quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Um só

Toda a gente está alegre
como se desfrutando da maior festa,
ou dirigindo-se aos terraços na Primavera.
Só eu ando à deriva sem direcção,
como um bebé que ainda não sorriu.
Só eu ando triste como se não tivesse lar.
Toda a gente tem mais do que precisa,
só eu pareço ter necessidade.
Tenho a mente de um tolo, que confuso estou!
As outras pessoas são inteligentes e espertas,
só eu sou obscuro.
As outras pessoas são vivas e seguras de si,
só eu sou lento e confuso.
Sou inquieto como as ondas do mar,
como o vento agitado.
Toda a gente tem um objectivo,
só eu sou teimoso e incómodo.
Sou diferente das outras pessoas,
Mesmo assim, sou alimentado pelo Grande.

Lao Tzu
em Tao Te Ching - Verso 20


Quando se toma verdadeira consciência da vida, e isso pode acontecer num qualquer período temporão ou tardio, o caminho que então se depara é um só. E não é certamente nenhum dos traçados pela ordem estabelecida. Tampouco são os que advêm da tradição, mecanicamente trilhados desde tempos imemoriais. Não é nenhum dos que a modernidade inventa e muito menos algum nascido das sombras de esoterismos esquizofrénicos.
É um golpe fatal, essa tomada de consciência. Fere de alto a baixo, por dentro e por fora. Mata sem dó nem piedade crenças, convicções, ideais. Reduz a pó os periclitantes castelos de areia até aí tão bem urdidos. Expõe uma nova nudez que jamais envergonha ou precisa de ser coberta. O sentido das coisas perde o sentido e nasce um sentido novo que nada tem a ver com as coisas.
Os desassossegos, as inquietações, as provações já não são dor nem mágoa nem tristeza, são dádivas. A ofensa já não ofende, o juízo alheio já não perturba, a defesa da opinião própria já não interessa. Já não se desperdiça a palavra e todo o acto é ponderado.
E porque assim é, está-se só, é-se só, e o caminho a trilhar é um só: o caminho da solidão!

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Reservo-me o direito de...

Vive-se num néscio faz-de-conta. É notório, é inegável. Imagina-se uma vida assim ou assado, que nem sequer é fruto de uma imaginação livre e fecunda, mas de uma perspectiva condicionada e limitada por mão alheia, e depois é só sonhar dentro daquele círculo restrito e nos moldes que uma parvoeira colectiva vai ditando.
Daí até à deturpação do natural, até à perversão do mais inócuo e benigno senso comum, é um pequeno passo. De repente, no entusiasmo cego de se vir a ser “alguém” na vida, nada mais importa senão a casmurrice básica e grosseira de atingir um fim.
As armas são a cópia, a imitação, o seguir um caminho já trilhado com tolas pretensões de originalidade, e, o que é bem mais grave, o atropelo implacável e premeditado dos outros na corrida a uma ascensão que não é mais do que uma queda abismal no mais profundo dos infernos. O inferno da ilusão, onde se atribui importância ao não importante, onde se dá valor à inutilidade absoluta, onde se idolatra e cristaliza o inexistente.
O exemplo passou a ser um pau de dois bicos, e a tendência, crescente ao longo dos tempos, tem sido o uso e abuso do bico da esperteza astuta. O outro bico, o da sensatez, apanágio de uma muito pequena minoria, foi completamente ignorado, esquecido, ou não fosse esse o que mantém sob controlo o egocêntrico ego em favor do bem comum, e que, portanto, coarcta os fins individualistas em vista. O fortalecimento do ego, a sua veneração como se fosse o único veículo de sobrevivência, embrutece o juízo, impulsiona o culto da imagem e cobre com espessos mantos de ignorância a outra parte do ser que não é ego. E é assim que esta imbecilidade adquirida (não acredito que seja inata, apenas incutida por contágio) atinge e violenta, de uma forma estrepitosamente cruel, todos os sectores da vida humana.
Assim sendo, não há nada de novo para dizer, nem para fazer. Só poderá acontecer a exacerbação da decadência instalada. As conversas são por demais repetidas porque os temas são sempre os mesmos. As dissertações, os discursos, os sermões, todos radicam no mesmo velho padrão de estupidez inventado algures no tempo. A comunicação entre os seres não é mais que um papaguear obsoleto, e da discussão já não nasce a luz porque a oposição de ideias é mero fingimento que oculta interesses afinal comuns. As acções são velhas, insistente e obstinadamente vestidas à moda, e por isso, ridículas e ineficazes. Não há criação, originalidade. Perdeu-se o salutar hábito de ir à fonte buscar água fresca para saciar a sede. Banha-se pois a multidão no mesmo charco estagnado.
É por tudo isso que me reservo o direito de tapar os ouvidos, de fechar os olhos e de ficar inactiva, sempre que me apetecer.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Reflexo

Pensa-se que se é o que de si próprio se vê. Pensa-se que se é o nome que se tem. Ou a profissão que se tem. Ou a família que se tem. Ou a riqueza que se tem. Ou a pobreza. Pensa-se que se é o rosto, o corpo que se tem. Pensa-se que se é a imagem que de si próprio se vê reflectida no espelho.  

Pensa-se que se se mudar o que de si próprio se vê, se vai ser diferente. 

E pensa-se que o que se vê do outro é o que o outro é. 

Mas não é de todo assim. O reflexo da lua na água não é a lua. É a imagem dela. E uma imagem não tem qualidades, não tem essência, não tem profundidade. 

Portanto insisto nisto: que quando me olho no espelho, aquela que vejo reflectida não sou eu. Não sou, não senhor. Como poderia ser eu se aquela cara, aquela compleição, jamais me vêm à mente quando sinto, quando penso, quando olho, quando reflicto? Eu sou sem rosto, sem corpo. E a imagem que vejo reflectida no espelho é apenas a imagem que os outros têm de mim.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Borobudur

Gosto de pensar que a vida, no seu mais lato sentido, no seu todo, é como o templo de Borobudur!


Tido como um templo budista, Borobudur é, segundo a interpretação religiosa, um local de peregrinação, uma espécie de centro de formação para aqueles que querem atingir a iluminação.  

Ali, o peregrino inicia a sua longa e dura viagem no nível inferior. Percorrendo toda a sua extensão, vai tomando conhecimento das suas diversas características através dos factos relatados nos baixos-relevos com que se vai deparando. Não consegue ver os níveis superiores, nem sequer aquele que está imediatamente acima do seu. Nada há porém que o impeça, mediante o conhecimento que vai obtendo na caminhada, de os pressentir e de tentar até desenhá-los no seu pensamento, na sua imaginação. 

Chegado ao fim desse nível, o peregrino ascende então ao nível seguinte. Aí constata que não só continua a não poder ver os níveis seguintes, como também lhe é impossível ver o nível que acabou de deixar para trás. A viagem, aparentemente, é igual à anterior, situando-se as diferenças apenas na ampliação e refinamento do conhecimento e da consciência.  

