quarta-feira, 3 de julho de 2013

O Rei Morreu, Viva o Rei ou Ascensões e Quedas



Sempre esteve à vista de todos! Infelizmente ninguém quis ver. Ninguém quer ver. Embora esteja a referir-me à imaturidade do ser humano em geral, não posso, neste momento, deixar de salientar a gritante imaturidade da garotada portuguesa. Governantes e governados. Estão todos ao mesmo nível: catraios cuja responsabilidade se limita ao gozo máximo do brinquedo que, em determinado momento, tiverem entre mãos. Porque no momento seguinte, por obra da volubilidade que caracteriza os petizes imberbes à descoberta do mundo, ei-los que largam, desinteressados, o brinquedo agora entediante e correm à descoberta de outro, tão imbecilmente entusiasmados como quando correram para o anterior.

Movem-se em círculos viciosos. E por mais repetidamente que o façam, parecem retirar da torpe brincadeira o mesmo grau de gozo. São astutos os governantes e uns simples os governados. Será que nem uns nem outros se dão conta da natureza ridícula e de faz-de-conta dos seus próprios actos? O governado, ouvindo falar em eleições, põe as antenas no ar, incha com o direito que alguém não existente lhe outorgou e arroga-se de salvador da pátria, incitando amigos e companheiros a votar em X. O governante, com eleições pela frente, em bicos de pés e todo insuflado, parece crescer com uma autoridade que ninguém lhe concedeu e promete mundos e fundos. Depois das eleições, como se de um ritual se tratasse, o governado, mais uma vez, bate com os cornos na parede perante a imutabilidade das coisas e, mais uma vez, sente-se defraudado; e o governante, manhoso e embusteiro, mais uma vez se governa com uma abundância que não é sua enquanto, hipocritamente, arrota palavras de patriotismo que são tiro e queda para inebriar a inculta e lerda massa eleitoral.

Prossegue a brincadeira. Repete-se o padrão. Uns cansaram-se de brincar e, amuados, gritam a pleno pulmão “Não brinco mais a isto!”. E vão-se embora. Outros, com um  paternalismo fictício e uma bem estudada atitude de aparente responsabilidade e maturidade, batem o pé e insistem “Não vale desistir! Eu vou jogar até ao fim!”.

Ah, povo estúpido, que mais uma vez vais cair na ratoeira que tão subtilmente te têm preparado ao longo de décadas! Ah, povo ignorante, que te não dás conta que por mais que gire o carrocel, as voltas são sempre iguais e a paisagem é sempre a mesma! Ah, povo inculto, que ainda não aprendeste que campanha eleitoral significa, na prática, ditadura autorizada! Ainda não percebeste que eleições são meras disputas de poder entre meia dúzia de macacos que parecem agredir-se à tua frente, mas que, na realidade, são inseparáveis companheiros e frequentam o mesmo galho do conluio e do ludíbrio! Tu, povo estúpido, continuas a dançar ao som do “vira o disco e toca o mesmo”, continuas a venerar candidatos que mais tarde odiarás e substituirás por igual ou pior. Continuas a confundir lobos com carneiros, quer sejam esses lobos os que elegeste ou virás a eleger, quer sejam os tristes e ocos agitadores que te chamam a lutas inglórias e cujo único fim é parir números, contar cabeças do rebanho.

Suspiras por mudança, povo estúpido? Então muda tu.

Anseias por justiça, povo ignorante? Então sê justo.

Almejas liberdade, povo inculto? Então liberta-ta a ti mesmo.


- E lembrem-se - recomenda o lobo, sorridente e persuasor - agora
 é novamente a vez do partido X! Não se esqueçam de votar nele!


quarta-feira, 5 de junho de 2013

Buscas e Legados




A solidão é o destino do buscador. Porque o buscador sai do caminho traçado. Porque o buscador questiona e atreve-se a refutar o irrefutável. De algum modo, mais ou menos subtil, mais ou menos evidente, o buscador é posto à margem da marcha estereotipada da sociedade. Para esta, o buscador é um louco, vive no “mundo da lua” e só diz disparates.

A solidão é o destino do buscador. Mas a sua solidão não é o estar só porque não tem ninguém. A sua solidão é estar só no mundo inteiro, no cosmos inteiro, e ainda que só, sentir o pulsar da alma dos outros buscadores. O que é, afinal, não estar só.

Por vezes, muito poucas no decorrer de toda uma vida, o buscador tem a sorte de encontrar outro buscador e de com ele aprender. Para o primeiro é uma bênção, um alumiar do caminho. Para o segundo, será por certo uma bênção alumiar o caminho de alguém.

