segunda-feira, 20 de junho de 2011

Meditei-me

Meditei-me
E cheguei à conclusão:
Sou o que os outros são.

Nada tenho de meu,
Apenas o que é de todos:
O universo inteiro e a mais vasta solidão.

É, pois, só que sou.
E apenas quando a sós co’ a minha alma;
“Tudo o resto”, ela insiste,
“que a teus olhos se insinua, a teus ouvidos se clama,
se tu mesma o não sentiste,
pura e simplesmente não existe”!

Meditei-me
E cheguei à conclusão:
O que eu sou os outros são,
E dediquei-me desde então
À infinita tarefa de ser a sério e a fingir não.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

O Papel


Há não sei quantos anos cheguei, um dia, a casa. Abri a caixa do correio e retirei uma série de folhetos e jornais publicitários que, diligentemente, coloquei no contentor.
No dia seguinte, cheguei a casa. Abri a caixa do correio e retirei uma série de folhetos e jornais publicitários que, diligentemente, coloquei no contentor.
Nos dias que se seguiram, chegava a casa, abria a caixa do correio, retirava os folhetos e os jornais e colocava-os no contentor.
No mês seguinte, a rotina foi mesma. E nos meses que a esse se seguiram.
No ano seguinte passou-se exactamente a mesma coisa: todos os dias cheguei a casa, abri a caixa do correio e coloquei os folhetos e os jornais no contentor.
E ontem, passados já não sei quantos anos, cheguei a casa, abri a caixa do correio, retirei uma série de folhetos e jornais publicitários e diligentemente coloquei-os no contentor.
Durante todos estes anos, foram tantos os auto-colantes “Publicidade Aqui Não” que coloquei na caixa do correio quantos os que foram arrancados, rasgados, inutilizados, e tantas vezes quantas as semanas transcorridas nestes anos.
Quantos quilos de papel teria eu recebido e deitado fora em todos estes anos? Quantos quilos de papel teriam recebido e deitado fora os meus vizinhos em todos estes anos? Quantas toneladas de papel teriam recebido e deitado fora os habitantes da cidade onde moro, durante todos estes anos? E quantas toneladas teria recebido e deitado fora toda a população do país? E toda a população do mundo?
Quando perceberá o homem a insensatez dos seus actos? Durante quantas décadas mais violentará o homem a Natureza antes que seja tarde demais e ela restabeleça o seu equilíbrio de forma cruel, implacável e irreversível para o homem?
Quanto tempo mais decorrerá sem que o homem se aperceba da infantilidade nociva da sua acção, da estupidez intrusiva e destrutiva dos seus objectivos, da consequência global da sua insustentável e grosseira ambição?
A cada folheto ou jornal publicitário que diariamente retiro da caixa do correio, à mente se me afloram carinhas de crianças esquálidas de todas as cores, de olhos esbugalhados e inexpressivos, janelas da alma baças como se o sopro da vida jamais tivesse passado por elas; crianças de barriguinhas dilatadas e membros sem carne, crianças sem sorrisos, sem futuro, sem o direito inalienável de desabrocharem e de se tornarem seres humanos plenos; cada uma delas filha da inconsciência, da ignomínia, da leviandade do homem, cada uma delas filha da inconsciência de cada um de nós, filha da irresponsabilidade de cada um de nós, filha da desumanidade que cada um de nós nutre sem sequer se aperceber.
Quanto esbanjamos, quanto desperdiçamos e que crueldade demonstramos quando, dia após dia, nas nossas vidas de abundância e excesso, nos esquecemos tão facilmente dessas outras, miseráveis, mirradas e famintas!
Hoje, cheguei a casa e abri a caixa do correio. Retirei dela uma série de panfletos e jornais publicitários. Coloquei-os no contentor. Depois olhei-me ao espelho. Corei de vergonha até à raiz dos cabelos. A culpa é minha! A culpa é de cada um de nós!
Amanhã, quando chegar a casa, vou abrir a caixa do correio. Vou retirar dela uma série de panfletos e jornais publicitários. Vou colocá-los no contentor. Mas não vou ficar indiferente. Afinal, preciso de tão pouco para viver!
Tanto papel e que difícil é ter consciência do nosso próprio papel!

