meus estimados leitores, os votos de boas férias e que o repouso lhes traga sempre algum alimento para alma!

terça-feira, 22 de maio de 2012

Tantos a dormir e tão poucos despertos...

E será que queremos despertar?

Ou será que queremos continuar a pensar que somos livres, não passando porém de autómatos manipulados, possuídos, controlados?

De olhos completamente fechados, aceitamos passivamente viver nas masmorras douradas do sistema, nas garras implacáveis de uma civilização aberrante!




Fonte: http://www.crackinfilms.com/

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Sabe que...

Pintura surrealista de Ricardo Fernandez Ortega (nascido em Durango, México, em 1971)

Se me perco na bruma do nada,
se estremeço no anseio de horizontes invisíveis,
se os imagino e preencho de tudo e de coisa nenhuma
p’ra lhes sentir a realidade, a função,
sabe que não é por capricho, nem luxo nem devaneio;
apenas procuro adivinhar-lhes com os olhos da carne
na imensidade que os da alma contemplam, o propósito
que lhes supõe o coração…

E se me perco na noite escura,
se aos tropeços apalpo ilusões informes,
se lhes pego com mão insegura e as cinjo contra o peito
p’ra lhes encurtar a lonjura, a vastidão,
sabe que não é por cegueira, nem sandice nem loucura;
apenas procuro olhá-las com a verdade da alma
e encontrar-lhes a mentira que encarcera a minha vida
nesta infinda solidão…

E se pareço distante, ausente,
se prefiro o silêncio e os pensamentos mudos,
se os albergo e nutro à minha única e absurda maneira
p’ra olhá-los de frente, saber o que são,
sabe que não é por soberba, nem vaidade nem parvoeira;
apenas procuro conhecer-lhes o sentido, e neles busco a causa
do desassossego,  do vazio, do medo; da vida, afinal,
a derradeira razão…

sábado, 14 de abril de 2012

Perguntas Que Não Se Fazem

The Mirror - Frank Markham Skipworth (1854-1929)

Eramos mais que uma meia dúzia. O ruído da conversa banal de hora de almoço, apesar de persistente, não penetrou as defesas que o meu pensamento há muito havia criado para protecção dos seus raciocínios. Subitamente, incapaz de resistir à força da curiosidade suscitada por um pensamento que me habitava havia uns dias, sem quaisquer preâmbulos, disparei:
- Meus caros, por acaso alguma vez se lhes assoma à mente a pergunta “Quem sou eu?” ou “Porque existo?” ou “Que raio ando eu aqui a fazer?”
Os primeiros segundos foram de profundo silêncio.
- E então? Alguma vez fizeram a si próprios este tipo de perguntas? - insistia eu.
- Existo porque penso – retorquiu alguém.
- Não, não é isso – a minha voz denotava impaciência – não quero que me respondam a essas perguntas, quero que me digam se as fazem a vocês próprios. Quero saber se se questionam dessa maneira…
Por entre a silenciosa resposta da maioria, dada com um simples abanar de cabeça em sinal de negação, alguém declara:
- Eu é mais o contrário: penso que vale a pena existir por causa de certas coisas da vida…
Seguiu-se a óbvia gargalhada geral. Segundos passados apenas e já se havia retomado a conversa banal no banal clima de boa disposição.
Olhei em volta. Vi sorrisos. Constatei a boa disposição.
No silêncio que me impus surgiu-me outra questão: serei eu a única que se entristece com a ligeireza com que a maioria das pessoas considera a vida? A única que se assombra com a infinidade de perguntas todavia por responder?

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Da Necessidade de Se Vir a Ser Alguma Coisa