Abraham Gonzalez, no seu blogue – El Rapto de Psique - e nos seus livros[i], demonstrando um vasto conhecimento, com humor e uma extraordinária abrangência, faz-nos descobrir o essencial e o eterno por entre toda a complexidade do conhecimento humano. E faz mais ainda: toma-nos da mão e faz-nos viajar quer pelos recônditos da alma humana, quer por toda a estrada da sabedoria perene que a humanidade, ofuscada pelos brilhos da superficialidade, preferiu deixar repousar num quase opaco esquecimento. Abraham acompanha-nos por essa estrada e resgata do olvido tudo aquilo que o Homem jamais deveria ter deixado para trás.

Entrar no mundo de Abraham Gonzalez é, para o buscador, tornar mais amplo e mais iluminado o seu caminho. É saber que, na sua manifesta solidão, não está, e nunca estará, só.

Eis um capítulo extraído do seu livro “Simplemente Ocurre” e que é, como o próprio título indica, um verdadeiro legado:

"Legado



Após algum tempo aprenderás a diferença entre dar a mão e socorrer uma alma, e aprenderás que amar não significa apoiar-se, e que companhia nem sempre quer dizer segurança.

Começarás a aprender que os beijos não são contratos, nem prendas, nem promessas… começarás a aceitar as tuas derrotas com a cabeça erguida e o olhar em frente, com o encanto de uma criança e não com a tristeza de um adulto, e aprenderás a construir hoje todos os teus caminhos, porque o terreno do amanhã é incerto para os projectos e o futuro tem o hábito de cair no vazio.

Depois de um tempo aprenderás que o sol queima se te expões demasiado… aceitarás inclusivamente que as pessoas boas podem magoar-te alguma vez e precisarás de perdoá-las…

Aprenderás que falar pode aliviar as dores da alma… descobrirás que leva anos a construir a confiança e apenas um segundo destrui-la, e que tu também poderás fazer coisas das quais te arrependerás o resto da vida. Aprenderás que não temos de mudar de amigos se estivermos dispostos a aceitar que os amigos mudam. Dar-te-ás conta de que podes passar bons momentos com o teu melhor amigo a fazer qualquer coisa ou simplesmente nada, somente pelo prazer de usufruir da sua companhia.  

Descobrirás que muitas vezes julgas superficialmente as pessoas que mais valor têm para ti, e por isso devemos dizer a essas pessoas que as amamos porque nunca teremos a certeza de quando será a última vez que as vamos ver.

Aprenderás que as circunstâncias e o meio que nos rodeia têm influência sobre nós, mas nós somos os únicos responsáveis pelo que fazemos. Começarás a aprender que não devemos comparar-nos com os outros salvo quando quisermos imitá-los para sermos melhores. Descobrirás que leva muito tempo para chegares a ser a pessoa que queres ser, e que o tempo é curto.

Aprenderás que não importa onde chegaste, mas sim aonde te diriges...

Aprenderás que se não controlas os teus actos serão eles a controlar-te e que ser flexível não significa ser fraco ou não ter personalidade, porque não importa o quão delicada e frágil é uma situação: sempre existirão dois lados. Aprenderás que heróis são aqueles que fizeram o que era necessário, enfrentando as consequências... aprenderás que a paciência requer muita prática.

Descobrirás que por vezes, a pessoa que esperas que te pontapeie quando caíres talvez seja uma das poucas que te ajudem a levantar. Amadurecer tem mais a ver com o que aprendeste das experiências do que com os anos vividos. Aprenderás que há muito mais dos teus pais em ti do que aquilo que supões.

Aprenderás que nunca se deve dizer a uma criança que os seus sonhos são parvoíces porque poucas coisas são tão humilhantes como esta e seria uma tragédia se ela acreditasse.

Aprenderás que quando sentes raiva, tens direito a tê-la, mas isso não te dá o direito de ser cruel. Descobrirás que só porque alguém não te ama da maneira que tu queres, isso não significa que não te ame tudo o que pode, porque há pessoas que nos amam mas que não sabem demonstrá-lo... Nem sempre é suficiente ser perdoado por alguém, por vezes terás de aprender a perdoar-te a ti próprio.

Aprenderás que com a mesma severidade com que julgas, também serás julgado e – em algum momento – condenado. Aprenderás que não importa em quantos pedaços se partiu o teu coração, o mundo não pára para que o consertes.