quarta-feira, 15 de junho de 2011

A Selva - Capítulo I

Manadas e primatas

É na selva que vivemos e rodeados de animais selvagens, e que me perdoem as verdadeiras selvas e todos as espécies da fauna e da flora que lá habitam!
Se não há lugar para estacionar, o parceiro habilidoso dá um toque no carro da frente e um toque no carro de trás e lá enfia o veículo no espaço arranjado à força, deixando-nos a nós, os “tansos”, completamente enlatados! Ou então, com ademãs de superioridade, aquela superioridade que advém da ignorância e da barbárie, estaciona em segunda fila e lá vai à sua vidinha insípida, deixando a vidinha dos “tansos” suspensa por tanto tempo quanto os seus mesquinhos afazeres assim o exijam. E depois, se nós, os “tansos” reclamamos, cobertinhos de razão, ainda ouvimos impropérios em frases mal construídas mas alagadas de prosápia que corroboram o vazio incivil que lhes povoa o cérebro. Bazófia ou não, os habitantes da selva citadina é que levam a melhor aos “tansos” como nós, que por força de princípios e de respeito pelo semelhante, engolimos mais um sapo e novamente constatamos que estes espécimens ferozes não são de todo domesticáveis!
No trânsito é o mesmo! São os ases do volante que se nos colam à traseira  e que nos ultrapassam como se fossem insanos suicidas, ou as fêmeas estereotipadas de óculos escuros e melenas trigueiras ao volante de topos de gama que, por falta de miolos, e quiçá por falta de inteligência, não têm noção da lateralidade e a regra da prioridade escapa-se-lhes entre as unhas récem-cuidadas no salão de beleza ou no spa! E não ousemos nós, os “tansos”, contrariar tais comportamentos sociais, já que os olhares flamejantes que nos lançam, sempre imbuídos de uma altaneira expressão, se não nos intimidam – que na realidade não intimidam – desmotivam-nos certamente a dar-lhes troco sensato!
E quanto às gasolineiras? Há uma que diz que dá combustível grátis até ao final do ano. Vai-se a ver e a coisa até impõe um tecto pecuniário! E desse tecto, nós os “tansos” abastecemos no valor de trinta euros e ainda deduzimos o IVA! Feitas as contas, se tivermos a sorte de ganhar, o prémio que toca são uns míseros setenta euritos mensais! E os “tansos”, que somos  nós, querendo poupar uns cêntimos, levados pelo rufar dos tambores da selva que anunciam aos quatro ventos uma vantagem hipnotizante que afinal não existe, lá vamos abastecendo, docilmente, trinta euros de cada vez , e tantas vezes quantas a nossa inconsciente ingenuidade o permita, para ver se ganhamos alguma coisa. E enquanto isso, a gasolineira, esfregando as mãos de contente, engorda os cofres à custa da inumerável quantidade de “tansos” que aliciou. Juízo, isso sim, deveríamos ganhar!
Quanto a piscas e a setas indicadoras no pavimento, então nem se fala! Os primeiros pura e simplesmente caíram em desuso, e os indivíduos que vêm atrás do condutor que de repente muda de direcção, nós, os “tansos”, que se acautelem, não vão abalroar o veículo do animal! Com as segundas a coisa ainda se torna mais caricata. É que se estivermos num parque de estacionamento e seguirmos as setas, todas as probabilidades são de que a manada avance em sentido contrário! O gado arranja assim rapidamente um lugar e nós, os “tansos”, lá continuamos a dar voltinhas, sempre no sentido das setas, até paciente e placidamente encontrarmos um!
E nas rotundas? Por acaso saberão explicar-me porque é que a grande maioria dos condutores vindos da faixa do meio, intrépidos e “cheios de razão”, se atravessam perpendicularmente à frente de nós, os ”tansos”, que, segundo diz a regra, sensatamente estamos já colocados na faixa mais exterior para usar a saída imediatamente à nossa direita?  É que acho altamente improvável que semelhante quantidade de símios decida mudar de faixa de repente para seguir por onde seguimos! O que resta então aos “tansos”, que somos nós? Resta-nos travar a fundo e dar passagem a esses primatas acéfalos!
Que nos assista uma paciência infinita, a nós, os “tansos”!
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