quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Repouso


Pájaro - Jesús Díaz Ferrer

Já as últimas semanas haviam decorrido pardas. O pensamento, fugidio, escusava-se à concentração. As ideias iam e vinham, para depois, entre meias palavras e sem grandes explicações, se refugiarem em recantos da mente quase olvidados. Talvez façam ninho. Talvez proliferem. Ou talvez morram por ali e se tornem apenas resquícios empoeirados e ressequidos.
É tempo, pois, de dar descanso à máquina que alberga a mente, ao corpo que alberga o espírito. É tempo de deixar vaguear livremente os olhos e as vontades. Talvez em Setembro, tal como com as uvas, se possam colher frutos maduros, esperanças de puros néctares.
Aos meus estimados leitores, os votos de boas férias e que o repouso lhes traga sempre algum alimento para alma!

terça-feira, 22 de maio de 2012

Tantos a dormir e tão poucos despertos...

E será que queremos despertar?

Ou será que queremos continuar a pensar que somos livres, não passando porém de autómatos manipulados, possuídos, controlados?

De olhos completamente fechados, aceitamos passivamente viver nas masmorras douradas do sistema, nas garras implacáveis de uma civilização aberrante!




Fonte: http://www.crackinfilms.com/

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Sabe que...

Pintura surrealista de Ricardo Fernandez Ortega (nascido em Durango, México, em 1971)

Se me perco na bruma do nada,
se estremeço no anseio de horizontes invisíveis,
se os imagino e preencho de tudo e de coisa nenhuma
p’ra lhes sentir a realidade, a função,
sabe que não é por capricho, nem luxo nem devaneio;
apenas procuro adivinhar-lhes com os olhos da carne
na imensidade que os da alma contemplam, o propósito
que lhes supõe o coração…

E se me perco na noite escura,
se aos tropeços apalpo ilusões informes,
se lhes pego com mão insegura e as cinjo contra o peito
p’ra lhes encurtar a lonjura, a vastidão,
sabe que não é por cegueira, nem sandice nem loucura;
apenas procuro olhá-las com a verdade da alma
e encontrar-lhes a mentira que encarcera a minha vida
nesta infinda solidão…

E se pareço distante, ausente,
se prefiro o silêncio e os pensamentos mudos,
se os albergo e nutro à minha única e absurda maneira
p’ra olhá-los de frente, saber o que são,
sabe que não é por soberba, nem vaidade nem parvoeira;
apenas procuro conhecer-lhes o sentido, e neles busco a causa
do desassossego,  do vazio, do medo; da vida, afinal,
a derradeira razão…

sábado, 14 de abril de 2012

Perguntas Que Não Se Fazem

The Mirror - Frank Markham Skipworth (1854-1929)

Eramos mais que uma meia dúzia. O ruído da conversa banal de hora de almoço, apesar de persistente, não penetrou as defesas que o meu pensamento há muito havia criado para protecção dos seus raciocínios. Subitamente, incapaz de resistir à força da curiosidade suscitada por um pensamento que me habitava havia uns dias, sem quaisquer preâmbulos, disparei:
- Meus caros, por acaso alguma vez se lhes assoma à mente a pergunta “Quem sou eu?” ou “Porque existo?” ou “Que raio ando eu aqui a fazer?”
Os primeiros segundos foram de profundo silêncio.
- E então? Alguma vez fizeram a si próprios este tipo de perguntas? - insistia eu.
- Existo porque penso – retorquiu alguém.
- Não, não é isso – a minha voz denotava impaciência – não quero que me respondam a essas perguntas, quero que me digam se as fazem a vocês próprios. Quero saber se se questionam dessa maneira…
Por entre a silenciosa resposta da maioria, dada com um simples abanar de cabeça em sinal de negação, alguém declara:
- Eu é mais o contrário: penso que vale a pena existir por causa de certas coisas da vida…
Seguiu-se a óbvia gargalhada geral. Segundos passados apenas e já se havia retomado a conversa banal no banal clima de boa disposição.
Olhei em volta. Vi sorrisos. Constatei a boa disposição.
No silêncio que me impus surgiu-me outra questão: serei eu a única que se entristece com a ligeireza com que a maioria das pessoas considera a vida? A única que se assombra com a infinidade de perguntas todavia por responder?