Aprenderás que o tempo não é algo que possa voltar atrás, portanto, deves cultivar o teu próprio jardim e adornar a tua alma, em vez de esperar que alguém te traga flores.

Então, e só então, saberás realmente o que podes suportar; saberás que és forte e que poderás ir muito mais longe do que pensavas quando acreditavas que não se podia ir mais. E que a vida tem valor quando tens a coragem de enfrentá-la."

Em “Simplemente Ocurre”
Tradução: Isabel G


Gracias, Abraham!



[i] Para saber mais sobre os livros de Abraham Gonzalez, visite o blogue e/ou contacte o autor, ou ainda visite o Scribd.


sexta-feira, 31 de maio de 2013

Monstros no Poder


A desumanidade ainda me surpreende, ainda me choca, ainda me agonia. Não porque não abundem os vis e tenebrosos exemplos neste mundo em franco declínio, mas porque, no mais recôndito do meu ser, albergo a esperança de um renascimento ainda que, talvez, num futuro demasiado distante...



Gina Rinehart Pede Esterilização dos Pobres



A multimilionária conservadora Gina Rinehart pediu hoje a esterilização dos pobres, argumentando que a única maneira de aliviar a pobreza é impedir as “classes desfavorecidas” de se multiplicarem.

Num vídeo carregado na sua conta oficial do You Tube, a herdeira mineira australiana disse que a desigualdade de rendimentos é causada por diferenças na inteligência e que a eugenia é a única solução.

“A nossa nação enfrenta uma grave crise económica visto que a combinação de um dólar australiano forte e a queda de preços das matérias-primas esgotam a nossa capacidade de competir globalmente,” explicou ela, “a única solução lógica para esta crise é fortalecer a qualidade do nosso recurso mais valioso: o capital humano. Penso que qualquer casal que ganhe menos de $100.000 por ano deveria ser esterilizado à força através de uma vasectomia ou da ligação da trompa de Falópio. Aqueles que ganhem mais do que $100.000 devem ser encorajados a ter 10 ou 12 filhos.
Somente eliminando o que não serve e concentrando-nos nos nossos trabalhadores mais inteligentes e mais eficientes é que podemos ter a esperança de derrotar os nossos rivais no mundo emergente”.


Herdar a Terra

Rinehart é a pessoa mais rica da Austrália e é considerada uma das mulheres mais ricas do mundo. A maior parte da sua fortuna vem de uma empresa mineira que herdou do seu pai e mais tarde se tornou líder na exportação de minério de ferro.

A sua fortuna prosperou durante o longo boom de exportação de matérias-primas da Austrália, mas está sob ameaça à medida que a economia chinesa abranda e os preços do minério de ferro caem. Somado às suas aflições está o ascendente custo de produção.

No final do ano passado, Rinehart fez um vídeo argumentando que os australianos precisavam de aceitar salários mais baixos porque as pessoas em África estavam dispostas a trabalhar por $2 por dia. Mas no vídeo de hoje ela parece ter-se apercebido que mesmo isso não seria suficiente.

“Pagar menos aos australianos é uma parte da solução, mas não pode ser a solução total. De nada serve pagar a alguém se esse alguém for demasiado preguiçoso, bêbedo e estúpido para operar convenientemente o nosso sofisticado equipamento mineiro. Portanto estou disposta a pagar um salário decente, desde que obtenha o filho de um médico e não o filho de um empregado de bar fracassado a viver da assistência social. O problema é que as classes desfavorecidas parecem estar a gerar pessoas inteligentes e eu não consigo encontrar em nenhum lado um trabalhador decente.
É aqui que entra o nosso governo. Ao impedir os pobres de procriar, podemos criar uma nova classe de australianos inteligentes, trabalhadores e bem pagos que forjem a nossa futura economia.”

Rinehart foi recentemente classificada em 16º lugar na lista da Forbes das mulheres mais poderosas do mundo, à frente da primeira-ministra australiana Julia Gillard.  A sua fortuna está estimada em mais de $21 mil milhões de dólares americanos.

Tradução: Isabel G


quarta-feira, 22 de maio de 2013

Cegos? Distraídos?



Andamos cegos. E distraídos. Limitamos a vida segundo a segundo, olhando-a apenas nos seus aspectos mais triviais, aqueles que alimentam o prazer imediato, que nutrem o ego, que tolhem a reflexão. O interesse está circunscrito ao ciclo vicioso do desejo-satisfação/prazer-desejo. A actual visão hedonista e solipsista da vida diminui, de modo dramático, a capacidade do indivíduo experienciar a existência em toda a sua amplitude.