Parece-me absurda a necessidade de se vir a ser alguma coisa para além do que já se é. Afigura-se-me como um factor de auto-anulação, um desperdício da natureza própria. O indivíduo que, por essência, já é alguma coisa, despreza totalmente o que é e coloca-se no caminho ilusório do devir, ao serviço da transitoriedade e em detrimento do autoconhecimento e da individualidade. Troca a sua unicidade original pela opaca cópia da imitação.
Ao longo desse caminho, olhos postos numa meta quimérica, o indivíduo luta ferozmente pelo objectivo do momento, insensível e alheio ao contínuo violentar da sua própria individualidade. Não existe tal objectivo. É um logro sem realidade porque é gerado na inconsistência do desejo. É um círculo infinito. O desejo nasce, e sendo satisfeito morre para renascer mais forte, mais exigente, mais enganador, mais embotador, mais castrante.
Ninguém consegue ser algo que não seja já, é um facto. Recém-nascido, criança, jovem, maduro ou velho, é-se o que se é. A quididade está aí, em qualquer altura da vida. Ora o verdadeiro problema reside no devir ilusório, no desejo portanto. Porque quererá o indivíduo vir a ser alguma coisa?
A razão mais evidente, assim à primeira vista, será a insuficiência e a inferioridade que o indivíduo sente em si mesmo. Porque não se busca, porque permanece interiormente inexplorado, não se reconhece como um todo integral, completo. Tortura-se então no vasto deserto do desconhecimento de si próprio e convence-se de uma aparente incompletude. Há um vazio que lhe morde a alma. Uma solidão que lhe alimenta o medo e uma pequenez que dele advém. Fugindo de si mesmo, o instinto gregário leva-o à associação cega. Porque não sabe ser plural na sua qualidade de único, na sua individualidade exclusiva, eis que, por suas mãos, tece o seu próprio drama!
No patriotismo, porque perdido e sem referências, pensa que se encontra. E cria divisão entre os semelhantes. Na religião, porque inconsciente de si e desprovido de autoconhecimento, acredita que está a salvo. E cria divisão entre os semelhantes. No partido político, porque egocêntrico e temeroso, crê-se justo e corajoso. E cria divisão entre os semelhantes. Na classe social, no estilo de vida, no clube de futebol, nos bens materiais, porque vazio e insignificante, julga encontrar importância e plenitude. E cria divisão entre os semelhantes. Na agregação, no sentimento de pertencer a algo maior, porque pequeno e impotente, pensa encontrar segurança.
Dividido e fragmentado, firme no caminho do vir a ser, que não é senão desejo de ser algo incitado pelo esquecimento do que se é, o indivíduo estropia cada vez mais o seu carácter humano. Que aberrante mutação o esperará num futuro gerado na insustentabilidade do devir?

terça-feira, 3 de abril de 2012

O Silêncio das Palavras

L'Ecole du Silence - 1929 (Jean Delville, 1867 - 1953)

  
Comunicar é bastante difícil para quem não partilha da quotidiana e fútil azáfama. Falar do tempo é uma absurda trivialidade e reduz o diálogo ao nível da especulação pateta. Todos os demais assuntos com que somos confrontados diariamente ou se classificam na patetice especulativa ou no absurdo redutor, e apenas deixam como rasto o eco de um insípido e incómodo cacarejo.
Tenho por isso optado por ficar calada. Não que me não corroam por dentro ácidas respostas com lesta vontade de expressão exterior, mas a antevisão da estupidez e inutilidade do diálogo que suscitariam faz com que mantenha firme a decisão de manter os lábios hermeticamente fechados.
Talvez pelo manto de nuvens cinzentas que impedem a plenitude da acção do sol, ou talvez pelo processo rítmico da vida que nos balança ciclicamente de um polo a outro, a alegria expansiva transforma-se num sentimento sombrio e introspectivo. É então que me pergunto se a palavra falada terá alguma serventia, salvaguardada porém aquela raríssima excepção em que é usada exactamente ao mesmo nível por ambos os interlocutores e serve de trampolim para uma comunicação que vai muito além dela.
Cada vez mais lhe vejo menos utilidade. Cada vez mais lhe vejo o aspecto de arma de arremesso e menos o aspecto de veículo de exploração e aprendizagem. Cada vez mais a vejo como astuciosa articulação e menos como instrumento de compreensão.
Prefiro, neste momento, a palavra escrita como reflexo da palavra não proferida que andou, muda, curiosa e bailariqueira, pelos silêncios e horizontes infinitos do pensamento. Pode não reflectir, sobre o fundo em que se estampa, qualquer verdade. Pode escrever-se injectando-lhe em cada letra um milhão de partículas de dúvida, um milhão de meias verdades ou de francas falsidades. Mas está aí, registada para memória futura, e tomará tantos matizes quantos os olhares que se lhe deitem ao lê-la.

Entre todas estas vantagens, tem a palavra escrita uma outra que em valor todas excede: porque é virgem filha do silêncio, não tendo sido estraçalhada pelo ruído da palavra falada, mantém intacta e pura a essência da fonte de onde proveio!


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