segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

J. Rentes de Carvalho e as Duas Perguntas

J. Rentes de Carvalho

Um dia descobri J. Rentes de Carvalho e desde aí sou leitora assídua do seu blogue Tempo Contado. Não deixo de ler nenhum post seu. E porquê? Porque J. Rentes de Carvalho possui aquela característica inquisitiva e crítica, aquele olhar incisivo e perscrutante e aquele espírito irrequieto e lutador, que caracterizam a pessoa que vive inteligentemente consciente de si, dos outros e do mundo que a rodeia. Rentes de Carvalho mostra tudo isso através da sua escrita rica e elegante, ora profundamente séria, ora orlada de humor. E por vezes até mistura o sério com o divertido, imprimindo desse modo uma força ainda mais poderosa ao que escreve.

Ora, no mês passado, decidiu J. Rentes de Carvalho fazer um concurso a que chamou Duas Perguntas. Ciente das minhas limitações e da minha falta de conhecimentos, decidi, ainda assim, concorrer. Assim fiz. E fi-lo secretamente acalentando o impossível desejo de ver respondidas por Rentes de Carvalho, a quem tanto admiro, as minhas perguntas.
E não é que ganhei!? Mas mais, muito mais do que o prémio, que obviamente também agradeço muito, ganhei as respostas de Rentes de Carvalho às minhas perguntas. E essas respostas vieram consolidar, de forma inequívoca, o que eu dele já antes pensava e lho fizera saber: “…a sua escrita, prezado Rentes de Carvalho, essa é elegante, pejada de conteúdo, sabiamente fundamentada e enriquecida, não com uma linguagem pedante e pesada mas com, creio eu, a linguagem que advém de todo um percurso de vida norteado por uma sensatez e uma acutilância que a grande maioria dos seres infelizmente não possui.”
Eis as minhas perguntas e as respostas de Rentes de Carvalho:
IG: Viajado como é, pelo mundo e pela vida, e se a determinada altura lhe desse por fazer um balanço introspectivo, gostaria que me dissesse, à luz desse balanço, se, para si, são as circunstâncias que fazem o homem ou, antes pelo contrário, o homem forja e molda as suas próprias circunstâncias?
JRC: Certezas não tenho, mas se fosse possível forjar e moldar as próprias circunstâncias, creio que a minha vida teria sido bem diferente, sem aventura, com menos sobressaltos, moderada nos resultados. Por outro lado, isso implicaria também a perda de momentos de muita adrenalina, de sentir extrema alegria, alguns êxtases, viver revelações surpreendentes, ter motivos para admiração e paixão. Posso dar-me a ideia de, uma vez ou outra, ter sido o timoneiro da barca, mas a força da corrente sempre pôde mais e levou a melhor sobre a minha perícia ao leme.
IG: Como leitora diária e atenta do seu blogue infiro que são muitas as características, digamos, menos nobres do ser humano que lhe causam sentida e sincera tristeza. A minha pergunta é, por oposição à minha afirmação, que resultados, que efeitos, da sua escrita, lhe causaram e continuam a causar-lhe uma profunda e genuína alegria?
JRC: Uma das desagradáveis características da alegria, mesmo profunda e genuína, é a velocidade com que perde impacto e se vai esvaindo da memória. Tivesse ela a força e a permanência da tristeza. Mas eu seria desagradecido e hipócrita se quisesse esconder ou diminuir as alegrias que a escrita me tem dado. Conto por alto: ver impresso o meu primeiro romance; os primeiros artigos de jornalismo; o impacto de Com os Holandeses no público holandês; as excelentes críticas aos meus livros na Holanda, na Bélgica, na Alemanha, no Le Monde e no International Herald Tribune; o êxito de Portugal, um guia para amigos; a recente edição da minha obra em Portugal.
São de facto muitas, grandes e pequenas, as alegrias que me têm vindo da escrita, mas entre as mais íntimas conto os testemunhos dos leitores, quando me dizem como, e por que motivo, os tocou um ou outro livro meu. 

Estimado J. Rentes de Carvalho, muito obrigada!

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Dissertação sobre o Anonimato

O anónimo esconde o rosto mas deixa perigosamente à vista o seu carácter!
Sempre fiz um esforço para tentar compreender o uso do anonimato. Compreendê-lo pela positiva, claro está. Tentar perceber nele uma causa justa, vislumbrar-lhe uma pontinha de nobreza, enfim, algo que o legitimasse na proporção directa do seu cada vez mais frequente uso. Nada. Nunca fui capaz de encontrar nada sensato que o desculpasse.
Portanto, e até prova em contrário, o anonimato continua a ser para mim a mais comum e estúpida forma de cobardia. O indivíduo cobarde fervilha de emoção ao imaginar-se corajoso. Infla-se-lhe o ego, desabrido desata-se-lhe a voar o pensamento, e a simples visão mental da coragem e da bravura provoca-lhe um quase “orgásmico” estremecimento. Mas não passa disso mesmo: imaginação. Na realidade, o indivíduo cobarde é um indivíduo que não amadureceu. Estará talvez numa adolescência tardia em que o assumir de responsabilidades e a tomada de consciência do que é estão ao nível da importância de um jogo de futebol ou de uma noite de copos; estará numa adolescência a destempo em que a imaginação e a fantasia constituem uma saída viável para o medo de enfrentar a realidade, achando portanto preferível sonhar eternamente com a queca que haveria de dar à loira da turma em vez de enfrentar, em resposta à sua solicitação, uma frustrante recusa ou, ainda pior, uma lancinante zombaria.
O anonimato pode, portanto, significar um escudo de protecção, uma forma de evitar a exposição directa à realidade frustrante e dolorosa. Pode, também, significar uma auto-estima muito baixa, uma auto-confiança quase inexistente, e neste caso o anonimato funciona como um grito de socorro, um pedido de atenção, uma necessidade de mostrar aos outros que se existe.
O anónimo precisa de medir forças para se alhear da sua cobardia, anseia pela comparação com os outros para poder calar a voz que lhe sussurra “tu não és tão bom quanto eles”. O anónimo opina acerca de tudo, do que sabe e do que não sabe, tentando provocar reacções; e cada reacção significa, para ele, a importância, a confiança, a atenção que não consegue encontrar em si próprio por si próprio.
Não merece, pois, o anónimo resposta alguma. Qualquer uma que se lhe desse seria como presentear o ébrio com uma garrafa de vinho. Não merece o anónimo um laivo de credibilidade já que tudo o que transmite advém de raciocínios desviantes. Mas merece, isso sim, compaixão.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Ritmos do Quotidiano