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Da Necessidade de Se Vir a Ser Alguma Coisa



Parece-me absurda a necessidade de se vir a ser alguma coisa para além do que já se é. Afigura-se-me como um factor de auto-anulação, um desperdício da natureza própria. O indivíduo que, por essência, já é alguma coisa, despreza totalmente o que é e coloca-se no caminho ilusório do devir, ao serviço da transitoriedade e em detrimento do autoconhecimento e da individualidade. Troca a sua unicidade original pela opaca cópia da imitação.
Ao longo desse caminho, olhos postos numa meta quimérica, o indivíduo luta ferozmente pelo objectivo do momento, insensível e alheio ao contínuo violentar da sua própria individualidade. Não existe tal objectivo. É um logro sem realidade porque é gerado na inconsistência do desejo. É um círculo infinito. O desejo nasce, e sendo satisfeito morre para renascer mais forte, mais exigente, mais enganador, mais embotador, mais castrante.
Ninguém consegue ser algo que não seja já, é um facto. Recém-nascido, criança, jovem, maduro ou velho, é-se o que se é. A quididade está aí, em qualquer altura da vida. Ora o verdadeiro problema reside no devir ilusório, no desejo portanto. Porque quererá o indivíduo vir a ser alguma coisa?
A razão mais evidente, assim à primeira vista, será a insuficiência e a inferioridade que o indivíduo sente em si mesmo. Porque não se busca, porque permanece interiormente inexplorado, não se reconhece como um todo integral, completo. Tortura-se então no vasto deserto do desconhecimento de si próprio e convence-se de uma aparente incompletude. Há um vazio que lhe morde a alma. Uma solidão que lhe alimenta o medo e uma pequenez que dele advém. Fugindo de si mesmo, o instinto gregário leva-o à associação cega. Porque não sabe ser plural na sua qualidade de único, na sua individualidade exclusiva, eis que, por suas mãos, tece o seu próprio drama!
No patriotismo, porque perdido e sem referências, pensa que se encontra. E cria divisão entre os semelhantes. Na religião, porque inconsciente de si e desprovido de autoconhecimento, acredita que está a salvo. E cria divisão entre os semelhantes. No partido político, porque egocêntrico e temeroso, crê-se justo e corajoso. E cria divisão entre os semelhantes. Na classe social, no estilo de vida, no clube de futebol, nos bens materiais, porque vazio e insignificante, julga encontrar importância e plenitude. E cria divisão entre os semelhantes. Na agregação, no sentimento de pertencer a algo maior, porque pequeno e impotente, pensa encontrar segurança.
Dividido e fragmentado, firme no caminho do vir a ser, que não é senão desejo de ser algo incitado pelo esquecimento do que se é, o indivíduo estropia cada vez mais o seu carácter humano. Que aberrante mutação o esperará num futuro gerado na insustentabilidade do devir?

terça-feira, 3 de abril de 2012

O Silêncio das Palavras

L'Ecole du Silence - 1929 (Jean Delville, 1867 - 1953)

  
Comunicar é bastante difícil para quem não partilha da quotidiana e fútil azáfama. Falar do tempo é uma absurda trivialidade e reduz o diálogo ao nível da especulação pateta. Todos os demais assuntos com que somos confrontados diariamente ou se classificam na patetice especulativa ou no absurdo redutor, e apenas deixam como rasto o eco de um insípido e incómodo cacarejo.
Tenho por isso optado por ficar calada. Não que me não corroam por dentro ácidas respostas com lesta vontade de expressão exterior, mas a antevisão da estupidez e inutilidade do diálogo que suscitariam faz com que mantenha firme a decisão de manter os lábios hermeticamente fechados.
Talvez pelo manto de nuvens cinzentas que impedem a plenitude da acção do sol, ou talvez pelo processo rítmico da vida que nos balança ciclicamente de um polo a outro, a alegria expansiva transforma-se num sentimento sombrio e introspectivo. É então que me pergunto se a palavra falada terá alguma serventia, salvaguardada porém aquela raríssima excepção em que é usada exactamente ao mesmo nível por ambos os interlocutores e serve de trampolim para uma comunicação que vai muito além dela.
Cada vez mais lhe vejo menos utilidade. Cada vez mais lhe vejo o aspecto de arma de arremesso e menos o aspecto de veículo de exploração e aprendizagem. Cada vez mais a vejo como astuciosa articulação e menos como instrumento de compreensão.
Prefiro, neste momento, a palavra escrita como reflexo da palavra não proferida que andou, muda, curiosa e bailariqueira, pelos silêncios e horizontes infinitos do pensamento. Pode não reflectir, sobre o fundo em que se estampa, qualquer verdade. Pode escrever-se injectando-lhe em cada letra um milhão de partículas de dúvida, um milhão de meias verdades ou de francas falsidades. Mas está aí, registada para memória futura, e tomará tantos matizes quantos os olhares que se lhe deitem ao lê-la.