Nível a nível, o peregrino vai fazendo o seu percurso ascendente. E sempre sem conseguir ver nem o superior nem o inferior. A sua consciência, constituída pela experiência obtida nos níveis inferiores, ao ser ampliada no nível seguinte é também depurada dos conteúdos supérfluos adquiridos no nível anterior.  

Uma vez chegado ao cimo, onde imponentes estupas contemplam, a partir de majestosa altitude, a natureza circundante, o peregrino terá atingido a iluminação após ter atravessado as três esferas da cosmologia budista representadas pelos diversos níveis: a do Desejo, a da Forma e a da Ausência de Forma. 

Na vida, e não me refiro aqui à sua acepção cronológica mas sim à sua qualidade intemporal e infinita, gosto de pensar que o homem passa por estádios idênticos. Num estádio inicial, digamos, colhe alguma experiência e adquire algum conhecimento, calcorreando caminhos árduos, procurando refúgio das agruras nos desejos e prazeres mundanos, totalmente afundado na massa grosseira e tosca da superficialidade e da materialidade. Assim atolado, não vê, tal como o peregrino em Borobudur, nenhum estádio superior. Mas pode, no seu íntimo, aperceber-se dele, vislumbrá-lo. 

É esse vislumbre que abre caminho para o estádio seguinte. Aí o homem sente a necessidade imperiosa de se libertar das paixões básicas, arrebatadas, que o cegam e que, contra a sua própria vontade, lhe ditam um rumo que já não quer tomar. Embora um pouco ainda como barco à deriva, e apoiando-se quase exclusivamente em estruturas materiais, ele luta já em resposta a um impulso interior que sente mas todavia não compreende. Pelo menos não totalmente. 

Esse impulso interior é a chave de acesso aos estádios seguintes. Apercebendo-se da enorme riqueza e profundidade do seu próprio ser, e começando a ter consciência de “o Todo em Tudo Sempre”, o homem liberta-se das amarras que o prendem à superficialidade, ao individualismo, ao mundo fenomenal.   

Consubstanciando-se, como éter no éter, do estupa no topo do topo, homem e divindade, feitos um, contemplam o eterno incomensurável.  

Gosto de pensar que assim é…

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Palha ou Sopa?

Se analisarmos, com profundidade e isenção, a aparente e estrepitosa barafunda económico-financeira a que nos habituaram a chamar “crise”, iremos por certo dar-nos conta das insidiosas maquinações que, nos bastidores, a fazem carburar, obviamente ao serviço e no soberano interesse dos seus criadores.  

Se não tomarmos cuidado, se não abrirmos bem os olhos – os da face e os da mente –, se não agirmos de moto próprio fazendo a destrinça sensata entre o que é essencial e o que é forjado, contrariamente às certezas de algumas mentes mentecaptas, a chamada crise não terminará, com toda a certeza, nem dentro de um ano nem nas próximas décadas. O que se manterá sim, incólume e com poder acrescido, será a monstruosa e ignóbil minoria regente e, por conseguinte, manter-se-ão também as crescentes dificuldades da maior parte da população mundial. 

Dizem que não há dinheiro, mas, no entanto, injectam-nos diariamente quantidades industriais de publicidade que, mais ou menos sub-repticiamente, incita ao consumismo. Não vemos, porém, nesse subtil incitamento, quaisquer referências a bens essenciais, pois não? E porquê? Porque é o supérfluo que alimenta a ganância dessa minoria asquerosa que rege o planeta. É essa minoria que dita as nossas pseudonecessidades! Todo o burro come palha, a questão é saber-lha dar! E é precisamente isto o que a maligna minoria no poder tem feito, faz e continuará a fazer. A menos que cada um faça a sua parte, claro está, e se recuse a comê-la. 

Enquanto muitas pessoas procuram já ajuda para as necessidades básicas da vida – comida, roupa e tecto – aquela repugnante minoria maquiavelicamente incute nas mentes fracas e sugestionáveis das massas um patamar de posses sem as quais, afirma, a vida não terá qualquer significado e será triste e miserável. Faz-lhes então acreditar que um determinado leque de bens é essencial à sobrevivência e à felicidade. E as massas acreditam.  

E tal como a rã, na água que gradualmente se vai aquecendo, não foge a uma morte certa devido à lenta adaptação a que é submetida, também as massas com algum poder aquisitivo não sentem a influência progressiva, e portanto a necessidade de saltar para fora desse lucrativo e macabro esquema, e também elas morrem – com os neurónios cozidos – para um discernimento sensato das intenções daquela maléfica minoria. Num ímpeto natural de imitação, de comparação e de competição, o indivíduo assim padronizado, consome sofregamente, e sem prévia reflexão, o que lhe é posto à frente dos olhos, com o objectivo de ser feliz, e de, sobretudo, ser igual ou melhor do que o seu parceiro do lado. Convém, evidentemente, à abominável minoria que se mantenha um elevado grau de ignorância. Corrobora essa conveniência a crescente involução dos processos educativos. 

E a um nível bem mais lamentável, o indivíduo pobre, aquele que realmente tem de lutar pela sobrevivência – e que constitui a grande maioria da população do planeta – tem a mente já per si programada, direccionada, única e exclusivamente, para a preservação da própria vida. Uma mente com preocupações a este nível não tem espaço para outras cogitações. Uma mente assim não questiona, não raciocina, não discerne e portanto, não riposta, não se opõe, não luta (eis a razão primordial pela qual não convém acabar com a fome no mundo!). E assim não perturba as bárbaras manobras de formatação levadas a cabo pela odiosa minoria. 

Eu não como palha. Gosto de me sentir livre. Por isso bastam-me uma sopa e uma mente desperta.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Silêncio e Solidão

Chegados os dias cinzentos e o desconforto de uma ventania ou chuvada assoma-se à alma um sentimento de melancolia e nasce uma tendência natural para o recolhimento. Não que não aconteça durante o resto do ano. Mas agora, com os frios e as neblinas e a vasta paleta da natureza quase reduzida a tons pardos, o convite ao recolhimento é mais apelativo e a inclinação bem mais profunda. 

Em pousio é como quero ficar. Quase em estado letárgico para quem me vê por fora e serenamente activa para quem me vê por dentro. Na solidão e no silêncio do meu ser quero descansar. E explorar, descobrir o novo.  

É que tudo muda. Tudo menos o lavrar do homem. Lavrou outrora assim, e qual jumento embezerrado, jamais experimentou lavrar assado. Lavrou sempre a mesma terra, cansando-a. Lavrou sempre da mesma maneira, ainda que mudasse o aspecto das alfaias. Colheu sempre o mesmo, porque semeou sempre o mesmo. Mudaram os tempos, as épocas. Passaram os anos, os séculos. E o homem a lavrar e a colher sempre da mesma maneira. Jamais permaneceu em pousio, nem a terra lavrada pelo homem, nem o homem lavrado pela terra. 