Esta visão redutora, que coloca os indivíduos num sulco rotineiro, onde a vida é talhada à medida das tendências da corrente dominante sem que disso eles se apercebam, se por um lado gera uma vivência cega e inconsciente na corda bamba, na eterna iminência do perigo, por outro, permite uma entrega voluntária e duradoura ao doce torpor da ignorância, à ilusão tomada por realidade.

Aprisionámos a percepção numa torre de marfim. Programámos a inteligência apenas para o jogo-de-cintura exigido pelo quotidiano fútil, pleno de objectivos supérfluos e de necessidades inventadas. Calámos a voz interior para que não constituísse contrariedade. E fechámos os olhos, cegámo-los à força, para não vermos nada mais que os fátuos clarões do chamado progresso.

Mudos porque calámos as palavras da alma, surdos porque amordaçámos a voz da consciência e a voz do silêncio, cegos porque nos deixámos ofuscar pela monumental ilusão do transitório. Como se tal não bastasse, deitámos ainda mão da distracção. E a distracção, essa grande fingidora, é o garante de que “tudo está bem” e que “nada se passa fora do dito sulco”!

Há que abrir os olhos. Os da cara e os da alma!

Se os abríssemos, e se nos atrevêssemos a olhar para cima, talvez descobríssemos coisas “novas”. Talvez nos questionássemos quanto ao que fazem aqueles rastos no céu…


Talvez nos interrogássemos sobre o porquê de uns jactos deixarem rastos de condensação que quase logo desaparecem, e outros deixarem estranhos rastos que perduram, que se espessam, que se alargam, que vão pintando o céu de um ténue mas triste cinzento…



Talvez nos surpreendêssemos com os padrões desenhados no céu (em rede, ou em múltiplas paralelas) e achássemos que os padrões de voo não são normais…



Talvez considerássemos esquisito que alguns aviões consigam descontinuar e continuar esses rastos…


Talvez achássemos que a afluência de aeronaves numa determinada hora de um determinado dia é inusitada…


Talvez nos sentíssemos impelidos pela curiosidade despertada e tentássemos saber o que se passa. Então contactaríamos as autoridades aéreas mas ouviríamos explicações pueris. Contactaríamos os meios de comunicação social que se mostrariam totalmente desinteressados. Perante o muro intransponível que se iria erguendo, investigaríamosprocuraríamos informação, buscaríamos explicações. E como gotas de chuva dispersas, porém filhas da mesma nuvem, causas e origens iriam surgindo. Surgiriam factos, dúvidas e muita desinformação. E os olhos da cara começariam a abrir-se. Os da alma também.

É implacável a marcha destruidora do Homem sobre a Terra. Inexorável o seu desejo de supremacia sobre a Natureza. Infame a sua desmedida ambição. Patética e grosseira a sua sede de controlo. Mas nem assim deixamos de ser cegos e distraídos, surdos e mudos.


Nota: Todas as fotografias foram tiradas por mim, nos céus do norte de Portugal, entre Outubro de 2012 e Maio de 2013.

domingo, 28 de abril de 2013

J. Rentes de Carvalho: Há Que Lê-lo. Ponto.


Haverá sempre, entre o Homo Sapiens, espécimenes de alguma forma imperfeitos, inacabados. Não do ponto de vista biológico, mas daquela parte imaterial do Homem que, existindo, faz dele um ser integral. Aquela parte do Homem que o faz ver para além do simples olhar, escutar para lá do ouvir, perscrutar as profundezas do sentir sem ficar na vã superficialidade do trivial. São muitos, lamentavelmente, os espécimenes que dela estão desprovidos (vejam-se, por exemplo, os comentários de um tal Montez). E por força da sua incompletude sobra-lhes porém, - porque naturalmente, pela lei da compensação, se lhes aguçou - sobranceria em tosco carácter, vaidade em rudimentar autovalorização, enfatuação em ridículo ensoberbecimento. 

Mas há aqueles que são completos, inteiros. Aqueles que consideram a vida em todos os seus aspectos e profundidades. Aqueles que passam a fronteira do comezinho apenas habitado pela insuficiência, pela mesquinhez, pela incapacidade. Aqueles que avançam, sem medo, ou até com ele, pelos caminhos, sinuosos sim, mas muito sábios, da vida integral: os que são trilhados pelo corpo e, ao mesmo tempo, consolidados pela alma. Exemplos? Poucos, infelizmente, mas há-os, e um deles é o escritor contemporâneo J. Rentes de Carvalho! Sou incondicional admiradora, quer do próprio, quer da sua inigualável escrita. Há que lê-lo. Ponto.


