quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Para lá de impostas fronteiras


Haven - Vladimir Kush

Há que ignorá-las e avançar. Avançar sem olhar para trás. Avançar, apesar de tudo. Caso contrário, é sério o risco de morrermos sem termos alguma vez vivido.
Sim, porque se a vida for simplesmente um palco encenado por tradições cujas origens desconhecemos, e que nem sequer curiosidade nos suscitam; se o cotidiano for apenas uma peça de teatro que se desenrola entre personagens apáticos e fleumáticos, escrita por desconhecidos que se ocultam nos bastidores; se o pensamento for tão só um espaço fechado, qual caverna de Platão, onde a plateia permanece num perímetro de segurança estrategicamente instalado, a salvo de ideias virgens, de extrapolações fantásticas e de tomadas de consciência; então, está-se morto para a vida!
Mas, como se ignoram os limites impostos, era após era, com a pérfida e egotista subtileza da malignidade imperante? Como se apagam os estigmas seculares marcados na mente, a ferro e fogo, pelos dogmas religiosos, pelas políticas simuladas, pelas mentiras convenientes? Como se desconstroem pensamentos e convicções, ideias pré-concebidas, ideais cristalizados, crenças e dogmas, leis e normas e regras que, na sua aparente universalidade, tão-somente servem desejos e situações elitistas e específicas?
Como? Transpondo fronteiras, eliminando obstáculos, questionando incontestabilidades, desmiuçando o que se toma como certo, esboroando até ao nada impedimentos gerais e pessoais, ignorando miragens e seduções. Começando de novo, sozinhos, por nós próprios, a partir do zero, porque tudo o que hoje temos é de lavra e pertença de outros. Levando a sério a coragem que nos inflama o coração sempre que sentimos, ainda que ao de leve, qualquer ínfimo fragmento da Verdade. Rumando em direcção ao desconhecido, tão despojados quanto pudermos, depois de haver enterrado o medo que sempre nos acompanhou antes de tomarmos posse e pulso da nossa própria vida.
Para lá de impostas fronteiras, de horizontes fictícios, existem vastidões inexploradas, imensidades à espera que delas tenhamos consciência. Para lá dos estigmas e dos pensamentos e conceitos estereotipados, existem, ao nosso inteiro dispor, possibilidades infinitas. Possibilidades de pensamento, de consciência, de criação.
Para lá de impostas fronteiras, longe de repetições e propagandas, na mais completa nudez de mente e alma, talvez encontremos a tão almejada resposta à mais fundamental das perguntas: Quem sou eu?

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

A Hora do Silêncio ou a Aventura da Solidão




Quando deixamos para trás o bulício insuportável do quotidiano frívolo e mecanizado e fechamos a porta ao ruído repetitivo e persistente da mente que, diligente pupila da nossa vontade, pensa sem cessar o que se lhe ordenou, entra-nos porta adentro o silêncio.
 
Tão raro é que a princípio estranha-se. Não é tarefa fácil desembaraçar-nos daquela sensação frustrante do “falta alguma coisa”. Persistindo nele porém, descobrimos aos poucos que a tranquilidade que o acompanha desvanece a frustração.
 
Quase sem nos darmos conta, o silêncio cresce, cresce e torna-se imenso. Espalha-se pelo chão, sobe paredes acima, cobre o tecto, preenche cada fresta nas paredes, cada junção das tábuas do soalho. De tão imenso, transborda janela fora e enche o mundo. Estende-se por cidades e ermos, oceanos e rios, montes e vales. Está no ar, na luz, no som. O chilreio e o trovão distante são silêncio. A chuva e o vento e a onda que rebenta são silêncio. É silêncio a estrela, a galáxia, o cosmos inteiro. É silêncio a ideia, o pensamento e a palavra. É silêncio a vida, a existência, a criação.
 