Porque não fica em pousio é que o homem é tonta e frivolamente activo por fora. Cruel e violentamente activo por fora. E por dentro, desoladamente hibernante, inconscientemente ignorante. Tristemente cego e surdo para uma eventual primavera que o possa despertar. 

E enquanto o homem persiste no contínuo e desenfreado aperfeiçoar das alfaias, no ridículo manter na moda das albardas e no obtuso impedir do descanso da terra, eu busco, no inverno, no terreno fértil da solidão e do silêncio, sementes novas que hei-de deitar à terra. Sementes que, na primavera,  germinarão na mudança que eu própria gerei, serenamente activa por dentro, quase letárgica por fora.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Presunção e água benta...

A autoridade, o poder, a prepotência, a vaidade, e outros conceitos afins, só têm valor na razão directa da importância que se lhes dá. Não se lhes dê nenhuma, e em breve serão conceitos perdidos na bruma dos tempos! 

O grande problema reside no facto de a maior parte das pessoas sentir, consciente ou inconscientemente, a necessidade de se vergar perante outras que crê melhores, superiores a si. Não existe ilusão maior! Experimentem não curvar-se perante os ares de importância de que alguns se tomam, e verão como se lhes desenfuna o ego, como desincham tão estabalhoada e deselegantemente qual balão furado! 

Se existem poderosos, fomos nós que lhes outorgámos o poder. Se existem vaidosos, fomos nós que lhes alimentámos a vaidade. Se existem a autoridade e o comando e a prepotência, fomos nós que os acatámos.

Só a atitude individual, sensata e ponderada, poderá gerar a mudança global. Em vez de fazer vénias, deixando perigosamente desprotegida uma determinada parte do corpo, ergamos o queixo e olhemos em frente, sem a mais mínima tentação sequer de desviar o olhar! Assim fazendo, surpreendidos veremos como ruem por terra os ímpetos de superioridade, os arranques de prepotência, os ataques de ditadura, as crises de autoridade e os arrotos de poder!

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Nascimento e Morte – Uma Mesma Natureza?

“Sendo certo que tudo está no Todo,
não é menos certo que o Todo está em todas as coisas.”

O Kybalion


A morte sempre suscitou curiosidade e sempre se tem tentado indagar sobre ela. Têm-se forjado ao longo dos tempos todos os géneros de teorias. Meras especulações contudo. Dela ninguém jamais regressou para dar conta da sua existência e natureza. 

Consigo entender, até certo ponto, que ela cause curiosidade, temor. Depois de vivida uma vida, não importa durante quanto tempo, surgirá sempre uma apoquentação, mais ou menos intensa, advinda do (quase) natural sentido de posse do ser humano. A perspectiva de se deixar para trás aqueles e aquilo que, toda a vida, se trataram como uma posse – não importa se material, se afectiva –, que possivelmente se chegaram até a confundir com o próprio eu, pinta de crueldade e medo qualquer imagem que se possa construir da morte e do estado pós-morte. Tenho para mim que são estes – o sentido de posse e por conseguinte o sentido de perda – os factores cruciais e motrizes para a busca ad eternum de uma explicação, conveniente diga-se de passagem, para a morte. 

Mas o verdadeiro busílis da questão colocada em título reside no seguinte: porque é que o nascimento não suscita a mesma curiosidade? Será que também aqui são determinantes os factores de sentido de posse e de perda? Porque afinal, quando se nasce, nasce-se sem nada.  

Questionei sobre o assunto várias pessoas. As respostas obtidas parecem ir no sentido de que o nascimento não importa – é indiferente de onde se provém, a partir do que é que se nasce – mas importa, e muito, a morte. Surpreendentemente, ou não, não obtive respostas firmes quanto à razão de assim se pensar. Leva-me tal a deduzir que estas questões não foram nunca antes ponderadas, e a concluir que, para os meus entrevistados, o rótulo de avis rara me assentaria que nem luva.  

De que me rotulariam então, se eu lhes dissesse que nascimento e morte são da mesma natureza? Que a diferença que aparentemente os distingue só existe se para eles se olhar através do véu do apego? Se eu lhes dissesse que o que são ao nascer é o que são ao morrer? Que a única diferença, intangível e imensurável, reside no aumento progressivo da consciência durante o tempo que permeia o nascer e o morrer? E que essa mesma consciência poderá ser o tecido primordial do universo? 

Se nasci para esta existência, morri para algo anterior. Se morri para esta existência, nasci para algo posterior. Trata-se apenas de um processo, um continuum espaço-tempo.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Nevoeiro

O dia foi como quase todos os outros. Enfrentar a estupidez, o fingimento. Responder com a deixa mais adequada ao papel que cada um gosta de representar. Engolir sapos também faz parte. E fazer de conta que não se entende a intenção também. E por tudo isto, o esforço da minha própria representação.

Como gostaria de poder gritar que não faço parte de tudo isto. Que a minha vida não passa por aqui. Que ainda que me vejam como mais uma pessoa apenas, eu não sou essa imagem que de mim têm.
Fez sol. Choveu. Voltou a fazer sol e a chover. Abateu-se a noite e com ela as interrogações, as dúvidas. Chegou, como chega todos os dias, todas as noites, a inquietação. Um desassossego sem fim. Um sem-sentido que há que disfarçar com a dolorosa  atitude do politicamente correcto.
Com o sol que desponta parece haver uma esperança. Com a chuva que cai, ora forte, ora dengosa, um estremecimento da alma que não encontra paz. Com o azul do céu, uma possibilidade. Com o cinzento de que por vezes se veste, uma angústia que parece duradoura.
Já noite dentro, adensou-se um súbito nevoeiro. Desaparecerá com a aurora.
E o nevoeiro que preenche o meu ser, alguma vez se dissipará? 

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Desolação

Porque será que a maioria das pessoas se ri das coisas sérias e leva a sério as brincadeiras?

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Riscos Superficiais

Acredito que nasci livre. Depois prenderam-me. E fizeram-me muitos riscos. Prenderam-me a convenções, a regras estúpidas, a tradições e a crenças inverosímeis. Prenderam-me a um país e fizeram-me muitos riscos. Riscos de patriotismo, de nacionalidade, de defesa acérrima de uma realidade que só o era para uma minoria. Obrigaram-me a distinguir entre nós e os outros. Ainda que me obrigassem a estudar o mapa-múndi, queriam forçar-me a esquecer o resto do mundo.