Escreve ele em “O Rebate” (1971), publicado pela Quetzal em 2012:

Estranha, esta angústia do presente, do futuro.
Estranha, a imobilidade em que me perco, como se tivesse milhões de horas para esbanjar.
Estranho, o medo que me prende.
Estranha, a inconsciência com que governo o dia-a-dia (a vida, essa, é ingovernável…).
Não sou o primeiro que deseja o repouso do não-ser, gasto pelos amanhãs que não vêm – ou temendo-os – pernas e mãos bloqueadas, cérebro vazio, nauseado, sem saber.
Amanhã!
E amanhã será como hoje, como ontem, insatisfeito, triste, longe, mas enraizado naquela terra donde vim!
Indiscutivelmente, J. Rentes de Carvalho é talento, é genialidade, é completude! 


quarta-feira, 24 de abril de 2013

Do Tempo e do Ser

Tide of Time - Vladimir Kush

Como se amplia a angústia quando o pensamento teima em andar de um lado para o outro na ilusória linha do tempo!

Cada vez que o passado bate à porta e o deixamos entrar, fenece a alegria, medra o pesar. Se ao sofrimento de outrora estendermos a passadeira vermelha e a cada segundo lhe reiterarmos a admiração pelo sacrifício e pela dor, a felicidade, inteirando-se, foge a sete pés para lugar futuro, incerto e distante. Remexer o sótão das recordações pode, porém, constituir acto de sensatez se, ao executar dita actividade, tivermos, previamente, morrido. Só nesse estado se garante imunidade ao contágio e se poderão colher, nos rincões da memória, os intemporais fragmentos úteis à construção da vida.

Saltar para o futuro revela-se tão perigoso quanto o mergulho nas névoas pardacentas do passado. Pela sua própria natureza, o terreno gasoso do futuro nada sustém senão o desejo e a vã esperança. Construir castelos no ar ajuda o tempo a passar, mas não o imbui de qualquer realidade. Trama feita de fios de nada e urdidura de fios de coisa nenhuma são tela ambígua e instável. São o tecido do futuro em que o desejo e a esperança parecem agigantar-se e onde a felicidade, eterno objectivo do ser, se mantém distanciada, longínqua e inalcançável, em indistinto horizonte.

Passado e futuro. Duas quase inexistências sobrevalorizadas. E o presente, o momento de todas as coisas, do que já existe e do que há-de vir a ser, posto de lado. A única realidade, o agora, postergada.

No presente, já não ouvimos o vento murmulhar por entre as cores da natureza. Já nem sequer as tormentas feitas de ruidosos dilúvios e cavos estrondos, quanto mais o som imperceptível do bater das asas de uma borboleta ou o silencioso flutuar das nuvens altas e ronceiras. Já não ouvimos o bater do coração, nem o pulsar da alegria simples, aquela que chega só porque o sol brilha e o amor transborda sabe-se lá de onde. Já não ouvimos os sorrisos, nem nos pomos à escuta de prantos escondidos. Já não gargalhamos à chuva ou descalços na poça morna de água lamacenta.

No presente, já não ouvimos nada nem ninguém. Nem vemos, nem sentimos. No presente, só estamos presentes no passado e no futuro. Que é exactamente o mesmo que não estar, não ser, não existir. Fechámos os sentidos, bloqueámos os sentimentos, afastámo-nos do manancial inesgotável do todo-em-tudo-aqui-e-agora.

Como haveremos, então, de alguma vez compreender profundamente a vida, se a cristalizamos no presente, apenas para reencontrar reflexos dela num passado morto, ou projectar desejos dela num futuro inexistente?



domingo, 14 de abril de 2013

Não me apetece escrever, apetece-me reflectir...


Fotografia de guerreiros samurais da província de Satsuma durante a Guerra Boshin