Eos, deusa grega da Aurora
O levantar é sempre uma agradável perspectiva. A aurora que Eos mais uma vez despontou é a antecâmara do novo, um renascer sempre diverso. Qualquer nuvem, mais ou menos densa, que tivesse ensombrecido a alma no dia anterior por certo se haveria dissipado durante a noite, enquanto corpo e mente serenamente se entregavam aos cuidados de Hipnos e Morfeu. Surge, por isso, sempre radiante e pleno, o crepúsculo matutino, seja qual for a cor de que se veste.
Desde o levantar até à fracção de segundo anterior ao primeiro contacto com a balbúrdia mundana, o viver é um fluir constante do pensamento, um brotar de ideias, um confortável e simples existir em regiões insusceptíveis de definição. O funcionamento da mente e do corpo é natural, espontâneo, não forçado, sem tensões. Sob estas condições em que, possante e firme, coexiste uma inexplicável liberdade, sou não sendo eu, sou sem nome e sem forma, sou o que nesse momento é. E assim vivo até ao instante em que a porta se abre para me deixar sair.
Hemera, deusa grega do Dia
Às mãos de Hemera começa o dia e instala-se então a desordem, a confusão. Filas de trânsito, manobras insuspeitadas, travagens bruscas, correrias e ruído, ruído, ruído. E eis a vida em suspenso. A partir de agora, e até que o sol se ponha indiciando o almejado regresso, o comportamento mecanizado, um estranho colete-de-forças que estrangula o fluxo da vida, preencherá as horas. Horas em que permanecer sã é titânico desafio, em que os estereótipos entram sem convite e fervem na corrente sanguínea tentando transfigurar incautos e crédulos. Horas em que as acções, as atitudes, as palavras, as opiniões, são simples artigos em série que abastecem o ávido consumidor do paradigma vigente. Horas de tal efemeridade e falsidade que até os sensatos pensamentos tidos na alvorada, que então, no afã de alcançar o divino, se moviam por entre o perfeito e o sublime, parecem agora, se lembrados, tão assustadoramente irracionais que mais se assemelham a bizarras esquizofrenias ilustradas em forma de imagens mentais.

Nix, deusa grega da Noite
Hespéra, deusa
grega do Crepúsculo
O sol ao desaparecer vai deixando o horizonte pintado de cores irreais cuidadosamente escolhidas por Hespéra. À medida que se encurta a distância entre o inferno mecanizado da agitação da vida fingida e o paraíso ansiado da solidão e do silêncio, o fluxo da vida, agora liberto, retoma gradualmente rumo e ritmo. Vão-se entregando a luz e a cor do crepúsculo, suave e lentamente, à escuridão do manto que Nix estende.

E antes de voltar ao reparador regaço de Hipnos e de aceitar as oferendas de Morfeu, aí estou eu outra vez sendo, não eu, mas o que é nesse momento.



Hypnos and Thanatos, Sleep and His Half-Brother Death by John William Waterhouse


Nota: Eos, Hemera, Hespéra e Nix, pinturas de William-Adolphe Bouguereau

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Sodoma e Gomorra ou a vida aviltada

Jan Brueghel the Elder, Sodoma e Gomorra

Quando a vida é tratada como mero produto financeiro, algo está visceralmente mal! Quando a vida serve de objecto de apostas em que o protagonista é o vil metal, algo está inegavelmente putrefacto na mente e no coração da humanidade!
Soam cada vez mais fortes as badaladas da decadência! E cada vez mais destemidos, cruéis e ignóbeis se mostram os monstros da perversão! Qual Sodoma e Gomorra, a passos largos caminhamos para a esterilidade de sentimentos, para a aridez de princípios, para a secura do coração. Cada vez mais nos aproximamos de uma era glaciar da alma!
E não há deus que valha aos homens, que o deus que há foi o que eles criaram à sua vil imagem!


P.S.: P.f. siga os links do texto!

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Discernimento

Antonio Balestra, A Virtude Defendendo a Educação da Ignorância e do Vício


Ignorância não é não saber ler nem escrever, é não saber discernir. Inteligência não é informação, é saber discernir apesar da informação. E discernimento não é nem cultura nem informação, é percepção sem barreiras, sem condicionamentos, é compreensão instantânea e livre e ilimitada, é a leitura da vida feita com os olhos da alma.

A informação e a (in)cultura actualmente consumidas cegam o indivíduo. Este, já de si algo avesso a ver as coisas com olhos de ver e a exercitar a arte de pensar pelos próprios miolos, deixa-se deslumbrar e atordoar com todo o género de brinquedos, divertimentos e distracções. E de cérebro entontecido e limitado, de mente turvada pela confusão e cheia de raciocínios de segunda mão, de intelecto imbecilizado e cristalizado pela cultivação do disparate, lá ruma ele para onde ruma a turba. E vai cego mas ufano, mecanizado mas contente, morto mas achando-se vivo.
Não sei que espécie de torpor lhe adormece o entendimento. Nem que espécie de embrutecimento lhe rouba a ânsia da auto-exploração e da auto-descoberta. E muito menos sei de onde e porquê lhe vem aquele impulso idiota de achar que conhece os outros, de se permitir avaliá-los, criticá-los, julgá-los. Pois se nem a si próprio se conhece sequer!
Hoje em dia não se tem a humildade de se ter uma opinião. A opinião, que outrora era apenas um modo de ver pessoal, individual, e que servia para que, por meio da modéstia, da partilha e do verdadeiro saber ver e ouvir, da discussão sensata nascesse a luz, hoje, pela ignorância e pela soberba, sabe-se lá por que artes do demo, nasce já uma certeza com um séquito de néscios acometidos de indolência mental. E ei-los que acerrimamente defendem a idiotice que outro pensou. E em todo este processo, nem uma vez, alguém, questiona alguma coisa!
Enquanto a ignorância e a estupidez, a arrogância e a empáfia, a superficialidade e a idiotia proliferam e alastram, o discernimento, a verdadeira inteligência, vai-se tornando, pela sua escassez, um tesouro a preservar!