Riscaram-me a alma e o coração com riscos algo profundos quando me forçaram a ajoelhar perante um deus. E eu não sabia o que era. E prenderam-me as asas quando me disseram que não podia passar os limites. Que esse deus castigava. Que arderia nas chamas do inferno. E eu também não sabia o que era o inferno.
Riscaram-me o cérebro garantindo que a história do homem era a que me contavam. Que os feitos e as glórias passadas eram uma herança que eu tinha de carregar. Tentaram aprofundar esses riscos quando me quiseram educar. Quiseram riscar-me com heróis de guerras estúpidas e de conquistas cruéis. Tentaram riscar-me com valores inconsistentes, com teorias insustentáveis, com sistemas e leis facciosos. Quiseram riscar-me de tal modo que tivesse por verdadeira a mentira.
A maior parte dos riscos resvalaram nas verdades que a minha alma firmemente albergava. Outros atingiram-me tenuemente já que não penetravam na espessa couraça do meu sentir. Outros ainda, descartei-os eu esquivando-me deles porque achei que não me assentariam. Ficaram apenas uns poucos, quiçá porque abriram sulcos mais profundos. Poli-os cuidadosamente. O tempo ajudou a disfarçá-los e hoje mal se notam.
É uma questão de estarmos atentos. Podemos passar pela vida com apenas alguns riscos superficiais. E além disso podemos sempre poli-los, minimizá-los. Podemos até encontrar-lhes uma utilidade. Ou podemos simplesmente aceitar a sua existência de uma forma tal que não coarctem no mais mínimo a nossa liberdade.
É assim que temos de passar pela vida. Incólumes e intocados na nossa essência, ainda que algo riscados superficialmente...

terça-feira, 25 de outubro de 2011

O Grande Incómodo

O autoconhecimento é o começo da sabedoria,
em cuja tranquilidade e silêncio está o  incomensurável.

J. Krishnamurti 
em Comentários sobre o Viver – 1ª série


 
Todos os dias me deparo com pessoas que se sentem incomodadas.  

No café, logo pela manhã, já se ouvem resmungos e reclamações. No trânsito, o rádio do carro propaga mais incómodos. O custo de vida, o mau tempo e as queixas dos agricultores, as convulsões sociais por esse mundo fora. O futebol, os eventos culturais, as modas e as vidas alheias. À hora de almoço, enquanto se engolem à pressa alguns alimentos processados e de fraca nutrição, disparam-se comentários em todas as direcções, partilha-se o desagrado acerca disto e daquilo. Tudo incomoda. A atitude do colega, o discurso do político, a má-criação do vizinho, o trânsito, a fila, a coscuvilheira do prédio que espalha boatos, o treinador que não sabe o que faz, o mau desempenho do jogador. Tudo incomoda. O excesso de calor, a chuva que não pára, o fim-de-semana estragado, a praia que não se aproveitou. Tudo incomoda toda a gente. Ou quase toda. 

Mas nem de ano a ano me deparo com alguém que sinta o grande incómodo. 

O verdadeiro incómodo. Aquela inquietação penetrante e profunda que nos deixa à deriva num aparente sem sentido. Aquele mal-estar importuno e mordaz que seca a garganta, produz calafrios angustiantes e nos força a pensar na velha e recorrente questão do “Quem sou eu?”. Pergunta molesta. Perturbante. Insistente. Instigante. 

O grande incómodo é feito de interrogações, de questionamentos que tantas vezes ficam em suspenso por falta de respostas. Na sua natureza pululam silêncios e espaços incomensuráveis e desconhecidos. E vazios insuportáveis que, que a jeito de buraco negro, parecem sugar-nos toda a energia. Uma vez sentido, o grande incómodo jamais desaparecerá. Poderá diminuir de intensidade, ficar em estado cataléptico, permanecer em letárgica hibernação, mas jamais desaparecerá.  

Ao contrário daqueles que se incomodam por tudo e por nada no quotidiano transitório, aquele que sente o grande incómodo tende a entregar-se ao silêncio e à reflexão. Abandona o espalhafato e a atitude instável do incomodado leviano e inconsequente. Começa a distinguir, com um discernimento antes insuspeitado, o valor intrínseco das coisas. Aparta o trigo do joio e dá a cada um apenas e simplesmente a importância que lhe cabe. Não agiganta nem subestima, não exalta nem humilha. Permanece flexível porém firme e equilibrado, mesmo quando o grande incómodo o obriga a mergulhar em profundezas insondáveis. Não dá ouvidos ao ruído exterior mas escuta atentamente os murmúrios quase inaudíveis do seu interior.  

O grande incómodo por vezes dói. Dói deveras. Sem dor localizada, dói por toda a parte. Dói no coração, dói na alma, dói dentro e dói fora, dói na estrela, na galáxia, no universo inteiro. E outras vezes alegra. Alegra sem razão. Concede uma alegria imensa, quase extática, vinda do nada, cheia de tudo. Uma alegria que revela horizontes inusitados de infinitas possibilidades. 

Os pequenos incómodos, que indignam, que excitam, que estimulam acções e alvoroços, conduzem a becos sem saída, a círculos viciosos, a repetições entorpecentes.  

O grande incómodo, que incendeia sem queimar, que inquieta sem agitar, que estimula a inacção, a ponderação, o autoconhecimento, conduz ao desconhecido ilimitado, ao que é verdadeiramente novo, à suprema liberdade.  

domingo, 23 de outubro de 2011

Por que lutamos afinal?

A bem da verdade, lutamos pela justiça em geral ou pelo nosso próprio bem-estar?