Não tenho pais: Faço do céu e da terra meus pais.
Não tenho casa: Faço da consciência a minha casa.
Não tenho vida ou morte: Faço do curso da respiração a minha vida e morte.
Não tenho poder divino: Faço da honestidade o meu poder divino.
Não tenho meios: Faço da compreensão os meus meios.
Não tenho segredos mágicos: Faço do carácter o meu segredo mágico.
Não tenho corpo: Faço da persistência o meu corpo.
Não tenho olhos: Faço do clarão do relâmpago os meus olhos.
Não tenho ouvidos: Faço da sensibilidade os meus ouvidos.
Não tenho membros: Faço da prontidão os meus membros.
Não tenho estratégia: Faço do “não obscurecido pela sombra do  pensamento” a minha estratégia.
Não tenho desígnios: Faço do “aproveitar a oportunidade” o meu desígnio.
Não tenho milagres: Faço da acção correcta os meus milagres.
Não tenho princípios: Faço da adaptabilidade a todas as circunstâncias os meus princípios.
Não tenho tácticas: Faço do vazio e da plenitude as minhas tácticas.
Não tenho talentos: Faço do meu expedito entendimento o meu talento.
Não tenho amigos: Faço da minha mente o meu amigo.
Não tenho inimigos: Faço da negligência o meu inimigo.
Não tenho armadura: Faço da benevolência e da rectidão a minha armadura.
Não tenho castelo: Faço da mente impassível o meu castelo.
Não tenho espada: Faço da ausência do ego a minha espada.

                                                             Samurai anónimo, séc. XIV


domingo, 3 de março de 2013

Crónicas da Estupidez

Alimentando a Matriz


As manifestações são sempre um prolongamento da ilusão, uma consolidação da matriz. O que pode a indignação contra a poderosa maquinação dos detentores do poder? E os verdadeiros detentores do poder, acreditemos ou não, não são os governos. Os governos são apenas teatrinhos cujos fantoches são movidos por interesses imensamente maiores. Quase tão iludidos quanto os manifestantes, os governos, acreditando piamente que têm o poder nas mãos, não passam porém de meros objectos nas mãos dos grandes manipuladores. E quem são eles? Ora, quem haveriam de ser?

Afinal, não anda tudo ao mesmo? Os poderosos atrás de mais poder e mais dinheiro. Os governos atrás de mais poder e mais dinheiro. O povo atrás de mais dinheiro para consumir e assim, inconscientemente e obedientemente, alimentar a “filosofia de vida” dos todo-poderosos:

Quanto mais consomes, ó desgraçado, mais trabalhas para poder consumir mais! Quanto mais trabalhas, ó cretino, mais eu ganho! Quanto mais ganho, ó imbecil, mais poder e mais dinheiro tenho! E tu, grande estúpido, continuas a consumir e a querer fazê-lo cada vez mais!



O Pecado das Árvores


O exercício da sensatez e o uso da inteligência vão já sendo raros. A nível do poder local parece então que a imbecilidade atingiu níveis inesperados (ou não!).

Imagine-se que, na cidade da Maia, alguém se sentiu incomodado com as árvores existentes no passeio de uma das principais avenidas. Semelhante incómodo levou essa “pessoa” a apresentar uma queixa na Câmara Municipal da Maia contra as árvores (sim, já sei, parece uma anedota, mas garanto-lhe que não é!).

A Câmara Municipal, que, a bem da verdade, nunca se guiou muito pelo bom senso e pela sensatez, parece ter levado a queixa muito a sério (se calhar, a “pessoa” que se queixou até era uma “pessoa influente”!) e, sem mais delongas, ordena que se abatam as árvores. E afinal, qual era o motivo da queixa? Pois é, pasmem! É que as árvores sujavam os carros de alta cilindrada que por lá estacionam!

Que os donos das ditas viaturas sejam estúpidos, isso compreende-se. Mas o que não se compreende é que uma Câmara seja gerida por cabeças ocas desprovidas de qualquer grau de sensatez!



Os Sapatinhos do Papa


Parece que o ex-dirigente de uma das maiores religiões organizadas – o Máfia-Império do Vaticano – vai abdicar dos seus preciosos sapatinhos. Em vez dos sapatinhos vermelhos sangue, a sua recolha recai sobre uns discretos sapatos castanhos. 

Até aqui, tudo bem. Nada a objectar. Mas esta aparentemente simples escolha traz água no bico:

Não é que os sapatinhos castanhos, além de terem de ser oriundos especificamente de León, México, serão cuidadosamente fabricados com pele de vitelo recém-nascido?

Então! Não fiquem chocados! Todos os crimes, até os mais hediondos, são aceitáveis desde que sirvam o propósito de proteger os calos do papa! Ter humanidade é coisa de pobres!
 

Post carinhosamente dedicado ao meu amigo Voz!

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Sem Palavras


Poema Visual - Viktor Magalhães

     
      Quem me dera fazer um poema sem palavras
      Todo ele espaço e silêncio e infinito,
      Folhas brancas, luminosas, imaculadas
      Prontas a receber tudo quanto não é dito

      Quem me dera fazer um poema vivo
      Onde crescessem e se multiplicassem as ideias
      Onde a alma do mundo feita belo e grande rio
      Fosse a tinta que me corresse nas veias.