Só o silêncio toca o eterno, morada única do ser universal. Terra de ninguém onde o ego não tem entrada.

sábado, 5 de janeiro de 2013

O Mundo às Avessas ou o Império da Estupidez


Les Pommes - Paul Cézanne - 1890

Não há maior gerador de confusão do que a estupidez. E cada vez mais é ela o factor determinante no sentido de “progresso” da civilização.
Conceitos tais como o bom senso, a seriedade, o respeito pelo outro, pura e simplesmente desapareceram. Ou imbuíram-se de tal profunda deturpação que o miolo se esboroou, restando apenas a casca e um oco onde cabem todas as barbaridades.
Tudo o que antes era simples, natural, espontâneo, criativo, passou a ser complexo, provocado, intencionalmente elaborado e maquinado segundo as tendências, os gostos, os caprichos e as sofisticações, todos eles induzidos, das massas.
Na pintura, na escultura, na arquitectura, na música, na literatura, a obra deu lugar ao mamarracho. Porque o mamarracho vende, o mamarracho traz fama, o mamarracho nutre o ego e o bolso do fiel devoto do dinheiro. E o resultado está à vista: borrões pueris ou acessos de ira vitimam as telas e logo são catalogados como pioneiros da escola X ou Y, “esculturas” patéticas e aberrantes onde se lêem gritantes frustrações e pedidos de atenção, edifícios inúteis e ostensivos, de formas estridentes que ferem o olhar e a beleza, composições de notas dissonantes em ritmos que lembram evocações satânicas e estados psicadélicos, livros e livros, a maior parte autopublicados, com cheiro intenso a romance de cordel ou a poesia inspirada em vapores etílicos.
Tudo é cada vez mais artificial, mais extravagante, mais estrambótico. E a isto chamam originalidade. Chafurda-se em intelectualidades vazias, frequentam-se eventos sem nexo para se ser aceite, para fazer parte. E a isto chamam cultura. Furam-se e pintam-se os corpos, deformam-se com silicone e botox, numa tentativa absurdamente estúpida de alcançar ideais de beleza. E a isto chamam personalidade. Do alimento fez-se brinquedo e mercadoria. A deliciosa trincadela numa maça sumarenta acabada de colher deu lugar à sofisticação do alimento processado, recreação multicor para a visão, sedutor e oculto veneno para a saúde. E a isto chamam civilização.
Todas as áreas da vida têm vindo a ser sistematicamente artificializadas, mecanizadas, descaracterizadas. Os seres humanos também. E de tal forma que já não sabem o que é trincar uma maça sumarenta acabada de apanhar para lhe sentir o verdadeiro sabor, tal como já não sabem o que é deixar crescer até ao infinito um sentimento interior para lhe conhecer o verdadeiro significado.
De exterior e interior pervertidos, mutantes informes em razão dos seus desconchavos, eis o único feito realmente extraordinário dos seres humanos: a diligente e contínua construção do Império da Estupidez. Só a trincadela na maça e o desenvolvimento do sentir interior, levados a sério, de corpo e alma, por cada um dos indivíduos, poderá conduzir à queda deste império e à ascensão do da verdadeira humanidade.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Brilhante ou Sombria

René Magritte - La Baigneuse du Clair au Sombre (1935)

Não preciso que a noite caia
p’ra que se me escureça a alma,
e o mais sombrio dos dias não apaga o brilho que por vezes nela se acende… 

Sucedem-se as estações do meu sentir à cadência incerta do pensar:
se as penso amenas, parecem primaveras luminosas e serenas
ou outonos dourados e tranquilos;
se as penso conturbadas, ora escaldam como verões sufocantes,
ora gelam como álgidos invernos.  

E quase sem reparar, tão inconstantes são os pensamentos
quando correm soltos e a toda a brida,
ora estou no mais extático dos céus, ora no mais sinistro dos infernos… 
 
Brilhante ou sombria se põe a alma consoante pense a minha vida…
 
 
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