Entre todas estas vantagens, tem a palavra escrita uma outra que em valor todas excede: porque é virgem filha do silêncio, não tendo sido estraçalhada pelo ruído da palavra falada, mantém intacta e pura a essência da fonte de onde proveio!


quarta-feira, 21 de março de 2012

Deixai-me em Paz

Quereis que pense o que pensais,
que aja como agis, viva como viveis.
De dedo apontado, semblante carregado em prenúncio d’ameaça,
a cada hora mo lembrais. Pois perdeis o vosso tempo!
Não faço tenções de provar tal tormento.
Prefiro cair em desgraça a reinar no atoleiro que criastes,
a fingir submissão a um deus inventado,
a ser escrava de um sistema desumano, absurdo, calculado.
Julgais acaso que sou espantalho, a quem encheis de palha
e logo abandonais à sua sorte, esperando que faça o vosso trabalho?
Pois se de nada preciso, nem de palha sequer,
p’ra vos dizer com todo o siso que tudo o que fazeis não é viver!
Quando muito vegetais, andais p’ra lá e p’ra cá, sem rumo, sem norte.
 
E não me venhais com essas tretas
de que arderei no inferno por infame e blasfema,
que com a mesma régua vos está medida e aplicada igual pena
não no reino do Demo, mas aqui mesmo, no vosso limbo terreno.
Ao contrário de vós, eu mesma talho a minha sorte!

Deixai-me em paz com as crenças, com o certo e o errado,
causadores que são das desavenças, da guerra, do desaguisado.
Não me peçais nem à alma nem à razão quaisquer pressas,
que eu, sem elas, sem vós e sem um deus,
sem líder, sem sistema, sem qualquer simbólica cor,
sem toda a inútil parafernália que criais,
sem falar, sem olhar, sem me mover, sem ruído, conflito ou dissabor,
a cada segundo viro o mundo às avessas
e vivo como quero, penso, livre e plenamente, sem meças!

                               Isabel G



No Dia Mundial da Poesia, transcrevo os meus dois poemas favoritos de dois dos meus poetas preferidos:



 


Da Minha Ideia do Mundo


Da minha ideia do mundo
Caí...
Vácuo além de profundo,
Sem ter Eu nem Ali...

Vácuo sem si-próprio, caos
De ser pensado como ser…
Escada absoluta sem degraus…
Visão que se não pode ver 

Além-Deus! Além-Deus! Negra calma...
Clarão de Desconhecido...
Tudo tem outro sentido, ó alma,
Mesmo o ter-um-sentido… 

                         Fernando Pessoa




  
 
Cântico Negro
 

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe  

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...  

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?  

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...  

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.  

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...  

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...  

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.  

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí! 

                                      José Régio

quarta-feira, 14 de março de 2012

Prisioneiros Voluntários


Tela de René Cabodi


“Eu penso que é importante compreender que a liberdade está no princípio e não no fim. Pensamos que a liberdade é algo a alcançar, que a libertação é um estado de espírito a obter gradualmente através do tempo, através de várias práticas; mas para mim, esta é uma abordagem totalmente errada. A liberdade não é para ser alcançada, a libertação não é uma coisa a obter. A liberdade, ou libertação, é um estado de espírito que é essencial à descoberta de qualquer verdade, de qualquer realidade; por conseguinte, ela não pode ser um ideal; ela tem de existir mesmo de início. Sem liberdade no princípio não podem existir momento de compreensão directa porque todo o pensamento está então limitado, condicionado. Se a sua mente estiver atada a qualquer conclusão, a qualquer experiência, a qualquer forma de conhecimento ou crença, ela não é livre; e uma mente assim não pode perceber o que é a verdade.”
Jiddu Krishnamurti