      Se fosse um poema eternamente por escrever
      Todo ele livre e leve como nuvens ao vento
      Sem fronteiras, sem limites, sem idade,

      Não seria o meu poema, seria o de todo o ser,
      Cadinho da vida, momento a momento,
      Tranquila alquimia no fluir da verdade!
 

Carinhosamente dedicado ao meu amigo Vítor!

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Jejum e Senso Comum ou a Justa Proporção

 



A propósito de um post do Ricardo Santos Pinto no Aventar, acerca de um livro que recomenda o jejum, eis o que lá comentei e julguei por bem aqui publicar, mais o que me aprouve entretanto acrescentar:
O jejum é uma prática com milhares de anos de existência. Existem registos dela na antiguidade, na história dos mais diversos povos e culturas.
Mas, infelizmente, o Homem, em vez de actuar com senso comum e seguir uma via de evolução inteligente, tendo em conta o que é, e sempre foi, natural, decidiu enveredar pelos caminhos da artificialidade.
Já repararam que, de todos os animais, o Homem é o único que distorce a realidade, artificializa processos naturais, não se contenta nunca com o que é, e cria uma vida de ilusões, de faz-de-conta?
Hoje em dia não ouvimos nem sentimos o nosso corpo. E todas as funções do organismo têm ruídos e movimentos específicos. Para quem está atento, se o organismo estiver são, os ruídos e os movimentos são de determinado tipo e têm uma determinada cadência; porém, se com tendência a enfermar, os ruídos e os movimentos são diferentes, arrítmicos, não habituais. Mas o Homem, na sua ânsia de criação de irrealidades, deixou de ouvir e sentir o corpo, tal como deixou de se ouvir e de se sentir a si próprio!
Um dos resultados, no meio de muitos e bem mais graves, foi o de enveredar por um tipo de alimentação sujeito a modas, tal como os trapinhos! Hoje em dia, quanto mais processado for o alimento, mais é considerado. Ninguém lê os “E” que aparecem nas embalagens, ninguém se dá ao trabalho de se informar sobre todo o cocktail químico utilizado no processamento dos alimentos. Antes pelo contrário: quanto mais industrializada, artificializada, “quimicalizada” e sofisticada for a indústria alimentar, mais o Homem se delicia em orgias gourmet, mais envenena o organismo e mais perde o seu verdadeiro rumo, a directriz nuclear da sua existência, que os antigos tão bem resumiam na frase “Mens sana in corpore sano”. Os conselhos dos sábios de outrora (“Que o teu alimento seja o teu medicamento”, Hipócrates; “Beber diariamente dois litros de água, comer muitas frutas, mastigar os alimentos do modo mais perfeito possível, evitar o álcool, o tabaco e os medicamentos…” As 7 Regras de Paracelso) nem muito remotamente são lembrados.
No lugar da sensatez e da naturalidade inventaram-se métodos e processos que, astuciosamente alardeados como sendo em prol da saúde e do progresso, geram impérios financeiros de que apenas uma minoria usufrui. A maioria, essa, manipulada e estupidificada pelos mil e um conselhos de saúde e nutrição, que segue à risca, e pelos mil e um produtos novos e modernos (e mortíferos), gananciosa e sub-repticiamente tornados indispensáveis, estupidamente arruína a saúde e esvazia a carteira.
Mitos como esse que o Ricardo referiu (comer de 3 em 3 horas) e outros, como a necessidade de beber leite de vaca a vida inteira (o Homem é o único mamífero que bebe durante toda a vida leite de outro mamífero; todos os outros mamíferos param de beber leite após o período de amamentação!) e a de comer carne vermelha para obter proteínas, são “argumentos” astutamente elaborados, porém inteiramente falsos, que constituem o sustentáculo do grandioso império das indústrias alimentares e farmacêuticas.
 “Com papas e bolos se enganam os tolos”: é, pois, vê-los a ingerir coca-cola e hambúrgueres, a comer doces cheios de aspartame e coisas que tais, a mascar pastilhas elásticas e a engolir gomas multicores!
Comer alimentos o mais naturais possível, apenas quando se sente o pequeno incómodo que sugere apetite e em quantidades mais frugais do que abundantes, deveria ser o comportamento alimentar generalizado. Forçar alimentos para dentro de corpo sem que este manifeste necessidade de reposição de energia é uma violência. Comer X vezes por dia, sem disso sentir necessidade, só porque os “entendidos” dizem que assim deve ser, é uma violência. Matar a sede com químicos (refrigerantes, etc.) em vez de com água é uma violência. Matar a fome com alimentos processados em vez de com alimentos naturais é uma violência. Mas comer alimentos naturais e jejuar é seguir os ritmos biológicos, é obter energia com equilíbrio e tranquilidade, é respeitar o corpo e fortalecer a mente.
Bem diferente seria o mundo se o Homem se ouvisse e se sentisse a si próprio!

