terça-feira, 31 de agosto de 2010

Não ser nada

Ser poeta ou escritor é oferecer,
Assim de mão beijada,
As palavras que esculpiu,
Não querendo em troca nada;
É desejar que fiquem a bailar,
Doces, insistentes, acutilantes,
Na mente de quem as viu.
É querer que façam ninho na mente do leitor
E que, de uma simples palavra, fecunda, inusitada,
Nasça toda uma prole de palavras e actos e gestos deslumbrantes,
Não para que alimentem gente vã e inglória,
Mas para que talhem caminhos diferentes, pujantes,
Para que construam uma nova história.

Ser escritor ou ser poeta é ser tudo o que não é dever,
É ter a alma desperta,
Um coração a ferver que vai moldando o destino;
É viver uma vida incerta,
Escrevendo para ocultar o desejo único, prístino,
De morrer para o mundo e voltar a nascer.

Ser poeta ou escritor é deixar uma porta aberta
Que todos podem franquear;
É soltar a torrente interior e fluir com ela,
E aprender a criar;
É pois ser-se criador,
Não de mundos mas de amor,
Não de seres mas de unidade;
É estar só e albergar no próprio coração,
Inteira, a humanidade.

Ser poeta ou escritor é não o ser,
É não agarrar as palavras em acto de posse
Mas docemente ajeitá-las no peito
E lançá-las ao vento
Sem que com isso se sinta nem despojado
Nem vazio nem sedento.

Ser escritor ou ser poeta é não encerrar lá dentro,
Como se numa gaveta raramente aberta,
O momento em que as palavras nascem;
É deixá-las livres, soltas no tempo,
Ou quietas e bem aninhadas
Na berma duma qualquer estrada
Esperando os que por lá passem!
É não deixar que delas se apodere
O cheiro a bafio de algo velho, ressequido,
É fazê-las correr leves, livres, frescas e límpidas
Como as águas de um rio tranquilo, vivo e célere.

Ser poeta ou escritor não é arte, é expressão;
E da mesma forma que pode ser tomada como estandarte,
Assim mesmo pode ficar silenciada em qualquer rincão.
Não é arte, não, é coração:
E cada palavra uma batida, um ritmo, uma carícia, uma pulsação.

Ser escritor, ser poeta, é para tal não estar talhado,
É não caber nas definições:
É escrever sem regras, sem restrições,
Sentir as palavras apenas porque que se é livre,
Porque o sentir está intacto,
Porque se não foi silenciado à força de nenhum pacto.
É esquecer métricas e lembrar liberdades,
Olvidar tónicas e relembrar imensidões,
É não querer saber de versos ou d’estrofes ou d’estruturas:
É tão só deixar solta a alma e encontrar,
Porque não se procuraram, novas dimensões;
É amar o que as palavras alcançam,
Por entre risos e dores, agruras e aspirações.

Ser poeta, ser escritor, é usar a palavra como ponte,
Ousar levá-la longe, bem longe,
Lá onde dizem habitar o perigo.
É enfrentar quimeras, confrontar ilusões,
Enfrentar monstros, confrontar convicções;
É, dos próprios sonhos, degrau a degrau, subir a escada.
E depois da escalada, tendo encontrado porto de abrigo,
Ser poeta, ser escritor, afinal, vendo bem, é não ser nada!

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