Assim há que começar, assim há que partir à descoberta da vida. Com a liberdade, intacta e imaculada, como única bagagem.
Mas são poucos os que assim modestamente ataviados põem pés a caminho pela vida fora. Os outros, os muitos, esses enchem-se de bagagem. Malas e maletas, sacos e sacas, até baús que trazem a reboque de um passado que nem sequer é deles.
Desde tenra idade que os enchem de bagagem. “Ouviste rapaz? O meu clube é o maior! Tens de ser do meu clube!” repete o pai entusiasticamente quase até à exaustão. “Meu filho, já disseste as tuas orações? Olha que nosso senhor castiga-te!” admoesta a mãe a um ritmo diário.
À medida que o tempo decorre, a liberdade vai sendo mutilada de diversas maneiras. “Grande vitória, a do nosso partido, hein pá?! Temos que lutar pela liberdade!” exclama o pai enquanto dá ao rapaz uma orgulhosa palmada nas costas. “Sabes filha, tens de ter estatuto social se queres que te respeitem!” aconselha ciosamente a mãe.
Entre conselhos e deveres, entre tradições e obrigações, entre crenças e dogmas, entre patriotismos e idolatrias, o indivíduo consente placidamente em que lhe encham malas e baús. E quanto mais bagagem lhe acrescentam, mais liberdade lhe retiram. A vida transforma-se-lhe num contínuo e ensurdecedor ruído exterior, num movimento dirigido e condicionado, num incessante emalar de conceitos, preconceitos, ideias e ideologias prontos a consumir, nunca tocados pelo questionamento, nunca abordados pela dúvida, nunca explorados sob ângulos distintos. Arrasta-se o indivíduo penosamente pela vida fora, vergado pelo peso da bagagem, e em vão procurando por entre a tralha acumulada, que sempre lhe serviu de prisão, a liberdade que um dia possuiu sem se dar conta.
Milhões de indivíduos procuram fora o que dentro de si truncaram.
Mas alguns, muito poucos, tendo-se apercebido da inigualável importância da liberdade, pegaram nela quando ainda quase intacta, e lançando fora as poucas tralhas que todavia carregavam, com ela pavimentaram o caminho da sua vida.
Enquanto ao homem de excessiva bagagem, a cada passo que dá, parece afunilar-se-lhe o caminho, ao homem imbuído de liberdade, perde-se-lhe a vista, qual vertigem, num horizonte infinito e sempre mais amplo.

terça-feira, 6 de março de 2012

As gentes do deserto



Não são apenas as terras do interior que sofrem do flagelo da desertificação. É todo o interior. O interior humano. Fogem as gentes do natural, do sadio interior e aglomeram-se no irreal, no doentio exterior.

Estão secas as gentes. Se lhes perguntamos algo respondem-nos com aspereza, com custo, com esforço, como uma engrenagem mal oleada obrigada a funcionar. Mas sempre distantes, sobranceiras, como se valorizando a resposta e menosprezando o inquiridor. Se tivermos a sorte de que a elas lhes seja um dia favorável, quiçá lhes vejamos esboçado, ainda que logo se desvaneça, o início de um sorriso. Mas se foi o azar que lhes tocou ao levantar, será um esgar desagradavelmente azedo e antipático que acompanhará uma resposta geralmente monossilábica e desprovida de qualquer contacto visual. Não há comunicação, permuta, palavra ainda não pronunciada que o olhar, porque os olhos estão nos olhos, já adivinhou.
Estão secas as gentes. Dir-se-ia que as afinidades inerentes à espécie exercem a função contrária e em vez de galvanizarem, repelem. Mas haveria que ver como lhes brilham e se lhes dilatam as pupilas perante trivialidades inanimadas: um objecto caro, um agasalho de marca, um espectáculo ou um jogo.
São estéreis as gentes. Interpeladas, agem e reagem da mesma forma. Ajustam-se, solícitas e na perfeição, aos padrões vigentes. Automatizam-se e estereotipam-se com o mesmo à vontade com que atiram ao chão um caroço ou uma beata. Cegas, mente embotada, nada geram no interior, mas exteriormente proliferam como erva daninha. Áridos de princípios, carecidos de valores, infrutíferos e improdutivos, albergando sentimentos emurchecidos e sequiosos, são estes os interiores desérticos e monocromáticos das gentes de hoje.
Giram e rodopiam entre irrealidades, feitas piões que alguém lançou, as gentes de hoje. Envolvem-se e revolvem-se entre palavras velhas cujo sentido primeiro se perdeu no folhear do tempo. Enchem cérebros e mentes de ideias e teorias, feitas poeirentos repositórios de pensamentos alheios. Espolinham-se na matéria grotesca do exterior, feitas alvos do alheamento e da perversão.
Povoam-se as ilusões, desertificam-se as almas.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

