Parece-me absurda a necessidade de se vir a ser alguma coisa
para além do que já se é. Afigura-se-me como um factor de auto-anulação, um
desperdício da natureza própria. O indivíduo que, por essência, já é alguma
coisa, despreza totalmente o que é e coloca-se no caminho ilusório do devir, ao
serviço da transitoriedade e em detrimento do autoconhecimento e da individualidade.
Troca a sua unicidade original pela opaca cópia da imitação.
Ao longo desse caminho, olhos postos numa meta quimérica, o
indivíduo luta ferozmente pelo objectivo do momento, insensível e alheio ao
contínuo violentar da sua própria individualidade. Não existe tal objectivo. É
um logro sem realidade porque é gerado na inconsistência do desejo. É um
círculo infinito. O desejo nasce, e sendo satisfeito morre para renascer mais
forte, mais exigente, mais enganador, mais embotador, mais castrante.
Ninguém consegue ser algo que não seja já, é um facto. Recém-nascido,
criança, jovem, maduro ou velho, é-se o que se é. A quididade está aí, em
qualquer altura da vida. Ora o verdadeiro problema reside no devir
ilusório, no desejo portanto. Porque quererá o indivíduo vir a ser alguma coisa?
A razão mais evidente, assim à primeira vista, será a
insuficiência e a inferioridade que o indivíduo sente em si mesmo. Porque não
se busca, porque permanece interiormente inexplorado, não se reconhece como um
todo integral, completo. Tortura-se então no vasto deserto do desconhecimento
de si próprio e convence-se de uma aparente incompletude. Há um vazio que lhe
morde a alma. Uma solidão que lhe alimenta o medo e uma pequenez que dele advém.
Fugindo de si mesmo, o instinto gregário leva-o à associação cega. Porque não
sabe ser plural na sua qualidade de único, na sua individualidade exclusiva, eis
que, por suas mãos, tece o seu próprio drama!
No patriotismo, porque perdido e sem referências, pensa que
se encontra. E cria divisão entre os semelhantes. Na religião, porque inconsciente
de si e desprovido de autoconhecimento, acredita que está a salvo. E cria
divisão entre os semelhantes. No partido político, porque egocêntrico e
temeroso, crê-se justo e corajoso. E cria divisão entre os semelhantes. Na
classe social, no estilo de vida, no clube de futebol, nos bens materiais, porque
vazio e insignificante, julga encontrar importância e plenitude. E cria divisão
entre os semelhantes. Na agregação, no sentimento de pertencer a algo maior, porque
pequeno e impotente, pensa encontrar segurança.
Dividido e fragmentado, firme no caminho do vir a ser, que não
é senão desejo de ser algo incitado pelo esquecimento do que se é, o indivíduo estropia
cada vez mais o seu carácter humano. Que aberrante mutação o esperará num
futuro gerado na insustentabilidade do devir?
Olá!
ResponderEliminarA formatação é fantástica!
E logo de pequenino se formata o menino.
Se perguntarmos a uma criança de seis ou sete anos, o que quer ser quando for grande, a resposta já mostra que a formatação está em curso e a ser bem sucedida, pois nem uma única irá responder "Quero ser EU"...
Todas responderão as balelas formatadas do costume "Quero ser bombeiro", "Quero ser polícia", "Quero ser veterinário", "Quero ser jogador de futebol", "Quero ser enfermeira"...
Retirando as improváveis, mas sem dúvida existentes, excepções, as respostas não fogem muito deste grupo de "profissões". Afinal de contas as crianças nascem para serem o não-EU, para serem uma simples peça desta máquina capitalista e desumanizada, que todos continuamos a idolatrar como se mais nada fosse possível existir.
Infelizmente, já não somos capazes de regressar ao EU por meios próprios. Esperemos que num futuro longínquo a nossa espécie, após profunda evolução e diferenciação, se tenha transfigurado e que seja constituída por indivíduos "EU".
Bjhs
É isso mesmo Voz! É deveres preocupante o quanto o ser humano se afasta cada vez mais da sua essência!
ResponderEliminarPor isso é que acho de máxima impotância que as poucas pessoas que têm consciência do que realmente são dêem voz ao seu EU!
Voz, nunca deixes de fazer ouvir a tua voz! :)
Beijinhos
Essa do eu tem muito que se lhe diga .Mais propriamente a crença numa identidade própria implica assumir "de mão beijada" que somos movidos por uma "estrutura" repleta de preconceitos e condicionamentos .O auto conhecimento visa a libertação desse fardo . Agora não tenho tempo, gostei da estranheza dos teus conceitos, voltarei em breve aqui para dialogar e também trazer para a conversa Krisnamurti entre outros .
EliminarCaro Gust99, será um prazer dialogar, e tratando-se de Krishnamurti o prazer será redobrado!
ResponderEliminarFico à espera!