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Aventar – Blogs do Ano 2011


O FaceDaLetra participou no Concurso e agradece todas as visitas recebidas!


Ao blogue Divina Comédia, os meus parabéns! A vitória foi mais que merecida! Na categoria de Auto-conhecimento / Reflexão Filosófica o Divina Comédia foi ímpar!
E se para alguma coisa vale a minha opinião, o blogue Ponteiros Parados, tão injustamente detido na primeira eliminatória, seria, a meu ver, um segundo lugar de eleição!
Ao Aventar, os meus parabéns pelo modo íntegro como organizou e dirigiu o evento desde o início e, sobretudo, pela estóica e paciente atitude demonstrada perante a idiotice, a estupidez e a mesquinhez dos mil e um comentários dos mil e um pobres de espírito!

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

O culto de "o mais"

(Flandrin, Hippolyt - Jeune Homme Nu Assis - Louvre)


Apanágio dos dias de hoje é o culto de “o mais”. O mais caro, o mais bonito, o mais rico, o mais moderno, o mais esperto. As vinte e quatro horas de cada dia da vida do devoto deste culto são dedicadas à adoração do efémero. Não há tempo para nada mais se se quiser ser o primeiro, o mais importante, o mais destacado, o mais famoso, o mais badalado. Preenchem-se então os dias com todo o tipo de idiotices, que vão desde o futebol à política e aos implantes mamários. Procura-se afincadamente “o mais” em tudo o que possa colmatar o ego de satisfação. Porque é esse o deus deste culto. Há que mantê-lo contente, saciado. Há que cobri-lo de oferendas, sempre diversas, sempre novas na sua transitória qualidade, não vá ele tomar-se da ira e desaparecer, deixando os devotos sem protecção. E isso sim, seria desastroso. 

Sem a parafernália que o culto exige, sem a inspiração para a criação de ideias e objectos inúteis que a egocêntrica divindade insufla nas mentes imbecilizadas dos devotos, sem as vestes que os obriga a usar, e sem o cenário irreal montado pela cegueira dos seguidores e consolidado pela divindade no seu ávido desejo de veneração, o devoto ficaria completamente nu. Ficaria exposto. Sentir-se-ia desamparado, completamente indefeso. Abandonado pelo deus do externo, despojado de todo e qualquer sustentáculo concreto, o devoto ver-se-ia reduzido ao último reduto material: o seu próprio corpo. 

Assim desapossado, ver-se-ia tão comum e tão similar a todos os outros desolados seguidores. Sem a sua pretensa singularidade, sem a sua inconsistente originalidade, haveria de chegar o medo. E o medo colar-se-lhe-ia à pele. 

Num mundo de completas ausências objectivas, por única companhia esse medo devastador da insignificância em que se tornara, frustrado pela colossal impotência que o assolava, o devoto voltar-se-ia para a única coisa que lhe restava: para si próprio. E dentro de si encontraria um surpreendente e desconhecido mundo de consciência que o traria de volta à humanidade.  

Mas isto é só e apenas um puro devaneio de quem está a escrever. Tal como são as coisas nos dias de hoje, o devoto do culto de “o mais” irá continuar, quiçá ad aeternum, nesta aberrante atrofia.


terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Os Quietos e os Irrequietos

A continuada constatação de que, efectivamente, os homens são ou quietos ou irrequietos, levou-me a sentir vontade de repetir uma publicação de 2010:




Aos homens divido-os em dois tipos: os quietos e os irrequietos.

Os primeiros, os quietos, que contraditoriamente são os que mais ruído fazem, são também os mais numerosos. São aqueles de quem se fala, aqueles que falam dos outros, aqueles que não falam porque têm que se lhes diga, aqueles que falam sempre e aqueles que por mais que falem ninguém os ouve.


Vivem prisioneiros do tempo e contam-no com a mesma ganância que contam o dinheiro. Que também é seu carcereiro. Perdem-se em emaranhados indestrinçáveis de desejos, caprichos e fantasias. Costumo observá-los de longe sem que me notem, e não consigo ver, nas suas actividades tontas e fúteis, um laivozito que seja de sensatez e seriedade. Prefiro as formigas. Além do senso comum que lhes é característico são mais ordeiras e nada barulhentas nem espalhafatosas.


Os homens quietos, os ruidosos, andam sempre curvados sob o peso do passado. Gastam a maior parte da sua energia a relembrar e a festejar, só que com muito mais frivolidade do que antes, os pretensos actos e feitos dos seus ancestrais. Misturam e valorizam por igual tradições, superstições e imaginações, distorcem factos e acontecimentos, e nem parecem importar-se com isso. Constroem, sem alicerces, belos castelos de areia e passam a vida a inventar meios e maneiras de serem o que não são.


Orgulham-se de tornar complexo aquilo que é simples. Por outro lado queixam-se da vida que, dizem eles, é feita de problemas e de dificuldades. Padronizaram os sentimentos e vendem-nos como se de mercadoria se tratasse. Com os pensamentos fizeram o mesmo. E com a inconsciência do ignorante e a sandice do imbecil, dão-se ares de importância e pretendem ostentar uma inteligência que nunca tiveram. Prefiro os macacos. Se alguma coisa padronizaram foi a cata de piolhos, mas pelo menos não se incomodam em parecer mais inteligentes do que o que são.


Os segundos, os irrequietos, são totalmente diferentes e por estranho que pareça são muito silenciosos. São poucos, muito poucos. Têm espíritos revoltos, naturalmente insatisfeitos, são inquisitivos e estão imbuídos de uma inquietação serena e pacífica que penetra afectuosa mas irremediavelmente o mais espesso dos véus da ignorância.


Interiormente turbulentos, movem-se nas areias movediças do pensamento. Exploram o interior humano com a mesma impassibilidade e domínio de um pescador em alto-mar num qualquer dia de tempestade.


De alma inflamada, em rodopios e turbilhões constantes, percorrendo caminhos desconhecidos que levam às profundezas dos infernos e às celestiais alturas do paraíso, os irrequietos permanecem serenos. Só assim podem prosseguir a busca em sendas pejadas de armadilhas e encruzilhadas.