J. Rentes de Carvalho e as Duas Perguntas

J. Rentes de Carvalho

Um dia descobri J. Rentes de Carvalho e desde aí sou leitora assídua do seu blogue Tempo Contado. Não deixo de ler nenhum post seu. E porquê? Porque J. Rentes de Carvalho possui aquela característica inquisitiva e crítica, aquele olhar incisivo e perscrutante e aquele espírito irrequieto e lutador, que caracterizam a pessoa que vive inteligentemente consciente de si, dos outros e do mundo que a rodeia. Rentes de Carvalho mostra tudo isso através da sua escrita rica e elegante, ora profundamente séria, ora orlada de humor. E por vezes até mistura o sério com o divertido, imprimindo desse modo uma força ainda mais poderosa ao que escreve.

Ora, no mês passado, decidiu J. Rentes de Carvalho fazer um concurso a que chamou Duas Perguntas. Ciente das minhas limitações e da minha falta de conhecimentos, decidi, ainda assim, concorrer. Assim fiz. E fi-lo secretamente acalentando o impossível desejo de ver respondidas por Rentes de Carvalho, a quem tanto admiro, as minhas perguntas.
E não é que ganhei!? Mas mais, muito mais do que o prémio, que obviamente também agradeço muito, ganhei as respostas de Rentes de Carvalho às minhas perguntas. E essas respostas vieram consolidar, de forma inequívoca, o que eu dele já antes pensava e lho fizera saber: “…a sua escrita, prezado Rentes de Carvalho, essa é elegante, pejada de conteúdo, sabiamente fundamentada e enriquecida, não com uma linguagem pedante e pesada mas com, creio eu, a linguagem que advém de todo um percurso de vida norteado por uma sensatez e uma acutilância que a grande maioria dos seres infelizmente não possui.”
Eis as minhas perguntas e as respostas de Rentes de Carvalho:
IG: Viajado como é, pelo mundo e pela vida, e se a determinada altura lhe desse por fazer um balanço introspectivo, gostaria que me dissesse, à luz desse balanço, se, para si, são as circunstâncias que fazem o homem ou, antes pelo contrário, o homem forja e molda as suas próprias circunstâncias?
JRC: Certezas não tenho, mas se fosse possível forjar e moldar as próprias circunstâncias, creio que a minha vida teria sido bem diferente, sem aventura, com menos sobressaltos, moderada nos resultados. Por outro lado, isso implicaria também a perda de momentos de muita adrenalina, de sentir extrema alegria, alguns êxtases, viver revelações surpreendentes, ter motivos para admiração e paixão. Posso dar-me a ideia de, uma vez ou outra, ter sido o timoneiro da barca, mas a força da corrente sempre pôde mais e levou a melhor sobre a minha perícia ao leme.
IG: Como leitora diária e atenta do seu blogue infiro que são muitas as características, digamos, menos nobres do ser humano que lhe causam sentida e sincera tristeza. A minha pergunta é, por oposição à minha afirmação, que resultados, que efeitos, da sua escrita, lhe causaram e continuam a causar-lhe uma profunda e genuína alegria?
JRC: Uma das desagradáveis características da alegria, mesmo profunda e genuína, é a velocidade com que perde impacto e se vai esvaindo da memória. Tivesse ela a força e a permanência da tristeza. Mas eu seria desagradecido e hipócrita se quisesse esconder ou diminuir as alegrias que a escrita me tem dado. Conto por alto: ver impresso o meu primeiro romance; os primeiros artigos de jornalismo; o impacto de Com os Holandeses no público holandês; as excelentes críticas aos meus livros na Holanda, na Bélgica, na Alemanha, no Le Monde e no International Herald Tribune; o êxito de Portugal, um guia para amigos; a recente edição da minha obra em Portugal.
São de facto muitas, grandes e pequenas, as alegrias que me têm vindo da escrita, mas entre as mais íntimas conto os testemunhos dos leitores, quando me dizem como, e por que motivo, os tocou um ou outro livro meu. 

