domingo, 28 de abril de 2013

J. Rentes de Carvalho: Há Que Lê-lo. Ponto.


Haverá sempre, entre o Homo Sapiens, espécimenes de alguma forma imperfeitos, inacabados. Não do ponto de vista biológico, mas daquela parte imaterial do Homem que, existindo, faz dele um ser integral. Aquela parte do Homem que o faz ver para além do simples olhar, escutar para lá do ouvir, perscrutar as profundezas do sentir sem ficar na vã superficialidade do trivial. São muitos, lamentavelmente, os espécimenes que dela estão desprovidos (vejam-se, por exemplo, os comentários de um tal Montez). E por força da sua incompletude sobra-lhes porém, - porque naturalmente, pela lei da compensação, se lhes aguçou - sobranceria em tosco carácter, vaidade em rudimentar autovalorização, enfatuação em ridículo ensoberbecimento. 

Mas há aqueles que são completos, inteiros. Aqueles que consideram a vida em todos os seus aspectos e profundidades. Aqueles que passam a fronteira do comezinho apenas habitado pela insuficiência, pela mesquinhez, pela incapacidade. Aqueles que avançam, sem medo, ou até com ele, pelos caminhos, sinuosos sim, mas muito sábios, da vida integral: os que são trilhados pelo corpo e, ao mesmo tempo, consolidados pela alma. Exemplos? Poucos, infelizmente, mas há-os, e um deles é o escritor contemporâneo J. Rentes de Carvalho! Sou incondicional admiradora, quer do próprio, quer da sua inigualável escrita. Há que lê-lo. Ponto.


Escreve ele em “O Rebate” (1971), publicado pela Quetzal em 2012:

Estranha, esta angústia do presente, do futuro.
Estranha, a imobilidade em que me perco, como se tivesse milhões de horas para esbanjar.
Estranho, o medo que me prende.
Estranha, a inconsciência com que governo o dia-a-dia (a vida, essa, é ingovernável…).
Não sou o primeiro que deseja o repouso do não-ser, gasto pelos amanhãs que não vêm – ou temendo-os – pernas e mãos bloqueadas, cérebro vazio, nauseado, sem saber.
Amanhã!
E amanhã será como hoje, como ontem, insatisfeito, triste, longe, mas enraizado naquela terra donde vim!
Indiscutivelmente, J. Rentes de Carvalho é talento, é genialidade, é completude! 


quarta-feira, 24 de abril de 2013

Do Tempo e do Ser

Tide of Time - Vladimir Kush

Como se amplia a angústia quando o pensamento teima em andar de um lado para o outro na ilusória linha do tempo!

Cada vez que o passado bate à porta e o deixamos entrar, fenece a alegria, medra o pesar. Se ao sofrimento de outrora estendermos a passadeira vermelha e a cada segundo lhe reiterarmos a admiração pelo sacrifício e pela dor, a felicidade, inteirando-se, foge a sete pés para lugar futuro, incerto e distante. Remexer o sótão das recordações pode, porém, constituir acto de sensatez se, ao executar dita actividade, tivermos, previamente, morrido. Só nesse estado se garante imunidade ao contágio e se poderão colher, nos rincões da memória, os intemporais fragmentos úteis à construção da vida.

Saltar para o futuro revela-se tão perigoso quanto o mergulho nas névoas pardacentas do passado. Pela sua própria natureza, o terreno gasoso do futuro nada sustém senão o desejo e a vã esperança. Construir castelos no ar ajuda o tempo a passar, mas não o imbui de qualquer realidade. Trama feita de fios de nada e urdidura de fios de coisa nenhuma são tela ambígua e instável. São o tecido do futuro em que o desejo e a esperança parecem agigantar-se e onde a felicidade, eterno objectivo do ser, se mantém distanciada, longínqua e inalcançável, em indistinto horizonte.

Passado e futuro. Duas quase inexistências sobrevalorizadas. E o presente, o momento de todas as coisas, do que já existe e do que há-de vir a ser, posto de lado. A única realidade, o agora, postergada.

No presente, já não ouvimos o vento murmulhar por entre as cores da natureza. Já nem sequer as tormentas feitas de ruidosos dilúvios e cavos estrondos, quanto mais o som imperceptível do bater das asas de uma borboleta ou o silencioso flutuar das nuvens altas e ronceiras. Já não ouvimos o bater do coração, nem o pulsar da alegria simples, aquela que chega só porque o sol brilha e o amor transborda sabe-se lá de onde. Já não ouvimos os sorrisos, nem nos pomos à escuta de prantos escondidos. Já não gargalhamos à chuva ou descalços na poça morna de água lamacenta.

No presente, já não ouvimos nada nem ninguém. Nem vemos, nem sentimos. No presente, só estamos presentes no passado e no futuro. Que é exactamente o mesmo que não estar, não ser, não existir. Fechámos os sentidos, bloqueámos os sentimentos, afastámo-nos do manancial inesgotável do todo-em-tudo-aqui-e-agora.

Como haveremos, então, de alguma vez compreender profundamente a vida, se a cristalizamos no presente, apenas para reencontrar reflexos dela num passado morto, ou projectar desejos dela num futuro inexistente?



domingo, 14 de abril de 2013

Não me apetece escrever, apetece-me reflectir...


Fotografia de guerreiros samurais da província de Satsuma durante a Guerra Boshin

Não tenho pais: Faço do céu e da terra meus pais.
Não tenho casa: Faço da consciência a minha casa.
Não tenho vida ou morte: Faço do curso da respiração a minha vida e morte.
Não tenho poder divino: Faço da honestidade o meu poder divino.
Não tenho meios: Faço da compreensão os meus meios.
Não tenho segredos mágicos: Faço do carácter o meu segredo mágico.
Não tenho corpo: Faço da persistência o meu corpo.
Não tenho olhos: Faço do clarão do relâmpago os meus olhos.
Não tenho ouvidos: Faço da sensibilidade os meus ouvidos.
Não tenho membros: Faço da prontidão os meus membros.
Não tenho estratégia: Faço do “não obscurecido pela sombra do  pensamento” a minha estratégia.
Não tenho desígnios: Faço do “aproveitar a oportunidade” o meu desígnio.
Não tenho milagres: Faço da acção correcta os meus milagres.
Não tenho princípios: Faço da adaptabilidade a todas as circunstâncias os meus princípios.
Não tenho tácticas: Faço do vazio e da plenitude as minhas tácticas.
Não tenho talentos: Faço do meu expedito entendimento o meu talento.
Não tenho amigos: Faço da minha mente o meu amigo.
Não tenho inimigos: Faço da negligência o meu inimigo.
Não tenho armadura: Faço da benevolência e da rectidão a minha armadura.
Não tenho castelo: Faço da mente impassível o meu castelo.
Não tenho espada: Faço da ausência do ego a minha espada.

                                                             Samurai anónimo, séc. XIV


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