Inebriados por uma liberdade irrefutavelmente plena que só o homem que duvida pode saborear, transportam-se para além das nuvens que ensombram o quotidiano e de mão dada com o que ninguém quer ver, tecem no silêncio e no infinito as próprias redes que sustentam a vida.


Os irrequietos, ao contrário dos quietos, precisam de muito pouco, não anseiam nada e jamais querem ser aquilo que não são.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Que me importa?




Sou uma pessoa ridícula. Agora chamam-me louco. Isso seria uma promoção se não fosse que permaneço tão ridículo a seus olhos como antes. Mas agora não guardo rancor por isso, todos eles me são queridos agora, mesmo quando se riem de mim – e, de facto, é precisamente nessa altura que me são particularmente queridos. Podia participar no seu riso – não exactamente rindo-me de mim, mas por afeição a eles, se não me sentisse tão triste quando olho para eles.
Fyodor Dostoevsky em O Sonho de Um Homem Ridículo





Importa-me o que pensam de mim? Importa-me que me achem isto, aquilo ou aqueloutro?

Afinal, sou tudo isso que eles pensam de mim. Sou-o, de facto, para eles. É assim que me vêem. E assim me julgam e assim se convencem que sou o que pensam que sou. Mas a mim, que me importa isso? Não me conheço pelas opiniões deles, conheço-me, sim, pelas que eu própria tenho de mim. Encontro muitos mais defeitos em mim, quando para mim olho, do que eles alguma vez serão capazes de me apontar. E até já se deu o caso de uma alminha me ter tecido um elogio que, sendo completamente imerecido, me abriu portas a uma amálgama de imperfeições que até aí não tinha notado na minha pessoa.
“Não vives neste mundo”, “construíste um mundo irreal”, “ninguém pensa assim” dizem-me tantas vezes. “Isso é absurdo, é rídiculo” insistem. Mas eu, louca e ridícula aos olhos deles, prefiro o meu absurdo à lógica cristalizada dos que assim me censuram. Envolve-me uma densa tristeza, não porque pensem isso de mim mas porque se encerram em definições e juízos, porque se confinam a pensamentos mortos, porque se limitam com uma cerca que nunca querem transpôr. Jamais sentirão o desafio de ser.
Há vida no meu absurdo e alegria na minha ridiculez. Há criação na minha loucura. Há nascimentos e mortes e trevas e luz. Há pensamentos vivos, constatações abismais e campos abertos a fugir de vista para explorar. Mudo de ideias quando quero e não preciso de ser coerente. Mudo com a vida, que ela é sempre diferente. Olho para as coisas sem filtros no olhar, como se fossem coisas novas, nunca vistas, acabadas de criar. E mato sentimentos quando quero porque os apanhei em flagrantes falsidades. Ou crio sentimentos novos e novas formas de olhar porque os apanho subitamente tão repletos de verdade.
O que para mim é, para eles não é. O que me mira e me desafia esconde-se do olhar deles. O que ouço no silêncio não o ouvem eles nem que ressoasse como trovão.
Que me importa o que pensam de mim? Todos somos únicos e eu, absurda, louca e ridícula, quero mesmo é ser como sou.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Contra o relógio

O tempo não é senão o ribeiro em que vou pescar.
Henry David Thoreau

Que facilmente se distrai o ser humano! Basta a perspectiva de um bailarico e de um foguetório, e ei-lo que se deixa embalar e seduzir como criança no berço a sugar na chupeta!

Natais, passagens de ano, páscoas, carnavais e todo o tipo de celebrações não são nada mais, nada menos, que panaceias inconscientemente desejadas para os males que afligem a alma humana. Por que razão haveríamos de festejar uma data, um ponto no tempo, se ele é conceito que nem sequer somos capazes de entender? E, ainda por cima, o conceito diverge: o calendário gregoriano é diferente do judeu, do islâmico, do maia. Razões superficiais, de base religiosa ou pagã, desejos carentes de realização, portanto, são o que levam o homem a festejos.
Se procurarmos algum sentido na celebração, que melhor exemplo poderá haver que o festejo solitário ou em privada companhia, de eventos que, íntimos, infímos, discretos e aparentemente de pouca monta, modificam a nossa vida e abrem alas à compreensão?
Enquanto escrevo, em pano de fundo a orquestra filarmónica de Viena, interpretando Strauss, embala-me no sonho de uma vida sem tempo. Uma vida que se vive momento a momento sem a mesquinha necessidade de a medir em segundos, minutos, horas, meses, anos, séculos. Abrange a vida toda a eternidade, pese embora disso não se tenha plena consciência.
Compartimentá-la em lapsos de tempo é tudo o que não quero. Não quero que me desejem boas festas. Não quero que me desejem feliz aniversário, nem bom natal, nem boa passagem de ano, como se a vida parasse nesses momentos para absurdos rituais e os comportamentos estereotipados sofressem estranhas e temporárias modificações. Quero, sim, que cada um tenha consciência do tempo próprio da sua vida. Que aproveite o minuto para pensar, a hora para reflectir, o ano para ler a  experiência, a década para aprender, o século para tocar, ao de leve que seja, a sabedoria. Quero que se não façam interregnos ocos e fúteis no fluxo contínuo da vida. Que se viva absorvendo cada milésimo de segundo. Quero que o tempo seja apenas o decurso natural da vida, uma sua qualidade que a não coarcta, que a não impede, que a não cristaliza, que a não dana.
A vida não pára quando se decide usá-la para a imbecilidade, para a futilidade. Não pára quando se emprega na acção contra-natura. Nem melhora tampouco. Porém, quando se esquece o tempo e se segue naturalmente o curso da vida, há um caminho intemporal que é infinitamente eterno.
Sou incondicionalmente contra o relógio!

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Um só

Toda a gente está alegre
como se desfrutando da maior festa,
ou dirigindo-se aos terraços na Primavera.
Só eu ando à deriva sem direcção,
como um bebé que ainda não sorriu.
Só eu ando triste como se não tivesse lar.
Toda a gente tem mais do que precisa,
só eu pareço ter necessidade.
Tenho a mente de um tolo, que confuso estou!
As outras pessoas são inteligentes e espertas,
só eu sou obscuro.
As outras pessoas são vivas e seguras de si,
só eu sou lento e confuso.
Sou inquieto como as ondas do mar,
como o vento agitado.
Toda a gente tem um objectivo,
só eu sou teimoso e incómodo.
Sou diferente das outras pessoas,
Mesmo assim, sou alimentado pelo Grande.