Estimado J. Rentes de Carvalho, muito obrigada!

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Dissertação sobre o Anonimato

O anónimo esconde o rosto mas deixa perigosamente à vista o seu carácter!
Sempre fiz um esforço para tentar compreender o uso do anonimato. Compreendê-lo pela positiva, claro está. Tentar perceber nele uma causa justa, vislumbrar-lhe uma pontinha de nobreza, enfim, algo que o legitimasse na proporção directa do seu cada vez mais frequente uso. Nada. Nunca fui capaz de encontrar nada sensato que o desculpasse.
Portanto, e até prova em contrário, o anonimato continua a ser para mim a mais comum e estúpida forma de cobardia. O indivíduo cobarde fervilha de emoção ao imaginar-se corajoso. Infla-se-lhe o ego, desabrido desata-se-lhe a voar o pensamento, e a simples visão mental da coragem e da bravura provoca-lhe um quase “orgásmico” estremecimento. Mas não passa disso mesmo: imaginação. Na realidade, o indivíduo cobarde é um indivíduo que não amadureceu. Estará talvez numa adolescência tardia em que o assumir de responsabilidades e a tomada de consciência do que é estão ao nível da importância de um jogo de futebol ou de uma noite de copos; estará numa adolescência a destempo em que a imaginação e a fantasia constituem uma saída viável para o medo de enfrentar a realidade, achando portanto preferível sonhar eternamente com a queca que haveria de dar à loira da turma em vez de enfrentar, em resposta à sua solicitação, uma frustrante recusa ou, ainda pior, uma lancinante zombaria.
O anonimato pode, portanto, significar um escudo de protecção, uma forma de evitar a exposição directa à realidade frustrante e dolorosa. Pode, também, significar uma auto-estima muito baixa, uma auto-confiança quase inexistente, e neste caso o anonimato funciona como um grito de socorro, um pedido de atenção, uma necessidade de mostrar aos outros que se existe.
O anónimo precisa de medir forças para se alhear da sua cobardia, anseia pela comparação com os outros para poder calar a voz que lhe sussurra “tu não és tão bom quanto eles”. O anónimo opina acerca de tudo, do que sabe e do que não sabe, tentando provocar reacções; e cada reacção significa, para ele, a importância, a confiança, a atenção que não consegue encontrar em si próprio por si próprio.
Não merece, pois, o anónimo resposta alguma. Qualquer uma que se lhe desse seria como presentear o ébrio com uma garrafa de vinho. Não merece o anónimo um laivo de credibilidade já que tudo o que transmite advém de raciocínios desviantes. Mas merece, isso sim, compaixão.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Ritmos do Quotidiano

