quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Ritmos do Quotidiano

Eos, deusa grega da Aurora
O levantar é sempre uma agradável perspectiva. A aurora que Eos mais uma vez despontou é a antecâmara do novo, um renascer sempre diverso. Qualquer nuvem, mais ou menos densa, que tivesse ensombrecido a alma no dia anterior por certo se haveria dissipado durante a noite, enquanto corpo e mente serenamente se entregavam aos cuidados de Hipnos e Morfeu. Surge, por isso, sempre radiante e pleno, o crepúsculo matutino, seja qual for a cor de que se veste.
Desde o levantar até à fracção de segundo anterior ao primeiro contacto com a balbúrdia mundana, o viver é um fluir constante do pensamento, um brotar de ideias, um confortável e simples existir em regiões insusceptíveis de definição. O funcionamento da mente e do corpo é natural, espontâneo, não forçado, sem tensões. Sob estas condições em que, possante e firme, coexiste uma inexplicável liberdade, sou não sendo eu, sou sem nome e sem forma, sou o que nesse momento é. E assim vivo até ao instante em que a porta se abre para me deixar sair.
Hemera, deusa grega do Dia
Às mãos de Hemera começa o dia e instala-se então a desordem, a confusão. Filas de trânsito, manobras insuspeitadas, travagens bruscas, correrias e ruído, ruído, ruído. E eis a vida em suspenso. A partir de agora, e até que o sol se ponha indiciando o almejado regresso, o comportamento mecanizado, um estranho colete-de-forças que estrangula o fluxo da vida, preencherá as horas. Horas em que permanecer sã é titânico desafio, em que os estereótipos entram sem convite e fervem na corrente sanguínea tentando transfigurar incautos e crédulos. Horas em que as acções, as atitudes, as palavras, as opiniões, são simples artigos em série que abastecem o ávido consumidor do paradigma vigente. Horas de tal efemeridade e falsidade que até os sensatos pensamentos tidos na alvorada, que então, no afã de alcançar o divino, se moviam por entre o perfeito e o sublime, parecem agora, se lembrados, tão assustadoramente irracionais que mais se assemelham a bizarras esquizofrenias ilustradas em forma de imagens mentais.

Nix, deusa grega da Noite
Hespéra, deusa
grega do Crepúsculo
O sol ao desaparecer vai deixando o horizonte pintado de cores irreais cuidadosamente escolhidas por Hespéra. À medida que se encurta a distância entre o inferno mecanizado da agitação da vida fingida e o paraíso ansiado da solidão e do silêncio, o fluxo da vida, agora liberto, retoma gradualmente rumo e ritmo. Vão-se entregando a luz e a cor do crepúsculo, suave e lentamente, à escuridão do manto que Nix estende.

E antes de voltar ao reparador regaço de Hipnos e de aceitar as oferendas de Morfeu, aí estou eu outra vez sendo, não eu, mas o que é nesse momento.



Hypnos and Thanatos, Sleep and His Half-Brother Death by John William Waterhouse


Nota: Eos, Hemera, Hespéra e Nix, pinturas de William-Adolphe Bouguereau

2 comentários:

  1. E há quem, por incrivel que pareça, tenha medo da aposentadoria. Eu estou adorando!!! Posso me organizar conforme pede o dia...:)
    Abraços, Isabel. Bom Carnaval. (detesto a muvuca que rola por aqui)

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  2. E você, estimada Sónia, sempre com aquela sua fantástica perspicácia de ir directa ao ponto fulcral dos meus posts!
    Abraço grande!

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