Lao Tzu
em Tao Te Ching - Verso 20


Quando se toma verdadeira consciência da vida, e isso pode acontecer num qualquer período temporão ou tardio, o caminho que então se depara é um só. E não é certamente nenhum dos traçados pela ordem estabelecida. Tampouco são os que advêm da tradição, mecanicamente trilhados desde tempos imemoriais. Não é nenhum dos que a modernidade inventa e muito menos algum nascido das sombras de esoterismos esquizofrénicos.
É um golpe fatal, essa tomada de consciência. Fere de alto a baixo, por dentro e por fora. Mata sem dó nem piedade crenças, convicções, ideais. Reduz a pó os periclitantes castelos de areia até aí tão bem urdidos. Expõe uma nova nudez que jamais envergonha ou precisa de ser coberta. O sentido das coisas perde o sentido e nasce um sentido novo que nada tem a ver com as coisas.
Os desassossegos, as inquietações, as provações já não são dor nem mágoa nem tristeza, são dádivas. A ofensa já não ofende, o juízo alheio já não perturba, a defesa da opinião própria já não interessa. Já não se desperdiça a palavra e todo o acto é ponderado.
E porque assim é, está-se só, é-se só, e o caminho a trilhar é um só: o caminho da solidão!

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Reservo-me o direito de...

Vive-se num néscio faz-de-conta. É notório, é inegável. Imagina-se uma vida assim ou assado, que nem sequer é fruto de uma imaginação livre e fecunda, mas de uma perspectiva condicionada e limitada por mão alheia, e depois é só sonhar dentro daquele círculo restrito e nos moldes que uma parvoeira colectiva vai ditando.
Daí até à deturpação do natural, até à perversão do mais inócuo e benigno senso comum, é um pequeno passo. De repente, no entusiasmo cego de se vir a ser “alguém” na vida, nada mais importa senão a casmurrice básica e grosseira de atingir um fim.
As armas são a cópia, a imitação, o seguir um caminho já trilhado com tolas pretensões de originalidade, e, o que é bem mais grave, o atropelo implacável e premeditado dos outros na corrida a uma ascensão que não é mais do que uma queda abismal no mais profundo dos infernos. O inferno da ilusão, onde se atribui importância ao não importante, onde se dá valor à inutilidade absoluta, onde se idolatra e cristaliza o inexistente.
O exemplo passou a ser um pau de dois bicos, e a tendência, crescente ao longo dos tempos, tem sido o uso e abuso do bico da esperteza astuta. O outro bico, o da sensatez, apanágio de uma muito pequena minoria, foi completamente ignorado, esquecido, ou não fosse esse o que mantém sob controlo o egocêntrico ego em favor do bem comum, e que, portanto, coarcta os fins individualistas em vista. O fortalecimento do ego, a sua veneração como se fosse o único veículo de sobrevivência, embrutece o juízo, impulsiona o culto da imagem e cobre com espessos mantos de ignorância a outra parte do ser que não é ego. E é assim que esta imbecilidade adquirida (não acredito que seja inata, apenas incutida por contágio) atinge e violenta, de uma forma estrepitosamente cruel, todos os sectores da vida humana.
Assim sendo, não há nada de novo para dizer, nem para fazer. Só poderá acontecer a exacerbação da decadência instalada. As conversas são por demais repetidas porque os temas são sempre os mesmos. As dissertações, os discursos, os sermões, todos radicam no mesmo velho padrão de estupidez inventado algures no tempo. A comunicação entre os seres não é mais que um papaguear obsoleto, e da discussão já não nasce a luz porque a oposição de ideias é mero fingimento que oculta interesses afinal comuns. As acções são velhas, insistente e obstinadamente vestidas à moda, e por isso, ridículas e ineficazes. Não há criação, originalidade. Perdeu-se o salutar hábito de ir à fonte buscar água fresca para saciar a sede. Banha-se pois a multidão no mesmo charco estagnado.
É por tudo isso que me reservo o direito de tapar os ouvidos, de fechar os olhos e de ficar inactiva, sempre que me apetecer.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Reflexo

Pensa-se que se é o que de si próprio se vê. Pensa-se que se é o nome que se tem. Ou a profissão que se tem. Ou a família que se tem. Ou a riqueza que se tem. Ou a pobreza. Pensa-se que se é o rosto, o corpo que se tem. Pensa-se que se é a imagem que de si próprio se vê reflectida no espelho.  

Pensa-se que se se mudar o que de si próprio se vê, se vai ser diferente. 

E pensa-se que o que se vê do outro é o que o outro é. 

Mas não é de todo assim. O reflexo da lua na água não é a lua. É a imagem dela. E uma imagem não tem qualidades, não tem essência, não tem profundidade. 

Portanto insisto nisto: que quando me olho no espelho, aquela que vejo reflectida não sou eu. Não sou, não senhor. Como poderia ser eu se aquela cara, aquela compleição, jamais me vêm à mente quando sinto, quando penso, quando olho, quando reflicto? Eu sou sem rosto, sem corpo. E a imagem que vejo reflectida no espelho é apenas a imagem que os outros têm de mim.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Borobudur

Gosto de pensar que a vida, no seu mais lato sentido, no seu todo, é como o templo de Borobudur!


Tido como um templo budista, Borobudur é, segundo a interpretação religiosa, um local de peregrinação, uma espécie de centro de formação para aqueles que querem atingir a iluminação.  

Ali, o peregrino inicia a sua longa e dura viagem no nível inferior. Percorrendo toda a sua extensão, vai tomando conhecimento das suas diversas características através dos factos relatados nos baixos-relevos com que se vai deparando. Não consegue ver os níveis superiores, nem sequer aquele que está imediatamente acima do seu. Nada há porém que o impeça, mediante o conhecimento que vai obtendo na caminhada, de os pressentir e de tentar até desenhá-los no seu pensamento, na sua imaginação. 

Chegado ao fim desse nível, o peregrino ascende então ao nível seguinte. Aí constata que não só continua a não poder ver os níveis seguintes, como também lhe é impossível ver o nível que acabou de deixar para trás. A viagem, aparentemente, é igual à anterior, situando-se as diferenças apenas na ampliação e refinamento do conhecimento e da consciência.  