O certo é que passamos a vida indignados com as atrocidades e as misérias e as injustiças que acontecem por esse mundo fora. Revoltamo-nos contra a corrupção, o poderio económico, as desavenças políticas ou religiosas, do nosso e de países que nem sequer conhecemos. Emitimos opiniões peremptórias sobre governos, políticos e mafias. Condenamos terrorismos e guerras e regimes. Fazemos juízos dos outros. Rotulamo-los de forma implacável. Achamo-nos detentores da razão, acreditamos firmemente estar pautados por inquestionáveis princípios de honra.
Contudo, a sociedade, a civilização, é tão só o reflexo das nossas atitudes, da nossa superficialidade, da nossa perigosa imaturidade, da nossa nociva forma de existir.
Passaram-se milénios de civilização. Já deveríamos ter aprendido algo. Já deveriamos ter ultrapassado os nossos instintos básicos, violentos e egoístas. Já deveríamos ter abandonado a visão redutora e abraçado a visão abrangente. Mas não. Continuamos exactamente na mesma. Revoltamo-nos, indignamo-nos, opinamos, julgamos e condenamos.  Mas fazemo-lo sempre em relação aos outros. Sempre em relação ao que nos é exterior. E quanto a nós próprios, como indivíduos? Julgamo-nos e condenamo-nos a nós próprios? Emitimos opiniões sobre as nossas próprias acções?
Não. Não o fazemos. Porque achamos que estamos cobertos de razão. Porque achamos que somos melhores que os outros. Porque achamos que temos pleno direito à nossa vidinha fútil. Porque achamos que temos direito ao nosso telemóvel e ao nosso computador de última geração, ao nosso automóvel topo de gama e ao nosso GPS, à nossa casa atafulhada de confortos e às mil e uma utilidades inúteis de que fazemos questão de rodear o nosso dia-a-dia. Porque achamos que temos direito a jantar fora, a degustar pratos gourmet regados com a colheita X ou Y nos restaurantes em voga, a exibirmo-nos com roupas e adereços com a marca dos estilistas do momento. Porque achamos que temos direito a férias de sonho,  de preferência nos destinos frequentados pelos políticos e pelos Vip’s ,e a empregos que nos inflam o ego, nos inundam de prestígio, o que quer isso seja, e a sentirmo-nos invejados.  Porque achamos que temos direito a empanturrar-nos de cerveja ou afins e a sentarmo-nos em frente ao plasma a ver jogos de futebol em HD. Porque achamos que temos direito a ter o que o outro tem, a ser o que o outro é.
Tentamos saber tudo das vidas ditas glamorosas, sofisticadas, famosas, públicas. Essas interessam-nos, nem que seja para criticar. Tentamos esquecer, contudo, e a todo o custo, as histórias tristes, as vidas miseráveis que nos rodeiam. Afastamo-nos delas porque nos ensombrecem os sonhos megalómanos. Só vemos o que queremos ver. E esta atitude dita o rumo que o mundo leva.
Vivemos num faz-de-conta que mete dó. Somos marionetas escravizadas pelos nossos próprios desejos, manipuladas por aqueles que muito intima e secretamente admiramos e imitamos.
Porque reclamamos agora? Porque nos indignamos e nos revoltamos agora? Muito simplesmente porque vemos goradas as possibilidades de continuar a alimentar as nossas manias de grandeza. Fluísse o dinheiro como em outras ocasiões, e estaríamos bem caladinhos mesmo que soubéssemos que outros metiam a mão onde não deviam, que usufruiam de direitos que não deveriam ter, que desviavam fundos em proveito próprio, que prejudicavam os necessitados em favor dos já abastados, que chacinavam inocentes em nome de um deus ou de um poderio.
Metamos a mão na consciência e ponderemos sobre a fonte da nossa indignação. Se a situação, quer no país, quer no mundo, está como está, a nós se deve. Somos culpados, cada um de nós. E o facto de sacudirmos a água do capote, de atirarmos as culpas a outros, apenas demonstra a nossa imensa estupidez.
É muito bom que nos revoltemos, sim, mas contra nós próprios. Fomos nós que ditámos as regras do jogo. Fomos nós, com a nossa ânsia de poder, com a nossa ambição e egoísmo desmesurados, que criámos a situação actual.
Queremos mudança? Então comecemos nós por mudar. Porque a mudança só pode dar-se em nós próprios, em cada um de nós. Só a mudança individual poderá provocar a mudança global.
Mudemos pois, lutemos pois, mas façamo-lo de dentro para fora!

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

A FIB em lugar do PIB


“Deveríamos começar a medir a felicidade das pessoas” começou ele, “tal como faz o Butão”. “Em vez do PIB, eles usam o GNH, Gross National Hapiness”. É típico do meu irmão surpreender-me assim. Frases curtas, incisivas, insusceptíveis de criar dúvidas quanto à sua factualidade. Sempre pronunciadas com o mesmo tom de voz sereno e sério com que diria um “Até amanhã. Se precisares de alguma coisa diz”. Costumam despertar em mim um desejo imenso de descoberta que logo tento aplacar com pesquisa e investigação. No silêncio das pesquisas a que constantemente me incita, jamais deixo de pensar que esse trio de virtudes que o caracteriza - falar pouco, pensar muito e instruir-se no que é verdadeiramente nuclear - é uma requintada arte que poucos conseguem dominar. 

Felicidade Interna Bruta… O conceito, a priori, parece desfasado da realidade. Parece adentrar-se no mais difícil dos reinos do ser humano, o imaterial. Também faz disparar os neurotransmissores, mas sobretudo despoleta sentimentos e emoções, e estimula, inegavelmente, a corrida ao armário dos desejos e à arca dos caprichos.

Se se não fizer a devida destrinça entre a felicidade com motivo e a felicidade sem motivo, entre a felicidade tangível e a intangível, entre a que carece de objecto para poder existir e aquela que existe independentemente de qualquer objecto, então passar-se-á a vida inteira numa triste e vã caça aos gambozinos. Mas se houver discernimento, se existir um equilíbrio, que só pode ser iniciado dentro para fora, do pensamento para a acção, então a felicidade, como medida, como indicador, será também a fonte inesgotável de onde brotarão progresso, evolução, desenvolvimento, criatividade. Das suas águas virá a mudança qualitativa que colocará o ser humano de regresso à via do correcto amadurecimento da humanidade.  

E mais. A felicidade não pode ser apenas um atributo das massas. A massa é cega, é bruta, tem comportamento encarneirado. Não, a felicidade tem de ser sentida por cada um, individualmente, com os matizes próprios e únicos de cada ser. E só assim será colectiva. 

Parece-me ser o Butão, dos cento e muitos países do mundo, o único em que impera o bom senso e o equilíbrio (GNH). A felicidade não é aquele expoente máximo de satisfação que se obtém com audis, gajos(as), spas e charutos. É antes um estado contínuo, sem picos resultantes de estimulação pontual exterior. Um estado criativo e inócuo, o único ventre capaz de gerar uma sociedade íntegra.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Mentalidades

Fiquei abismada. Deitei os olhos a um blog que acolhe desabafos e indignações de quem segue a política. De quem a segue passo a passo, minuto a minuto, como se a vida sem ela fosse obra incompleta. Não consegui conter o espanto. Ao ler os comentários li mais palavrões do que palavras comuns. Li mais ignorância e mediocridade do que verdadeira e legítima inquietação. Li coisas sem nexo, li erros de ortografia, frases mal construídas. Li mentalidades toscas, brutas. Li frases papagueadas, chavões por demais ouvidos, queixas repetidas dos que se deixam levar pela corrente, imóveis, sem um único bracejar. 

Como se educa um povo? Ou melhor, será que se quer educar o povo? Por muito que a tente afastar, a imagem que deste povo logo me vem à mente é a de neandertais. Seguram ossos cuja carne em volta deglutem selvaticamente, e riem histéricos de outros, meros objectos de diversão, que se peleiam e retalham espichando o mesmo sangue que os incita. 

