sábado, 5 de janeiro de 2013

O Mundo às Avessas ou o Império da Estupidez


Les Pommes - Paul Cézanne - 1890

Não há maior gerador de confusão do que a estupidez. E cada vez mais é ela o factor determinante no sentido de “progresso” da civilização.
Conceitos tais como o bom senso, a seriedade, o respeito pelo outro, pura e simplesmente desapareceram. Ou imbuíram-se de tal profunda deturpação que o miolo se esboroou, restando apenas a casca e um oco onde cabem todas as barbaridades.
Tudo o que antes era simples, natural, espontâneo, criativo, passou a ser complexo, provocado, intencionalmente elaborado e maquinado segundo as tendências, os gostos, os caprichos e as sofisticações, todos eles induzidos, das massas.
Na pintura, na escultura, na arquitectura, na música, na literatura, a obra deu lugar ao mamarracho. Porque o mamarracho vende, o mamarracho traz fama, o mamarracho nutre o ego e o bolso do fiel devoto do dinheiro. E o resultado está à vista: borrões pueris ou acessos de ira vitimam as telas e logo são catalogados como pioneiros da escola X ou Y, “esculturas” patéticas e aberrantes onde se lêem gritantes frustrações e pedidos de atenção, edifícios inúteis e ostensivos, de formas estridentes que ferem o olhar e a beleza, composições de notas dissonantes em ritmos que lembram evocações satânicas e estados psicadélicos, livros e livros, a maior parte autopublicados, com cheiro intenso a romance de cordel ou a poesia inspirada em vapores etílicos.
Tudo é cada vez mais artificial, mais extravagante, mais estrambótico. E a isto chamam originalidade. Chafurda-se em intelectualidades vazias, frequentam-se eventos sem nexo para se ser aceite, para fazer parte. E a isto chamam cultura. Furam-se e pintam-se os corpos, deformam-se com silicone e botox, numa tentativa absurdamente estúpida de alcançar ideais de beleza. E a isto chamam personalidade. Do alimento fez-se brinquedo e mercadoria. A deliciosa trincadela numa maça sumarenta acabada de colher deu lugar à sofisticação do alimento processado, recreação multicor para a visão, sedutor e oculto veneno para a saúde. E a isto chamam civilização.
Todas as áreas da vida têm vindo a ser sistematicamente artificializadas, mecanizadas, descaracterizadas. Os seres humanos também. E de tal forma que já não sabem o que é trincar uma maça sumarenta acabada de apanhar para lhe sentir o verdadeiro sabor, tal como já não sabem o que é deixar crescer até ao infinito um sentimento interior para lhe conhecer o verdadeiro significado.
De exterior e interior pervertidos, mutantes informes em razão dos seus desconchavos, eis o único feito realmente extraordinário dos seres humanos: a diligente e contínua construção do Império da Estupidez. Só a trincadela na maça e o desenvolvimento do sentir interior, levados a sério, de corpo e alma, por cada um dos indivíduos, poderá conduzir à queda deste império e à ascensão do da verdadeira humanidade.

16 comentários:

  1. Talvez por perceber que está acontecendo exatamente isso que publicas aqui em teu blog, eu procuro uma vida cada vez mais simples, voltada a tudo o que ainda consigo "pescar" de agradável nesse mar de abutres. Precisamos nos proteger o quanto seja possível dessa calamidade que assola o mundo. Não dá para sair por aí partilhando com todos. Há que se ter cada vez mais o discernimento para não se contaminar!
    Seu texto diz muito. Parabéns!
    Um abraço e ótimo ano de 2013!!!
    Sônia

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    1. É isso mesmo, querida amiga! Temos de ser muito cuidadosos para não nos deixarmos enredar nessas teias ilusórias e sinistras. E a solução parece-me ser esta: viver no mundo, mas não pertencer ao mundo!

      Beijo grande e um novo ano pleno de paz!

      Isabel

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  2. Olá Isabel... Adorei a parte da trincadela na maçã! Remete de forma original para uma nova tentativa de recomeçar a humanidade...

    A última vez que fiz referência a estupidez foi com esta frase "Ó maravilhosa estupidez concentrada…"

    Largar o que nos afasta de sermos seres humanos sencientes (dinheiro, objectos supérfluos, telemóveis, facebook e semelhantes, drogas, et cetera) de voltarmos a termos relações presenciais não baseadas na falsidade do digital é, penso eu, algo que urge recuperar!
    Igualmente necessitamos de deixarmos de ser escravos do tempo... Passar a Viver, e não apenas a existir!

    Adoro ler o que escreves...

    Bjhs

    (P.T.: A Fadinha deve estar mesmo sem computador!)

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    1. Olá Voz! Captaste completamente o sentido da trincadela na maça: urge realmente um recomeçar. E esse recomeçar deve ser exactamente como sugeres: Viver e não apenas existir!

      Espero bem que o problema da Fadinha seja só o computador!

      Beijinhos, querido amigo!

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  3. Isabel,

    Sou um grande apreciador da arte nas suas vária vertentes, e uma coisa que constatei há vários anos, é o que dizes: tem-de se ser original a qualquer custo.

    Lembro-me, há cerca de vinte anos ter visto uma exposição de um individuo muito conceituado, daqueles que vêm as suas obras nada percebem, mas que querem ver algo porque os outros também julgam ver. Era um quadro enorme (4x4m), todo em branco, apenas na parte de cima havia um pequeníssimo triângulo e o mesmo na parte de baixo em negro, o resto era tudo branco. Título da tela: o grande "N". O.K. tudo bem, mas a grande maioria do pessoal via nessa "pintura" uma obra-prima.

    A arte acabou há muito tempo, teve o seu apogeu há mais de trinta anos, o que sobra é a originalidade a todo custo, mesmo que seja banal. Consumismo.