Nível a nível, o peregrino vai fazendo o seu percurso ascendente. E sempre sem conseguir ver nem o superior nem o inferior. A sua consciência, constituída pela experiência obtida nos níveis inferiores, ao ser ampliada no nível seguinte é também depurada dos conteúdos supérfluos adquiridos no nível anterior.  

Uma vez chegado ao cimo, onde imponentes estupas contemplam, a partir de majestosa altitude, a natureza circundante, o peregrino terá atingido a iluminação após ter atravessado as três esferas da cosmologia budista representadas pelos diversos níveis: a do Desejo, a da Forma e a da Ausência de Forma. 

Na vida, e não me refiro aqui à sua acepção cronológica mas sim à sua qualidade intemporal e infinita, gosto de pensar que o homem passa por estádios idênticos. Num estádio inicial, digamos, colhe alguma experiência e adquire algum conhecimento, calcorreando caminhos árduos, procurando refúgio das agruras nos desejos e prazeres mundanos, totalmente afundado na massa grosseira e tosca da superficialidade e da materialidade. Assim atolado, não vê, tal como o peregrino em Borobudur, nenhum estádio superior. Mas pode, no seu íntimo, aperceber-se dele, vislumbrá-lo. 

É esse vislumbre que abre caminho para o estádio seguinte. Aí o homem sente a necessidade imperiosa de se libertar das paixões básicas, arrebatadas, que o cegam e que, contra a sua própria vontade, lhe ditam um rumo que já não quer tomar. Embora um pouco ainda como barco à deriva, e apoiando-se quase exclusivamente em estruturas materiais, ele luta já em resposta a um impulso interior que sente mas todavia não compreende. Pelo menos não totalmente. 

Esse impulso interior é a chave de acesso aos estádios seguintes. Apercebendo-se da enorme riqueza e profundidade do seu próprio ser, e começando a ter consciência de “o Todo em Tudo Sempre”, o homem liberta-se das amarras que o prendem à superficialidade, ao individualismo, ao mundo fenomenal.   

Consubstanciando-se, como éter no éter, do estupa no topo do topo, homem e divindade, feitos um, contemplam o eterno incomensurável.  

Gosto de pensar que assim é…

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Palha ou Sopa?

Se analisarmos, com profundidade e isenção, a aparente e estrepitosa barafunda económico-financeira a que nos habituaram a chamar “crise”, iremos por certo dar-nos conta das insidiosas maquinações que, nos bastidores, a fazem carburar, obviamente ao serviço e no soberano interesse dos seus criadores.  

Se não tomarmos cuidado, se não abrirmos bem os olhos – os da face e os da mente –, se não agirmos de moto próprio fazendo a destrinça sensata entre o que é essencial e o que é forjado, contrariamente às certezas de algumas mentes mentecaptas, a chamada crise não terminará, com toda a certeza, nem dentro de um ano nem nas próximas décadas. O que se manterá sim, incólume e com poder acrescido, será a monstruosa e ignóbil minoria regente e, por conseguinte, manter-se-ão também as crescentes dificuldades da maior parte da população mundial. 

Dizem que não há dinheiro, mas, no entanto, injectam-nos diariamente quantidades industriais de publicidade que, mais ou menos sub-repticiamente, incita ao consumismo. Não vemos, porém, nesse subtil incitamento, quaisquer referências a bens essenciais, pois não? E porquê? Porque é o supérfluo que alimenta a ganância dessa minoria asquerosa que rege o planeta. É essa minoria que dita as nossas pseudonecessidades! Todo o burro come palha, a questão é saber-lha dar! E é precisamente isto o que a maligna minoria no poder tem feito, faz e continuará a fazer. A menos que cada um faça a sua parte, claro está, e se recuse a comê-la. 

Enquanto muitas pessoas procuram já ajuda para as necessidades básicas da vida – comida, roupa e tecto – aquela repugnante minoria maquiavelicamente incute nas mentes fracas e sugestionáveis das massas um patamar de posses sem as quais, afirma, a vida não terá qualquer significado e será triste e miserável. Faz-lhes então acreditar que um determinado leque de bens é essencial à sobrevivência e à felicidade. E as massas acreditam.  

E tal como a rã, na água que gradualmente se vai aquecendo, não foge a uma morte certa devido à lenta adaptação a que é submetida, também as massas com algum poder aquisitivo não sentem a influência progressiva, e portanto a necessidade de saltar para fora desse lucrativo e macabro esquema, e também elas morrem – com os neurónios cozidos – para um discernimento sensato das intenções daquela maléfica minoria. Num ímpeto natural de imitação, de comparação e de competição, o indivíduo assim padronizado, consome sofregamente, e sem prévia reflexão, o que lhe é posto à frente dos olhos, com o objectivo de ser feliz, e de, sobretudo, ser igual ou melhor do que o seu parceiro do lado. Convém, evidentemente, à abominável minoria que se mantenha um elevado grau de ignorância. Corrobora essa conveniência a crescente involução dos processos educativos. 

E a um nível bem mais lamentável, o indivíduo pobre, aquele que realmente tem de lutar pela sobrevivência – e que constitui a grande maioria da população do planeta – tem a mente já per si programada, direccionada, única e exclusivamente, para a preservação da própria vida. Uma mente com preocupações a este nível não tem espaço para outras cogitações. Uma mente assim não questiona, não raciocina, não discerne e portanto, não riposta, não se opõe, não luta (eis a razão primordial pela qual não convém acabar com a fome no mundo!). E assim não perturba as bárbaras manobras de formatação levadas a cabo pela odiosa minoria. 

Eu não como palha. Gosto de me sentir livre. Por isso bastam-me uma sopa e uma mente desperta.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Silêncio e Solidão

Chegados os dias cinzentos e o desconforto de uma ventania ou chuvada assoma-se à alma um sentimento de melancolia e nasce uma tendência natural para o recolhimento. Não que não aconteça durante o resto do ano. Mas agora, com os frios e as neblinas e a vasta paleta da natureza quase reduzida a tons pardos, o convite ao recolhimento é mais apelativo e a inclinação bem mais profunda. 

