quinta-feira, 16 de junho de 2011

O Papel


Há não sei quantos anos cheguei, um dia, a casa. Abri a caixa do correio e retirei uma série de folhetos e jornais publicitários que, diligentemente, coloquei no contentor.
No dia seguinte, cheguei a casa. Abri a caixa do correio e retirei uma série de folhetos e jornais publicitários que, diligentemente, coloquei no contentor.
Nos dias que se seguiram, chegava a casa, abria a caixa do correio, retirava os folhetos e os jornais e colocava-os no contentor.
No mês seguinte, a rotina foi mesma. E nos meses que a esse se seguiram.
No ano seguinte passou-se exactamente a mesma coisa: todos os dias cheguei a casa, abri a caixa do correio e coloquei os folhetos e os jornais no contentor.
E ontem, passados já não sei quantos anos, cheguei a casa, abri a caixa do correio, retirei uma série de folhetos e jornais publicitários e diligentemente coloquei-os no contentor.
Durante todos estes anos, foram tantos os auto-colantes “Publicidade Aqui Não” que coloquei na caixa do correio quantos os que foram arrancados, rasgados, inutilizados, e tantas vezes quantas as semanas transcorridas nestes anos.
Quantos quilos de papel teria eu recebido e deitado fora em todos estes anos? Quantos quilos de papel teriam recebido e deitado fora os meus vizinhos em todos estes anos? Quantas toneladas de papel teriam recebido e deitado fora os habitantes da cidade onde moro, durante todos estes anos? E quantas toneladas teria recebido e deitado fora toda a população do país? E toda a população do mundo?
Quando perceberá o homem a insensatez dos seus actos? Durante quantas décadas mais violentará o homem a Natureza antes que seja tarde demais e ela restabeleça o seu equilíbrio de forma cruel, implacável e irreversível para o homem?
Quanto tempo mais decorrerá sem que o homem se aperceba da infantilidade nociva da sua acção, da estupidez intrusiva e destrutiva dos seus objectivos, da consequência global da sua insustentável e grosseira ambição?
A cada folheto ou jornal publicitário que diariamente retiro da caixa do correio, à mente se me afloram carinhas de crianças esquálidas de todas as cores, de olhos esbugalhados e inexpressivos, janelas da alma baças como se o sopro da vida jamais tivesse passado por elas; crianças de barriguinhas dilatadas e membros sem carne, crianças sem sorrisos, sem futuro, sem o direito inalienável de desabrocharem e de se tornarem seres humanos plenos; cada uma delas filha da inconsciência, da ignomínia, da leviandade do homem, cada uma delas filha da inconsciência de cada um de nós, filha da irresponsabilidade de cada um de nós, filha da desumanidade que cada um de nós nutre sem sequer se aperceber.
Quanto esbanjamos, quanto desperdiçamos e que crueldade demonstramos quando, dia após dia, nas nossas vidas de abundância e excesso, nos esquecemos tão facilmente dessas outras, miseráveis, mirradas e famintas!
Hoje, cheguei a casa e abri a caixa do correio. Retirei dela uma série de panfletos e jornais publicitários. Coloquei-os no contentor. Depois olhei-me ao espelho. Corei de vergonha até à raiz dos cabelos. A culpa é minha! A culpa é de cada um de nós!
Amanhã, quando chegar a casa, vou abrir a caixa do correio. Vou retirar dela uma série de panfletos e jornais publicitários. Vou colocá-los no contentor. Mas não vou ficar indiferente. Afinal, preciso de tão pouco para viver!
Tanto papel e que difícil é ter consciência do nosso próprio papel!

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