Nada se pode fazer. Não enquanto existirem neandertais. Enquanto a mentalidade for sanguinária, violenta, nacionalista e básica. Não enquanto o enriquecimento cultural for feito por meio de jogos de futebol, novelas, casas dos segredos e pesos pesados, literatura de cordel e revistas cor-de-rosa. Enquanto tudo isto existir, nada vai mudar. Continuarão a fluir os palavrões. A ignorância propagar-se-á como erva daninha. Seguir-se-á o “Esfola” logo que alguém diga “Mata!”. O político que guiará este povo será o político que este povo merece. Será o político que dará ao povo o que o povo quer. O líder não é diferente do seguidor, e é por isso que o seguidor escolhe precisamente determinado líder. 

Fico triste. Estou quase a desistir. Desistir de me fazer entender. Desistir de apresentar outros caminhos, outras possibilidades. Desistir de conversar para que se faça luz. Estou quase.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Andando aos "sssss"

Eles discursam, nós ficamos hipnotizados 
      Eles prometem, nós acreditamos 
          Eles gastam, nós pagamos 
              Eles decidem, nós aquiescemos 
                  Eles mandam, nós obedecemos 
                      Eles enganam-nos, nós acreditamos 
                  Eles justificam-se, nós admitimos 
              Eles tocam, nós dançamos 
          Eles exploram-nos, nós deixamos 
      Eles manipulam-nos, nós nem percebemos 
  Eles usam-nos, nós não nos importamos 
      Eles exigem, nós entregamos 
          Eles vivem, nós sobrevivemos 
              Eles candidatam-se, nós votamos 
                  Eles explicam, nós confiamos 
                      Eles pedem poder, nós damos-lho 
                  Eles clamam por autoridade, nós concedemos-lha 
              Eles dizem que é para norte, nós tomamos esse rumo 
          Eles dizem que agora é para sul, nós para lá nos encaminhamos 
      Eles dizem que a tendência é oeste, nós lá vamos nessa direcção 
  Eles dizem que é justo, nós engolimos 
      Eles mandam que paguemos, nós pagamos 
          Eles incrementam a nossa ignorância, nós veneramo-los por isso 
              Eles tratam-nos como crianças de 5 anos, nós chuchamos no dedo 
                  Eles contam mentiras, nós consideramo-las verdades 
                      Eles ditam as regras, nós seguimo-las 
                  Eles impõem o sistema, nós consolidamo-lo 
              Eles governam e governam-se, nós estamos sempre desgovernados 
          Eles corrompem e corrompem-se, nós sabemo-lo e ficamos calados 
      Eles são astutos e malabaristas, nós somos tansos e imbecis 
  Eles são espertos e audazes, nós somos burros e covardes 
      Eles são desavergonhados e hipócritas, nós somos tímidos e débeis 
          Eles não têm escrúpulos, nós temos demasiados

Quando é que vais parar de andar aos “ssss” e começar a pensar por ti próprio?

Confissões de uma burra

Nem sequer sou loura e muito menos barbie, mas devo ser muito, muito, muito burra. É que, por muito que me esforce, há coisas que não me entram, não lhes vejo nexo, não as compreendo.  

A verdade é que ninguém fala dessas coisas, aparentemente ninguém as questiona e vão, portanto, sendo tomadas por certas entrando no nosso dia-a-dia quase sem darmos por isso. Mas o pior é que eu, além de muito burra, sou obstinada que nem uma mula e tenho uma vontade férrea de compreender. Prefiro marrar inflexivelmente até que se faça luz no intuito, quiçá vão, de não morrer tão burra. Não descanso, portanto, até que o meu cérebro se acalme com uma explicação lógica, espontânea e naturalmente advinda de uma ponderada reflexão sobre a razão de ser das coisas.   

É claro que tudo isto, embora seja muito fácil de dizer, para uma burra como eu constitui tarefa titânica. E ainda por cima, se fosse só uma coisa que eu não compreendesse, ainda vá que não vá, mas são muitas, são mais que as mães, são praticamente infindas. E, como além de burra sou distraída, parece que, a cada pedra em que tropeço no meu ameno e jumentil percurso quotidiano, surge uma coisa nova e incompreensível. 

Outra agravante lhes acrescento: é que quanto mais mexo nas coisas, na tentativa quase desesperada de lhes encontrar, à luz do meu burrical cérebro, um só sentidozinho que seja, mais elas começam a feder, mais peçonhentas se tornam, e mais se emaranham com outras que, até aí, não haviam todavia espicaçado a minha asnática curiosidade. 

Para que melhor entendam as dificuldades de alcance da minha parca inteligência, vou dar-lhes alguns exemplos. 

“Este orçamento de estado”, dizia o outro, “viola promessas eleitorais”. Ora eu, que sou muito burra, pergunto “Mas e então as promessas eleitorais são para se cumprir? Eu julgava que as promessas não passavam disso mesmo, meras promessas sem concretização em vista. Para os políticos as promessas não têm prazo de validade, pois não?” 

Ouvi dizer que uma grande percentagem dos portugueses sofre de perturbações mentais, figuras relevantes e importantes desta naçãozita nela incluídas. Até aqui nada de novo. Até eu, que sou muito burra me apercebo disso. Agora, o que me preocupa – e o que seria, sim, digno de nota e de menção nos meios de comunicação – é o facto de que ninguém parece importar-se com as perturbações motoras que afectam a grande maioria da classe política. Coitados, é que nem capazes são de conduzir um automóvel! Deve ser bem frustrante ter de depender de terceiros, neste caso de motoristas, para se deslocarem de casa para o trabalho e do trabalho para casa. Sim, porque a política é um trabalho, como muitos outros mas que requer mais responsabilidade, não é? Ou estou outra vez a ser muito, muito burra? 

Anunciaram um aumento no IVA da electricidade. Por acaso recebi hoje mesmo a minha conta da luz. E lá está ele, o aumento, bem aplicado aos consumos a partir do primeiro dia do mês. Mas depois, um olhar mais atento descobre que a taxa de exploração – a taxa que substitui o antiquado aluguer do contador – também se pode ver acrescida daquele mesmo aumento. E eu, que sou burra que até dói, pergunto com ar francamente espantado “Olha lá, mas a taxa de exploração também se consome? Eu pensava que essa taxa era fixa por muitos e longos anos, tantos que se fizermos as contas podíamos oferecer contadores, digo taxas de exploração, a todos os indivíduos da comunidade!” 

Ah, é verdade, na conta da água chamam outra coisa ao contador, chamam-lhe componente fixa! Quem me dera não ser tão burra e ter sido dotada à nascença de semelhante imaginação e inteligência! 

Outra coisa que também não percebo é a contribuição audiovisual. Sim, já sei que sou burra e que qualquer jumento comparado comigo é um doutor, mas raciocinem comigo: eu, vivendo num país democrático, escolho uma operadora de audiovisuais e faço com ela um contrato para o serviço que melhor se adapta às minhas preferências. Ora, se realmente vivo num país democrático, as minhas escolhas são soberanas e inalienáveis. Então, assim sendo, porque é que, como se de um acto de ditadura se tratasse, me obrigam a pagar outra operadora, que não escolhi e que ainda por cima oferece serviços de informação adulterada, entretenimento demagógico e (des)cultura manipulada?  Pois, pois, eu sei que sou burra, mas na verdade não consigo perceber! 