Em pousio é como quero ficar. Quase em estado letárgico para quem me vê por fora e serenamente activa para quem me vê por dentro. Na solidão e no silêncio do meu ser quero descansar. E explorar, descobrir o novo.  

É que tudo muda. Tudo menos o lavrar do homem. Lavrou outrora assim, e qual jumento embezerrado, jamais experimentou lavrar assado. Lavrou sempre a mesma terra, cansando-a. Lavrou sempre da mesma maneira, ainda que mudasse o aspecto das alfaias. Colheu sempre o mesmo, porque semeou sempre o mesmo. Mudaram os tempos, as épocas. Passaram os anos, os séculos. E o homem a lavrar e a colher sempre da mesma maneira. Jamais permaneceu em pousio, nem a terra lavrada pelo homem, nem o homem lavrado pela terra. 

Porque não fica em pousio é que o homem é tonta e frivolamente activo por fora. Cruel e violentamente activo por fora. E por dentro, desoladamente hibernante, inconscientemente ignorante. Tristemente cego e surdo para uma eventual primavera que o possa despertar. 

E enquanto o homem persiste no contínuo e desenfreado aperfeiçoar das alfaias, no ridículo manter na moda das albardas e no obtuso impedir do descanso da terra, eu busco, no inverno, no terreno fértil da solidão e do silêncio, sementes novas que hei-de deitar à terra. Sementes que, na primavera,  germinarão na mudança que eu própria gerei, serenamente activa por dentro, quase letárgica por fora.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Presunção e água benta...

A autoridade, o poder, a prepotência, a vaidade, e outros conceitos afins, só têm valor na razão directa da importância que se lhes dá. Não se lhes dê nenhuma, e em breve serão conceitos perdidos na bruma dos tempos! 

O grande problema reside no facto de a maior parte das pessoas sentir, consciente ou inconscientemente, a necessidade de se vergar perante outras que crê melhores, superiores a si. Não existe ilusão maior! Experimentem não curvar-se perante os ares de importância de que alguns se tomam, e verão como se lhes desenfuna o ego, como desincham tão estabalhoada e deselegantemente qual balão furado! 

Se existem poderosos, fomos nós que lhes outorgámos o poder. Se existem vaidosos, fomos nós que lhes alimentámos a vaidade. Se existem a autoridade e o comando e a prepotência, fomos nós que os acatámos.

Só a atitude individual, sensata e ponderada, poderá gerar a mudança global. Em vez de fazer vénias, deixando perigosamente desprotegida uma determinada parte do corpo, ergamos o queixo e olhemos em frente, sem a mais mínima tentação sequer de desviar o olhar! Assim fazendo, surpreendidos veremos como ruem por terra os ímpetos de superioridade, os arranques de prepotência, os ataques de ditadura, as crises de autoridade e os arrotos de poder!

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Nascimento e Morte – Uma Mesma Natureza?

“Sendo certo que tudo está no Todo,
não é menos certo que o Todo está em todas as coisas.”

O Kybalion


A morte sempre suscitou curiosidade e sempre se tem tentado indagar sobre ela. Têm-se forjado ao longo dos tempos todos os géneros de teorias. Meras especulações contudo. Dela ninguém jamais regressou para dar conta da sua existência e natureza. 

Consigo entender, até certo ponto, que ela cause curiosidade, temor. Depois de vivida uma vida, não importa durante quanto tempo, surgirá sempre uma apoquentação, mais ou menos intensa, advinda do (quase) natural sentido de posse do ser humano. A perspectiva de se deixar para trás aqueles e aquilo que, toda a vida, se trataram como uma posse – não importa se material, se afectiva –, que possivelmente se chegaram até a confundir com o próprio eu, pinta de crueldade e medo qualquer imagem que se possa construir da morte e do estado pós-morte. Tenho para mim que são estes – o sentido de posse e por conseguinte o sentido de perda – os factores cruciais e motrizes para a busca ad eternum de uma explicação, conveniente diga-se de passagem, para a morte. 

Mas o verdadeiro busílis da questão colocada em título reside no seguinte: porque é que o nascimento não suscita a mesma curiosidade? Será que também aqui são determinantes os factores de sentido de posse e de perda? Porque afinal, quando se nasce, nasce-se sem nada.  

Questionei sobre o assunto várias pessoas. As respostas obtidas parecem ir no sentido de que o nascimento não importa – é indiferente de onde se provém, a partir do que é que se nasce – mas importa, e muito, a morte. Surpreendentemente, ou não, não obtive respostas firmes quanto à razão de assim se pensar. Leva-me tal a deduzir que estas questões não foram nunca antes ponderadas, e a concluir que, para os meus entrevistados, o rótulo de avis rara me assentaria que nem luva.  

De que me rotulariam então, se eu lhes dissesse que nascimento e morte são da mesma natureza? Que a diferença que aparentemente os distingue só existe se para eles se olhar através do véu do apego? Se eu lhes dissesse que o que são ao nascer é o que são ao morrer? Que a única diferença, intangível e imensurável, reside no aumento progressivo da consciência durante o tempo que permeia o nascer e o morrer? E que essa mesma consciência poderá ser o tecido primordial do universo? 

Se nasci para esta existência, morri para algo anterior. Se morri para esta existência, nasci para algo posterior. Trata-se apenas de um processo, um continuum espaço-tempo.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Nevoeiro

O dia foi como quase todos os outros. Enfrentar a estupidez, o fingimento. Responder com a deixa mais adequada ao papel que cada um gosta de representar. Engolir sapos também faz parte. E fazer de conta que não se entende a intenção também. E por tudo isto, o esforço da minha própria representação.

Como gostaria de poder gritar que não faço parte de tudo isto. Que a minha vida não passa por aqui. Que ainda que me vejam como mais uma pessoa apenas, eu não sou essa imagem que de mim têm.
Fez sol. Choveu. Voltou a fazer sol e a chover. Abateu-se a noite e com ela as interrogações, as dúvidas. Chegou, como chega todos os dias, todas as noites, a inquietação. Um desassossego sem fim. Um sem-sentido que há que disfarçar com a dolorosa  atitude do politicamente correcto.
Com o sol que desponta parece haver uma esperança. Com a chuva que cai, ora forte, ora dengosa, um estremecimento da alma que não encontra paz. Com o azul do céu, uma possibilidade. Com o cinzento de que por vezes se veste, uma angústia que parece duradoura.
Já noite dentro, adensou-se um súbito nevoeiro. Desaparecerá com a aurora.
E o nevoeiro que preenche o meu ser, alguma vez se dissipará? 