Eos, deusa grega da Aurora
O levantar é sempre uma agradável perspectiva. A aurora que Eos mais uma vez despontou é a antecâmara do novo, um renascer sempre diverso. Qualquer nuvem, mais ou menos densa, que tivesse ensombrecido a alma no dia anterior por certo se haveria dissipado durante a noite, enquanto corpo e mente serenamente se entregavam aos cuidados de Hipnos e Morfeu. Surge, por isso, sempre radiante e pleno, o crepúsculo matutino, seja qual for a cor de que se veste.
Desde o levantar até à fracção de segundo anterior ao primeiro contacto com a balbúrdia mundana, o viver é um fluir constante do pensamento, um brotar de ideias, um confortável e simples existir em regiões insusceptíveis de definição. O funcionamento da mente e do corpo é natural, espontâneo, não forçado, sem tensões. Sob estas condições em que, possante e firme, coexiste uma inexplicável liberdade, sou não sendo eu, sou sem nome e sem forma, sou o que nesse momento é. E assim vivo até ao instante em que a porta se abre para me deixar sair.
Hemera, deusa grega do Dia
Às mãos de Hemera começa o dia e instala-se então a desordem, a confusão. Filas de trânsito, manobras insuspeitadas, travagens bruscas, correrias e ruído, ruído, ruído. E eis a vida em suspenso. A partir de agora, e até que o sol se ponha indiciando o almejado regresso, o comportamento mecanizado, um estranho colete-de-forças que estrangula o fluxo da vida, preencherá as horas. Horas em que permanecer sã é titânico desafio, em que os estereótipos entram sem convite e fervem na corrente sanguínea tentando transfigurar incautos e crédulos. Horas em que as acções, as atitudes, as palavras, as opiniões, são simples artigos em série que abastecem o ávido consumidor do paradigma vigente. Horas de tal efemeridade e falsidade que até os sensatos pensamentos tidos na alvorada, que então, no afã de alcançar o divino, se moviam por entre o perfeito e o sublime, parecem agora, se lembrados, tão assustadoramente irracionais que mais se assemelham a bizarras esquizofrenias ilustradas em forma de imagens mentais.

Nix, deusa grega da Noite
Hespéra, deusa
grega do Crepúsculo
O sol ao desaparecer vai deixando o horizonte pintado de cores irreais cuidadosamente escolhidas por Hespéra. À medida que se encurta a distância entre o inferno mecanizado da agitação da vida fingida e o paraíso ansiado da solidão e do silêncio, o fluxo da vida, agora liberto, retoma gradualmente rumo e ritmo. Vão-se entregando a luz e a cor do crepúsculo, suave e lentamente, à escuridão do manto que Nix estende.

E antes de voltar ao reparador regaço de Hipnos e de aceitar as oferendas de Morfeu, aí estou eu outra vez sendo, não eu, mas o que é nesse momento.



Hypnos and Thanatos, Sleep and His Half-Brother Death by John William Waterhouse


Nota: Eos, Hemera, Hespéra e Nix, pinturas de William-Adolphe Bouguereau

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Sodoma e Gomorra ou a vida aviltada

Jan Brueghel the Elder, Sodoma e Gomorra

Quando a vida é tratada como mero produto financeiro, algo está visceralmente mal! Quando a vida serve de objecto de apostas em que o protagonista é o vil metal, algo está inegavelmente putrefacto na mente e no coração da humanidade!
Soam cada vez mais fortes as badaladas da decadência! E cada vez mais destemidos, cruéis e ignóbeis se mostram os monstros da perversão! Qual Sodoma e Gomorra, a passos largos caminhamos para a esterilidade de sentimentos, para a aridez de princípios, para a secura do coração. Cada vez mais nos aproximamos de uma era glaciar da alma!
E não há deus que valha aos homens, que o deus que há foi o que eles criaram à sua vil imagem!


P.S.: P.f. siga os links do texto!

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Discernimento

Antonio Balestra, A Virtude Defendendo a Educação da Ignorância e do Vício


Ignorância não é não saber ler nem escrever, é não saber discernir. Inteligência não é informação, é saber discernir apesar da informação. E discernimento não é nem cultura nem informação, é percepção sem barreiras, sem condicionamentos, é compreensão instantânea e livre e ilimitada, é a leitura da vida feita com os olhos da alma.