E a taxa de ocupação do subsolo, que as câmaras municipais aplicam na conta do gás? Isto então é que me mói o juízo. É um verdadeiro desafio à minha estupidez e dá asas ao meu asnear. É que eu pensava que a terra que piso e aquela que lhe está mais abaixo fizesse parte do meu legado natural por ter nascido na Terra e do meu legado biológico que me imprimiu marca de mamífero e me pôs a andar a duas, não me dotando pois nem de dentes de toupeira para esquadrinhar o subsolo nem de asinhas para não tocar na terra. 

Jamais se me ocorreu que a evolução técnica, usando a terra como meio infra-estrutural, fosse passível de taxação individual. Mas é claro que, como sou muito, muito burra, pensar que se trata de uma astuta e subtil forma de extorsão é com certeza um atentado à boa-fé e à moralidade dos municípios. 

Não posso, no entanto, nestas minhas asininas deambulações, deixar de pensar que a ocupação do espaço aéreo – segundo os municípios, é o espaço que fica por cima da cabeça dos transeuntes e dos passeios que eles usam – também é taxada! Se não acreditam perguntem aos proprietários de cafés que queiram ter um tolde de abrir e fechar… E na minha tosca burrice, não consigo parar de pensar que um dia qualquer irão fazer-me pagar pela ocupação espacial do meu volume corporal. 

Que pena tenho de ser tão burra. Se tivesse ao menos a inteligência da maioria das pessoas podia ser que conseguisse compreender. Mas como não tenho, nada mais me resta do que chafurdar nesta excrementícia porcaria e tentar vislumbrar-lhe algo de positivo!

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Desabafo

Hoje, mais do que nunca, sinto a injustiça entranhada nos ossos. Brotam-me lágrimas silenciosas e, em cada uma delas, tento diluir este vulcão que me queima. Não quero coisas, quero paz!

Hoje, mais do que nunca, falta-me o que ainda não sou, faltam-me os momentos calmos, pululados de inquietações apaixonantes. Sinto-me plena de sentimentos e de encontros com a verdade, mas não me sacio. Quero ir em busca do caminho que apenas vislumbro, envolta que estou no cinzento que paira sobre o Homem.
Hoje, mais do que nunca, sinto o nó da incompreensão, sabendo contudo que basta um passo, a ação certa, para que tudo se desvaneça. Mas hoje também sei que, ainda que latente e pulsante, nada vai brotar que apazigúe esta dor imensa, minha, de todos.
Hoje, mais do que nunca, estou capaz de abraçar o silêncio e mergulhar prazenteiramente no meu interior,fazendo nele espaço para albergar o mundo inteiro.  
Hoje, mais do que nunca, sinto que as palavras, imprecisas e insuficientes, são o único bálsamo para a dor que me atormenta: não a definem, não, mas atenuam-na em milhões de possibilidades.
As palavras, as minhas palavras, não são prantos de tinta ou grafite, são estuários, são ondas que imprimem movimento ao pensamento. São bonança depois da tempestade, são brisa que não quer ser vento, são chuva miúda terna e brandamente caída em telhado de zinco. Não são livro, nem jornal, nem artigo; são apenas o espelho onde me miro e onde tento, incessantemente, reflectir-me.
Raízes, já as não tenho. Já vagueio pelo mundo à procura. Já não me vinculo à minha cidade, já me espraio por outras terras e outros mares, já não pertenço só a este pequeno cubículo do universo.
Eu, aquela que quer abraçar tudo e todos. Eu, aquela que esgaravata e tenta apartar! Eu, aquela que, quando não se entende, se sente desmoronar, mas que jamais abandona o campo de batalha, jamais desiste da busca.
Bendita essa força que me faz mover, bendita essa fome de saber, essa sede de existir, essa revolução efervescente que me queima por dentro e me amansa a revolta vã. Por vezes, só por vezes, mato a fome e a sede… outras vezes faço jejum num ramadão sem sentido, desprovido de bênçãos mas rico em anelos. Anelos de ir mais além, anelos de mergulhar na mansidão do absoluto e de pairar tranquilamente na essência, em plenitude.
Por vezes chafurdo na mesquinhez para sentir o outro lado, afundo na lama para sentir o enlevo, confronto-me com o transitório para sentir o espírito: dualidade antagónica que ora fere, ora cura!
Hoje, mais do que nunca, entrego o meu silêncio aos gritos desesperados da alma. Hoje, mais do que nunca, procuro-me e perco-me entre uma multidão de pensamentos semi-gerados, voláteis, inconsequentes e dou voltas e reviravoltas no sofrimento de todos, que é meu também…
Mas eu sei que posso confinar-me a um espaço ínfimo e sentir-me na imensidão. Sei que posso estar encerrada e sentir-me livre. Posso sentir o peso de quatro paredes e comungar com a natureza. Só não posso fingir o meu sentir… E por vezes não me sinto, não me noto, estando acordada. Outras vezes durmo, e sou eu! Umas vezes divago e esvazio-me, outras foco-me e estou plena. Persegue-me esta dualidade antagónica, mas é ela que me faz acordar, é ela que espevita o meu fogo e alimenta a sua combustão. Da dualidade nasce a escolha, não a escolha ocasional, mas a escolha matriz!
Navego sozinha, porém partilho os ensinamentos da escola do silêncio… Vou calada e volto muda, vou pobre e volto enriquecida… Cada vez que penso, cada vez que escrevo, acrescento uma jóia inestimável ao meu tesouro, que sendo já grande, e embora eu nada possua, poderá ser infinito… É esta a única riqueza que me seduz!
Hoje, mais do que nunca, não me importo que continues a pensar que sou uma imbecil...

Armas Silenciosas para Guerras Tranquilas 16

O Destacamento (como serviço militar), Imposição



O Destacamento (como serviço militar)

Poucos esforços de modificação do comportamento humano são mais notáveis e mais eficazes do que o da instituição sócio-militar conhecido como destacamento. O objectivo principal de um destacamento é incutir, por intimidação, nos jovens do sexo masculino de uma sociedade a convicção pouco criteriosa de que o governo é omnipotente. Em breve lhes é ensinado que uma prece é lenta para reverter o que uma bala consegue fazer num instante. Assim, um homem treinado num meio religioso durante dezoito anos da sua vida pode, por intermédio deste instrumento do governo, ser dobrado, ser expurgado das suas fantasias e ilusões numa questão de meros meses. Uma vez aquela convicção esteja incutida, tudo o resto é fácil de incutir.