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Desolação

Porque será que a maioria das pessoas se ri das coisas sérias e leva a sério as brincadeiras?

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Riscos Superficiais

Acredito que nasci livre. Depois prenderam-me. E fizeram-me muitos riscos. Prenderam-me a convenções, a regras estúpidas, a tradições e a crenças inverosímeis. Prenderam-me a um país e fizeram-me muitos riscos. Riscos de patriotismo, de nacionalidade, de defesa acérrima de uma realidade que só o era para uma minoria. Obrigaram-me a distinguir entre nós e os outros. Ainda que me obrigassem a estudar o mapa-múndi, queriam forçar-me a esquecer o resto do mundo.

Riscaram-me a alma e o coração com riscos algo profundos quando me forçaram a ajoelhar perante um deus. E eu não sabia o que era. E prenderam-me as asas quando me disseram que não podia passar os limites. Que esse deus castigava. Que arderia nas chamas do inferno. E eu também não sabia o que era o inferno.
Riscaram-me o cérebro garantindo que a história do homem era a que me contavam. Que os feitos e as glórias passadas eram uma herança que eu tinha de carregar. Tentaram aprofundar esses riscos quando me quiseram educar. Quiseram riscar-me com heróis de guerras estúpidas e de conquistas cruéis. Tentaram riscar-me com valores inconsistentes, com teorias insustentáveis, com sistemas e leis facciosos. Quiseram riscar-me de tal modo que tivesse por verdadeira a mentira.
A maior parte dos riscos resvalaram nas verdades que a minha alma firmemente albergava. Outros atingiram-me tenuemente já que não penetravam na espessa couraça do meu sentir. Outros ainda, descartei-os eu esquivando-me deles porque achei que não me assentariam. Ficaram apenas uns poucos, quiçá porque abriram sulcos mais profundos. Poli-os cuidadosamente. O tempo ajudou a disfarçá-los e hoje mal se notam.
É uma questão de estarmos atentos. Podemos passar pela vida com apenas alguns riscos superficiais. E além disso podemos sempre poli-los, minimizá-los. Podemos até encontrar-lhes uma utilidade. Ou podemos simplesmente aceitar a sua existência de uma forma tal que não coarctem no mais mínimo a nossa liberdade.
É assim que temos de passar pela vida. Incólumes e intocados na nossa essência, ainda que algo riscados superficialmente...

terça-feira, 25 de outubro de 2011

O Grande Incómodo

O autoconhecimento é o começo da sabedoria,
em cuja tranquilidade e silêncio está o  incomensurável.

J. Krishnamurti 
em Comentários sobre o Viver – 1ª série


 
Todos os dias me deparo com pessoas que se sentem incomodadas.  

No café, logo pela manhã, já se ouvem resmungos e reclamações. No trânsito, o rádio do carro propaga mais incómodos. O custo de vida, o mau tempo e as queixas dos agricultores, as convulsões sociais por esse mundo fora. O futebol, os eventos culturais, as modas e as vidas alheias. À hora de almoço, enquanto se engolem à pressa alguns alimentos processados e de fraca nutrição, disparam-se comentários em todas as direcções, partilha-se o desagrado acerca disto e daquilo. Tudo incomoda. A atitude do colega, o discurso do político, a má-criação do vizinho, o trânsito, a fila, a coscuvilheira do prédio que espalha boatos, o treinador que não sabe o que faz, o mau desempenho do jogador. Tudo incomoda. O excesso de calor, a chuva que não pára, o fim-de-semana estragado, a praia que não se aproveitou. Tudo incomoda toda a gente. Ou quase toda. 

Mas nem de ano a ano me deparo com alguém que sinta o grande incómodo. 

O verdadeiro incómodo. Aquela inquietação penetrante e profunda que nos deixa à deriva num aparente sem sentido. Aquele mal-estar importuno e mordaz que seca a garganta, produz calafrios angustiantes e nos força a pensar na velha e recorrente questão do “Quem sou eu?”. Pergunta molesta. Perturbante. Insistente. Instigante. 

O grande incómodo é feito de interrogações, de questionamentos que tantas vezes ficam em suspenso por falta de respostas. Na sua natureza pululam silêncios e espaços incomensuráveis e desconhecidos. E vazios insuportáveis que, que a jeito de buraco negro, parecem sugar-nos toda a energia. Uma vez sentido, o grande incómodo jamais desaparecerá. Poderá diminuir de intensidade, ficar em estado cataléptico, permanecer em letárgica hibernação, mas jamais desaparecerá.  

Ao contrário daqueles que se incomodam por tudo e por nada no quotidiano transitório, aquele que sente o grande incómodo tende a entregar-se ao silêncio e à reflexão. Abandona o espalhafato e a atitude instável do incomodado leviano e inconsequente. Começa a distinguir, com um discernimento antes insuspeitado, o valor intrínseco das coisas. Aparta o trigo do joio e dá a cada um apenas e simplesmente a importância que lhe cabe. Não agiganta nem subestima, não exalta nem humilha. Permanece flexível porém firme e equilibrado, mesmo quando o grande incómodo o obriga a mergulhar em profundezas insondáveis. Não dá ouvidos ao ruído exterior mas escuta atentamente os murmúrios quase inaudíveis do seu interior.  

O grande incómodo por vezes dói. Dói deveras. Sem dor localizada, dói por toda a parte. Dói no coração, dói na alma, dói dentro e dói fora, dói na estrela, na galáxia, no universo inteiro. E outras vezes alegra. Alegra sem razão. Concede uma alegria imensa, quase extática, vinda do nada, cheia de tudo. Uma alegria que revela horizontes inusitados de infinitas possibilidades. 

Os pequenos incómodos, que indignam, que excitam, que estimulam acções e alvoroços, conduzem a becos sem saída, a círculos viciosos, a repetições entorpecentes.  

O grande incómodo, que incendeia sem queimar, que inquieta sem agitar, que estimula a inacção, a ponderação, o autoconhecimento, conduz ao desconhecido ilimitado, ao que é verdadeiramente novo, à suprema liberdade.  
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