    Os valores, palavra fora de moda, já não existe, estamos em plena decadência humana em nome de...nada.

    Temos muitos "amigos" no Facebook mas vivemos cada vez mais isolados, aceitamos qualquer lixo televisivo como fazendo parte da nossa vida. Esquecemos os valores essenciais.

    Um abraço

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    1. Caro Dr. Octopus,

      Grata pelo seu comentário. Expressou sem dúvida uma verdade actual irrefutável ao afirmar "...estamos em plena decadência humana em nome de...nada."!

      Para quando, pergunto-me tantas vezes, o despertar individual para os objectivos globais,universais?

      Beijinhos

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    2. Isabel querida... Para quando?!? Não é para o meu e teu tempo de vida, de certeza absoluta!

      Como já sabes, pois és uma Gota, tal como eu, uns seres lá despertam... Mas meia dúzia de seres despertos e NADA, é a mesma coisa... A ONDA DA MANADA é por demais poderosa para que umas quantas Gotas produzam qualquer efeito...

      Isto agora até me fez lembrar aquela tanga que um qualquer alucinado disse, e o resto achou piada "Uma borboleta bate as asas no Japão e um Furacão nasce no Atlântico" ou algo do tipo!

      Nós Gotas não temos qualquer hipótese de alterar o rumo da MANADA, só podemos é ir para as extremidades e esperar pela hora certa para sair... Pois nós sabemos que a MANADA corre desenfreada em direcção ao precipício!

      Bjhs

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    3. Pois é, Voz, mudar o mundo é sem dúvida uma utopia, mas quem é Gota :) não sabe viver de outra maneira que não seja ter esperança que outras Gotas se lhe juntem... e depois, Gota a Gota (ou seria grão a grão? :) ) vamos pulverizando o mundo com a "água da mudança"; mais cedo ou mais tarde (e tens razão, já não será no nosso tempo de vida) havemos de ser um oceano imenso!

      Beijinhos querido amigo

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  4. Obrigada Isabel, por seres assim...

    Deixo-te aqui uma prenda bonita de se ver, ouvir e sentir:

    https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=H-Li3AMn16s

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    1. Querida aNaTureza, que momentos mágicos me proporcionaste com esta tua prenda!

      Diz-me: por que não conseguirá o Homem viver nessa paz e nessa harmonia? É tão belo o nosso Mundo com tudo o que contém...

      Muito, muito obrigada!

      Beijinho enooooorme

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  5. Concordei com cada palavra... Cada uma! É bom encontrar alguém que partilha dos nossos pensamentos. É como uma lufada de ar fresco num quarto bafiento!

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    1. Querida Ana, muito da minha felicidade consiste em conseguir transmitir aos outros o que me vai na alma. Parece que em ti as minhas palavras encontraram a tal sensibilidade que cada vez mais vai faltando ao ser humano!

      Beijinho grande!

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  6. Olá, Isabel...

    Gostei de lêr-te e entrever esse teu constante apelo a um mundo menos horroroso. Assim cavalgam os instintos perversos da chamada civilização. Tudo são figuras que ocupam os espaços do mundo, dum jeito menos inofensivo que o falar do tempo. Laminam-nos e desapropriam-nos como indivíduos Vivemos a era do escândalo permanente e isso requer grandes disfarces.

    Um abraço.

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    1. Ah minha querida amiga Alexandra, sempre tão atenta a tudo, sempre tão desperta! Já tinha saudades de te ver/ler por aqui!

      Abraço grande cheio de amizade!

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  7. Apenas uma ressalva que faz toda a diferença.

    Também eu em tempos tive esta exacta opinião. Mas depois dei-me conta de um pormenor, tão claro e tão simples, que acho estranho como não percebemos isso logo. É muito bonito olhar para trás, para séculos ou milénios de civilização, tantos pensadores e artistas, e comparar com este nosso mundo, tão sem piada, tão triste, tão decadente... Mas a verdade é que no passado, não havia um Mozart em cada esquina. Também não havia um Da Vinci em cada atelier. Muito menos um Dante em cada página escrita a pena. O passado está pejado de artistas e humanos grotescos, estúpidos e vazios. Mas o tempo levou-os quase todos. Apenas ficaram os melhores, os mais brilhantes, os mais soberbos. E mesmo esses, no seu tempo, na sua época, nem sempre foram vistos como séculos mais tarde. Muitos muito pelo contrário. Na verdade não acredito já que a Humanidade esteja decadente, agora sei que a Humanidade é decadente no seu âmago. O que existem é excepções que o conseguem ver, entender e tocar essa podridão como muito poucos. E são mesmo muito poucos. A probabilidade de um desses diamantes humanos ser nosso contemporâneo é muito reduzida, e a probabilidade de mesmo sendo-o nós o conhecer-mos... Essa é praticamente nula.

    E os poucos génios que existem (e ainda vão existindo alguns) esses não aparecem na tv, não são entrevistados na rádio, nem existem nas páginas dos jornais. E se cortarmos logo à nascença os bêbados, os drogados e os loucos. A probabilidade é que os verdadeiros rasgos de genialidade do nosso tempo nos passem completamente ao lado.

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    1. Meu caro, excelente reflexão! Estou totalmente de acordo com ela, principalmente quando refere que "os poucos génios que existem (e ainda vão existindo alguns) esses não aparecem na tv, não são entrevistados na rádio, nem existem nas páginas dos jornais." Foi precisamente essa parte da não necessidade de protagonismo e fama que pretendi criticar.

      Não há sombra de dúvida que são os homens verdadeiramente geniais e que vivem normalmente envoltos na bruma do anonimato que criam as mais assombrosas obras-primas!

      Muito grata pelo seu comentário!

      Abraço,

      Isabel

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