Ainda mais interessante é o processo pelo qual os pais de um jovem, que supostamente o amam, possam ser induzidos a mandá-lo para a guerra para morte certa. Se bem que a envergadura desta obra não permita que este assunto seja desenvolvido com todos os pormenores, não obstante, um resumo grosseiro será possível e poderá servir para revelar aqueles factores que têm de ser incluídos em alguma forma numérica numa análise informática dos sistemas social e de guerra.

Começamos com uma definição preliminar do destacamento.

O destacamento (serviço selectivo, etc.) é uma instituição de sacrifício e escravidão colectivos e obrigatórios, ideada pelas pessoas de meia-idade e mais velhas com ´propósito de pressionar os jovens a fazer o trabalho público sujo. Serve além disso para tornar os jovens tão culpados quanto os mais velhos, tornando assim a crítica aos mais velhos pelos jovens menos provável (Estabilizador de Gerações). É comercializado e vendido ao público sob o rótulo de serviço “patriótico=nacional”.

Uma vez seja conseguida uma definição económica objectiva do destacamento, essa definição é usada para delinear as fronteiras de uma estrutura chamada Sistema de Valor Humano, que por sua vez é traduzida em termos de teoria de jogo. O valor desse trabalhador escravo é dado numa Tabela de Valores Humanos, uma tabela dividida em categorias por intelecto, experiência, procura de emprego pós-serviço, etc.

Algumas destas categorias são usuais e podem ser tentativamente avaliadas em termos do valor de determinados empregos para os quais existe um salário conhecido. Alguns empregos são mais difíceis de avaliar porque são únicos para as exigências da subversão social, como exemplo extremo: o valor da instrução de uma mãe para a sua filha, fazendo com que a filha coloque determinadas exigências comportamentais sobre um futuro marido daí a dez ou quinze anos; reprimindo assim a resistência dele a uma perversão de um governo, tornando mais fácil para um cartel da banca comprar o Estado de Nova Iorque em, digamos, vinte anos.

Este problema apoia-se fortemente nas observações e dados da espionagem do tempo de guerra e em muitos tipos de testes psicológicos. Mas os modelos matemáticos rudimentares (algoritmos, etc.) podem ser ideados, se não para predizer, pelo menos para pré-determinar estes acontecimentos com um máximo de certeza. O que não existe por cooperação natural é portanto realçado pela compulsão calculada. Os seres humanos são máquinas, alavancas que podem ser agarradas e desandadas, e há pouca e verdadeira diferença entre automatizar uma sociedade e automatizar uma fábrica de calçado.

Estes valores derivados são variáveis. (É necessário usar uma Tabelas de Valores Humanos corrente para análise informática). Estes valores são dados na sua verdadeira medida em vez de em Dólares E.U., já que estes últimos são instáveis. Estando actualmente inflacionados para além da produção de bens e serviços nacionais para dar à economia uma falsa energia cinética (indutância do “papel”).

O valor da prata está estável, sendo possível comprar a mesma quantidade com um grama de prata hoje como se podia comprar em 1920. O valor humano medido em unidades de prata altera ligeiramente devido a mudanças na tecnologia de produção.


Imposição

Factor I 

Como em todas as abordagens do sistema social, a estabilidade só é conseguida compreendendo e explicando a natureza humana (padrões de acção/reacção). Uma falha em assim fazer pode ser, e geralmente é, desastrosa.  

Tal como noutros esquemas sociais humanos, uma forma ou outra de intimidação (ou incentivo) é essencial ao sucesso do destacamento. Os princípios físicos da acção e reacção devem ser aplicados a ambos os subsistemas, interno e externo.  

Para garantir o destacamento, a lavagem cerebral/programação do indivíduo e tanto a unidade familiar como o grupo de pares devem ser envolvidos e colocados sob controlo.


Factor II – Pai 

O homem do agregado familiar tem de ser treinado para ser dócil e complacente para garantir que o filho cresça com a formação e atitudes sociais correctas. Os meios publicitários, etc., ficam encarregues de tratar de que o futuro pai seja “fustigado com ratas” antes de casar ou na altura de o fazer. É-lhe ensinado que ou se conforma com a ranhura social entalhada para ele ou a sua vida sexual ficará entravada e a sua terna companhia será zero. Fazem-lhe ver que as mulheres exigem segurança mais do que um comportamento lógico, de princípios ou honrado.

Pela altura em que o seu filho tenha que ir para a guerra, o pai (com um carácter de geleia) atirará uma pistola para as mãos do filho antes que o pai arrisque a censura dos seus pares, ou faça de si um hipócrita ao frustrar o investimento que tem na sua própria opinião pessoal ou auto-estima. O filho irá para a guerra ou o pai ficará envergonhado. Portanto o filho irá para a guerra, não se opondo ao verdadeiro objectivo.


Factor III - Mãe

O elemento feminino da sociedade humana é governado pela emoção em primeiro lugar e pela lógica em segundo. Na batalha entre a lógica e a imaginação, a imaginação ganha sempre, a fantasia prevalece. O instinto maternal domina para que a criança venha em primeiro lugar e o futuro venha em segundo. Uma mulher com um bebé recém-nascido é demasiado ingénua para ver a carne para canhão de um homem saudável ou uma fonte barata de trabalho escravo. Uma mulher deve, contudo ser condicionada a aceitar a transição para a “realidade” quando ela chegar, ou antes disso.  

Como a transição se torna mais difícil de gerir, a unidade familiar deve ser cuidadosamente desintegrada, e a educação pública controlada pelo estado e os centros de apoio social à criança tem de ser tornados mais comuns e legalmente impostos de forma a começar a separação da criança da mãe e do pai a uma idade muito jovem. A inoculação de drogas comportamentais pode apressar a transição para a criança (obrigatório). Cuidado: A ira impulsiva de uma mulher pode sobrepor-se ao seu medo. O poder de uma mulher irada nunca deve ser subestimado e o seu poder sobre um marido “fustigado com ratas” não deve igualmente ser subestimado. Obteve o voto para as mulheres em 1920.


Factor IV - Filho 

A pressão emocional de conservação da própria vida durante o tempo de guerra e a atitude interesseira da manada comum que tem uma opção para evitar o campo de batalha – se o filho puder ser persuadido a ir – é toda a pressão finalmente necessária para impulsionar o Johnny para a guerra. As tranquilas chantagens sobre ele são as ameaças: “Sem sacrifício não há amigos; sem glória, não há namoradas”.


Factor V – Irmã 

E então a irmã do filho? São-lhe dadas todas as coisas boas da vida pelo pai, e é ensinada a esperar o mesmo do seu futuro marido independentemente do preço.


Factor VI - Gado

Aqueles que não usarem o seu cérebro não estão melhores do que aqueles que não têm cérebro, e portanto nesta escola de lorpas, pai, mãe, filho e filha tornam-se bestas de carga úteis ou treinadores delas.


Assim se conclui o que está disponível deste documento.
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