(continuação)
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Garden of Eden - Vladimir Kush |
Depois do começo
Esta
nova acção total não combina contigo, com essa tua parte construída com
informação e opiniões. Procuras então alguma actividade fragmentária para
recomeçar o círculo do absurdo, do nada escuro que te chama com inquietude e
nostalgia a partir do teu próprio ser. Mas estás solenemente acordado e vês a
impossibilidade de regressar do todo para a parte. Encontras-te num inferno de paz. Ocultar um desgosto, sepultar uma
dor com o sexo, com a acção social, com a bebida, com a chamada “religião”, com
a chamada “política”, com qualquer das inúmeras palas que usamos, é semelhante
a enterrar uma semente que inevitavelmente explodirá em centenas de raízes
ocultas de novas dores, de novos sofrimentos. Enfrenta a dor, não a respeites,
que morra agora quando surge, porque com a primeira distracção ou consolo, não
fazes senão enriquecer a sua fertilidade. Destrói as sementes da dor abordando
o sofrimento agora mesmo, com as armas mais difíceis de forjar: a quietude e o silêncio.
Tens
que enfrentar a essência do teu problema. Aprender a arder com a tua própria
tranquilidade, a queimar-te a cada segundo na sagrada arte e difícil ciência do
teu próprio silêncio, e aprender a
inesgotável lição do teu silêncio.
A herança
O
homem velho não está satisfeito com o novo mundo. O homem novo sofre perante o
homem velho. Mas já não se trata de estar satisfeito nem de não sofrer. Também
já não se trata de estar satisfeito e/ou feliz. A questão transcende todos os
limites. Trata-se da morte ou da vida do homem. Trata-se de continuar o caminho do homem velho no sentido da
automatização, da rigidez e da proibição, da mineralização, da inconsciência, do
autoritarismo, das guerras periódicas, das doenças psicossomáticas e da morte. Ou de regenerar a espécie humana em nós
próprios para que siga o seu novo caminho no sentido da amizade, da
flexibilidade e da compreensão, da consciência, da cooperação voluntária, da
paz duradoura, da saúde total e da vida.
Trata-se
de que morram em ti todos os elementos do homem velho que herdaste em mente e
em corpo. Identificar esses elementos velhos que se manifestam a cada momento
no teu ser, em actos, pensamentos e sobretudo nas palavras, é a tarefa mais
urgente que convém empreender, tomando, além disso, consciência da
incongruência do homem velho que favorece e justifica todas as suas atitudes
(autoritarismo, guerra, etc.) em nome da “Nova Humanidade”.
Cada
palavra e feito teus será um testamento; trata de que não seja o mesmo que nos
legou o homem velho. Dá afecto, dá amor sem medo e sem causa, com palavras
(poucas), com feitos e com silêncio. Dá amor sobretudo se não o recebeste. Dá
carinho, amizade, amor, amabilidade, porque são o remédio principal e sobretudo
porque herdaste muito pouco disso. Lega o carinho e a amizade porque não há
outros caminhos nem métodos para chegar ao caminho luminoso do amor. Ele chega
quando nós próprios decidimos abrir os olhos e caminhar.
Destrói
a tua herança de proibições e deixa por herança a liberdade. Sê livre: dá liberdade. Crescerá assim a
tua capacidade de identificar e ouvir todos os homens novos de todas as épocas,
e de que todas as suas verdades se façam em ti uma só verdade. Hoje e aqui.
O ser humano novo
Pode
ser homem ou mulher. Pode ter relógio. Pode não tê-lo, mas a sua mente
libertou-se do tempo. Pode ter ou não ter, mas libertou-se de ambas as coisas. Pode
viver em qualquer país, mas não pertence sequer ao mundo. Não prepara
revoluções armadas em grupo. Realiza a sua única revolução em si mesmo, o que é
mais corajoso e muito menos cómodo; é a única revolução directa, é uma
revolução de cada momento, na rua, em casa, no trabalho e até no próprio leito
de morte se lamentavelmente não a começou antes.
Não
pede regras, nem exemplos, nem conselhos. Também não os dá. Não procura a
alegria, vive-a sem esperá-la. Não procura a serenidade, vive-a sem esperá-la. Não
procura emoções, encontra a maravilha da vida em cada momento, em qualquer
lugar. O seu templo está dentro da sua pele e dentro do templo está aquilo que
nem ele mesmo, por mais que desmedidamente se esforce, poderá expressar.
É um
grande político construindo sem descanso a nova humanidade, a humanidade unida.
A sua política é o gesto amigável sem hipocrisia, a sua atitude de respeito e o
olhar profundo, cada palavra, cada acção, em cada instante, em qualquer lugar. Não
partilha nenhum tipo de discriminação entre os humanos. Não procura segurança,
porque sem querê-lo, já a possui neste momento e, procurando-a, não a
encontrará. Afasta-se do ruído. Sabe que o destrói, “materialmente” ou
organicamente inclusive. Conhece o seu ritmo psicobiológico. Respeita-o, impede
com tranquilidade que se altere. Sabe que o alteram facilmente as conversas
agitadas ou insípidas, a televisão massificada, a rádio comercial-publicitária,
a competitividade, o consumismo, a análise, a acumulação, a opinião, a
interpretação e a condenação. Aceita-se tal qual é. Não deseja mudar porque
sabe que estando vivo e desperto, será diferente a cada instante.
Não
adquire nem consome continuamente porque conhece as suas necessidades físicas.
É-lhe suficiente satisfazê-las natural, tranquila e prazenteiramente. Simplesmente
protege a sua vida. Incondicionalmente protege a vida. Pode ter esposo ou
esposa. Pode não ter. Em todos os casos, é livre. E aceita a liberdade do
outro.
Não
tem direitos nem deveres. Toda a sua acção surge espontaneamente da total
aceitação da vida, isto é, do amor. As suas relações são estáveis porque são
sãs e as suas relações no amor surgem da total aceitação não deliberada. Não
pode conceber que as relações de amor tenham um fim porque conhece o amor, e
não pode conceber que existam relações que persistam somente por dever e por
direito, por culpa ou por responsabilidade.
Jamais
espera que seja outro quem salte antes. Salta ele sem desejar ser o primeiro a
fazê-lo. Não interrompe o seu despertar nem sequer quando dorme. O Ser Humano Novo está só e sabe-o. Só
ainda que no meio da multidão. Só na vida e na morte, e sabe também que o seu
destino é o destino de todos. Por isso compreende que com a sua própria
liberdade real e com a sua própria regeneração, acabou de começar a
regenerar-se e a libertar-se a humanidade inteira.
Quem tenha olhos para ver, que veja.
Quem tenha ouvidos para ouvir, que ouça.
FIM