A informação e a (in)cultura actualmente consumidas cegam o indivíduo. Este, já de si algo avesso a ver as coisas com olhos de ver e a exercitar a arte de pensar pelos próprios miolos, deixa-se deslumbrar e atordoar com todo o género de brinquedos, divertimentos e distracções. E de cérebro entontecido e limitado, de mente turvada pela confusão e cheia de raciocínios de segunda mão, de intelecto imbecilizado e cristalizado pela cultivação do disparate, lá ruma ele para onde ruma a turba. E vai cego mas ufano, mecanizado mas contente, morto mas achando-se vivo.
Não sei que espécie de torpor lhe adormece o entendimento. Nem que espécie de embrutecimento lhe rouba a ânsia da auto-exploração e da auto-descoberta. E muito menos sei de onde e porquê lhe vem aquele impulso idiota de achar que conhece os outros, de se permitir avaliá-los, criticá-los, julgá-los. Pois se nem a si próprio se conhece sequer!
Hoje em dia não se tem a humildade de se ter uma opinião. A opinião, que outrora era apenas um modo de ver pessoal, individual, e que servia para que, por meio da modéstia, da partilha e do verdadeiro saber ver e ouvir, da discussão sensata nascesse a luz, hoje, pela ignorância e pela soberba, sabe-se lá por que artes do demo, nasce já uma certeza com um séquito de néscios acometidos de indolência mental. E ei-los que acerrimamente defendem a idiotice que outro pensou. E em todo este processo, nem uma vez, alguém, questiona alguma coisa!
Enquanto a ignorância e a estupidez, a arrogância e a empáfia, a superficialidade e a idiotia proliferam e alastram, o discernimento, a verdadeira inteligência, vai-se tornando, pela sua escassez, um tesouro a preservar!

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Aventar – Blogs do Ano 2011


O FaceDaLetra participou no Concurso e agradece todas as visitas recebidas!


Ao blogue Divina Comédia, os meus parabéns! A vitória foi mais que merecida! Na categoria de Auto-conhecimento / Reflexão Filosófica o Divina Comédia foi ímpar!
E se para alguma coisa vale a minha opinião, o blogue Ponteiros Parados, tão injustamente detido na primeira eliminatória, seria, a meu ver, um segundo lugar de eleição!
Ao Aventar, os meus parabéns pelo modo íntegro como organizou e dirigiu o evento desde o início e, sobretudo, pela estóica e paciente atitude demonstrada perante a idiotice, a estupidez e a mesquinhez dos mil e um comentários dos mil e um pobres de espírito!

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

O culto de "o mais"

(Flandrin, Hippolyt - Jeune Homme Nu Assis - Louvre)


Apanágio dos dias de hoje é o culto de “o mais”. O mais caro, o mais bonito, o mais rico, o mais moderno, o mais esperto. As vinte e quatro horas de cada dia da vida do devoto deste culto são dedicadas à adoração do efémero. Não há tempo para nada mais se se quiser ser o primeiro, o mais importante, o mais destacado, o mais famoso, o mais badalado. Preenchem-se então os dias com todo o tipo de idiotices, que vão desde o futebol à política e aos implantes mamários. Procura-se afincadamente “o mais” em tudo o que possa colmatar o ego de satisfação. Porque é esse o deus deste culto. Há que mantê-lo contente, saciado. Há que cobri-lo de oferendas, sempre diversas, sempre novas na sua transitória qualidade, não vá ele tomar-se da ira e desaparecer, deixando os devotos sem protecção. E isso sim, seria desastroso. 

Sem a parafernália que o culto exige, sem a inspiração para a criação de ideias e objectos inúteis que a egocêntrica divindade insufla nas mentes imbecilizadas dos devotos, sem as vestes que os obriga a usar, e sem o cenário irreal montado pela cegueira dos seguidores e consolidado pela divindade no seu ávido desejo de veneração, o devoto ficaria completamente nu. Ficaria exposto. Sentir-se-ia desamparado, completamente indefeso. Abandonado pelo deus do externo, despojado de todo e qualquer sustentáculo concreto, o devoto ver-se-ia reduzido ao último reduto material: o seu próprio corpo. 

Assim desapossado, ver-se-ia tão comum e tão similar a todos os outros desolados seguidores. Sem a sua pretensa singularidade, sem a sua inconsistente originalidade, haveria de chegar o medo. E o medo colar-se-lhe-ia à pele. 

Num mundo de completas ausências objectivas, por única companhia esse medo devastador da insignificância em que se tornara, frustrado pela colossal impotência que o assolava, o devoto voltar-se-ia para a única coisa que lhe restava: para si próprio. E dentro de si encontraria um surpreendente e desconhecido mundo de consciência que o traria de volta à humanidade.  

Mas isto é só e apenas um puro devaneio de quem está a escrever. Tal como são as coisas nos dias de hoje, o devoto do culto de “o mais” irá continuar, quiçá ad aeternum, nesta aberrante atrofia.


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