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Despertares


As palavras serão sempre insuficientes para exprimir sentimentos e acções. Ficarão sempre aquém da intensidade e da profundidade do agir e sentir do homem. As imagens, essas, mostram a realidade nua e crua, e ainda que não descrevam sentimentos, têm por vezes a capacidade de os abalar, despertando-nos do sono da inconsciência.
Só a consciência desperta poderá avaliar com exactidão a sublimidade e/ou a vileza dos sentimentos e dos actos humanos. Só a consciência desperta impulsiona a mudança...





terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Desobrigações


Vladimir Kush

Gostava que me deixassem em paz. Que não insistissem em fazer-me sentir obrigada a algo, seja por meio de palavras, de olhares de reprovação ou de sorrisinhos de escárnio.
Não tenho que ir ao funeral de fulano ou beltrano ou sicrano. Não tenho que engrossar um tétrico aglomerado de enganosos abutres, rostos hipocritamente sorumbáticos, expressões compungidas quase sempre requintadamente escondidas sob óculos escuros. Não tenho por que mostrar às pessoas o que sinto em relação ao morto nem tenho de fingir que somos todos muito unidos e amigos nas “horas de desgraça”. E por que é que a morte há-de ser uma desgraça? A sê-lo, mais desgraça é para quem cá fica, que a saudade por vezes é osso duro de roer. Ou não, se habitarem dinheiros e terrenos no pensamento dos herdeiros. Também não tenho que ouvir o sacerdote, peça chave do dramatismo religioso, que sempre tem o condão de transformar um evento natural num acto lúgubre e sinistro, em que as palavras de uma dita divindade parecem escavar à força um profundo buraco na alma de cada um.
E por que hei-de exultar de alegria com um nascimento? Mais depressa me entristeço. Um novo ser neste mundo decadente, nesta civilização antropocentrista, neste mar de egoísmo e iniquidade, é muito mais um infortúnio do que uma satisfação. Um novo ser que será, desde logo, iniciado na insidiosa arte do viver no faz-de-conta, no quero posso e mando, no vencer a qualquer custo. Um novo ser que terá, desde o berço, o seu pensamento programado, o seu organismo conspurcado, o seu valor intrínseco sufocado, a sua humanidade destruída. Muito menos tenho que ir a baptizados. São violentos. Um pobre ser indefeso, inocente e puro, é submetido a um ritual de iniciação religioso que, a menos abra ele os olhos suficientemente cedo, o tolherá para o resto da vida.
Quanto aos casamentos, a que não vou nem em pensamento, vai a minha preferência para os divórcios. São estes últimos o único laivo de sensatez em todo o processo de encenação vitalícia a que os indivíduos se submetem e a que chamam casamento. O absurdo e o ridículo do acto, desde a preparação à consumação e à vida subsequente, são o que me leva a acreditar que o ser humano, além de revolver-se na mais tosca estupidez, é ainda profundamente imaturo. Casamento é parafernália, é ritual, é tradição, é padrão, é falta de autoconhecimento, de maturidade, de visão global, cósmica. Casamento não é amor, não é prova de amor, não é pilar de suporte para a descendência, não é obrigação nem dever nem devoção. Casamento é negócio. Negócio pessoal, social, político, económico e financeiro.
Tudo, afinal, é negócio. Tudo. O nascimento, a morte, o casamento, o baptizado, a religião, a política, a cultura, a educação. O dia dos namorados e o carnaval, a páscoa e o natal, a noite das bruxas que antes era a véspera de todos os santos, os dias mundiais disto e daquilo. Os aniversários e as bodas de prata e de ouro e de diamante. O amor, o sexo, a solidariedade, a amizade, os princípios, os valores. A ética, a arte, a beleza, a justiça e a fraternidade. As homenagens, os tributos, as celebrações, as comemorações. Tudo é negócio. Até a alma, que é artigo que se vende ao diabo a troco de favores…
De tudo isto me desobrigo. É inútil qualquer tentativa de dissuasão.
 
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