quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Vivo-a

Sou não sendo nada.
Mas sou.
E vivo a vida não sabendo sequer porque se outorgou.
Vivo-a porque também é para mim.
O que quer que seja,
Mesmo não sendo só minha,
Ela sou eu,
E vivo-a porque me aconteceu.
Dela não sei nada mas ainda assim
Vivo-a.
Se me ponho a pensar não sei o que é
Tal como não sei o que sou.
Mas se me ponho a sentir
Ela é força, criação,
Vertigem, turbilhão,
Maravilha, interrogação,
É tudo e não apenas eu.
Vasta, misteriosa, desconhecida,
Vivo-a.
Mesmo não sendo minha,
Mesmo que haja alternativa,
Vivo-a.
Afinal, foi em mim que ela nasceu...

Se

Sou esquisita. Completamente esquisita e desprovida de interesses em comum com eles, os seres que me rodeiam. À excepção, claro, dos aspectos biológicos e fisiológicos, tudo em mim é diferente, ou melhor, é estranho, é esquisito. Para eles, claro, porque para mim é absolutamente natural.
Mas não sou um monstro, nem uma aberração, nem uma deformação. Se assim fosse, a própria natureza já se teria encarregue de me aniquilar. A selecção natural teria funcionado também comigo. Mas não. Sou esquisita por comparação mas não sou esquisita na minha individualidade. E por isso a natureza não vê em mim nenhuma desarmonia que atente ao seu equilíbrio perfeito.
Eles interessam-se por isto ou por aquilo. Eu, por mais que tente, não vejo interesse algum nem nisto nem naquilo. Não sequer é por teimosia, por espírito de contradição. É que não vejo mesmo. O isto ou o aquilo que eles valorizam não tem qualquer valor para mim. Melhor dizendo, tem valor sim, mas única e exclusivamente o valor que lhe é inerente. Nem mais, nem menos. Um copo serve para beber, ponto. E se quisermos exagerar e ir ao âmago da questão, para beber nem sequer é preciso um copo. Mas enfim, libertando-nos de extremos, é para isso que ele serve.
Mas eles, por qualquer patologia incompreensível para mim, ou até devido a um qualquer aspecto da natureza do ser que até agora me tenha escapado, acham que o copo só serve para beber se! Se for de cristal, se for de pé alto, se for finamente trabalhado, se tiver design, se tiver griffe, se for admirado por terceiros, se for cobiçado e desejado, se, se, se!
Ora bolas, até parece que não se trata de um simples objecto mas sim de um complexo tratado de moral e bons costumes. Como se não se pudesse matar a sede recolhendo água nas mãos enconchadas!

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Que sou eu afinal?

Continuo sem saber o que sou, mas sei que sou tudo o que aparentemente não sou. Definitivamente não sou esta tristeza que me percorre, este vazio que me afoga, esta inutilidade e esta inércia que insistentes me acompanham. Sem dúvida que não sou esta dor que sinto, este sofrimento dilacerante, e muito menos sou esta ânsia sem objectivo que me consome. Não sou esta vontade de chorar sem motivo nem este aperto no coração sem razão aparente. Não sou este silêncio estéril e acutilante que me encarcera e que nenhuma palavra parece conseguir quebrar. Não sou esta incompreensão e esta ignorância que tantas vezes se assoma. Não sou esta angústia nem esta vontade indefinida e improfícua. E muito menos sou esta indolência nutrida pelo medo que limita o pensamento e a acção. Nem sou sequer esta estúpida impossibilidade que a vezes se apodera de mim nem o absurdo da conformação. Decididamente não sou solidão, não sou a aridez do deserto que me cerca.
Também não sou a imagem que se reflecte no espelho a cada manhã, nem a roupa que visto nem a comida que como. Não sou um rosto, um nome, uma profissão, uma maneira de ser. Certamente que não sou a conduta condicionada com que inconscientemente brindo os meus semelhantes nem o discurso e a acção repetitivos e irreflectidos do dia-a-dia sem sentido. Não sou o que sei, nem sou o que possuo, nem mesmo sou o fruto de um passado incutido. Não sou uma filha, uma mãe, uma irmã. Não sou uma amiga, uma vizinha, uma conhecida e nem sequer sou a imagem que têm de mim. Não sou por certo um ponto na multidão, um número na estatística e uma peça na máquina social, assim como não sou uma mera reacção automatizada na ordem estabelecida. Não sou cidadã desta cidade, não sou patriota deste país. Se calhar nem sequer sou do mundo.
E todavia sem saber o que sou, serei talvez a alegria que não deixo nascer, o vazio que não deixo preencher. Terei talvez a serventia que não ouso aceitar e serei o movimento que, inconscientemente ou por medo, me recuso a acompanhar. Pode ser que a dor e o sofrimento sejam ilusão e que aquilo que realmente sou os transcenda. E pode ser que as lágrimas que se soltam sejam o prelúdio de algo bem mais poderoso que a felicidade e que o coração se aperte por razão do êxtase e não pela mágoa. Até o silêncio que parece magoar poderá ser, talvez, a porta de um outro limiar em que a palavra carece de existência. A incompreensão e a ignorância serão quiçá o obstáculo criado por uma necessidade de protecção e sem qualquer razão de existir, e a angústia poderá ser o resultado de uma vontade mal interpretada e mal dirigida. A indolência será sem dúvida o peso esmagador da herança, da tradição, da convenção e a impossibilidade e a conformação serão o reflexo de um medo enganoso e infundado. Serei talvez imensidão e não exclusão, serei porventura oásis e não deserto.
Que sou eu afinal?

Aquilo

O frio começa a chegar. Devagar, disfarçado pelo sol que ainda aquece, vai entrando sorrateiro e ocupando o seu lugar devido. Sente-se já uma certa nostalgia, uma certa saudade dos dias quentes de Verão que sempre parecem plenos, infindáveis, brilhantes, cheios de vida.
Lembrei-me de um Verão. Não sei qual porque o tempo não importa. Olhava, distraída, para um campo de milho. O milho verde, pujante, de um verde-escuro potente e vigoroso, ondulava de quando em quando ao sabor de uma brisa suave e quente. O céu, algo enevoado e tingido de uma cor indefinida, com matizes de um laranja-pálido que o sol semi-escondido lhe emprestava, parecia delinear o contraste perfeito entre a terra e o inefável…
Foi nesse preciso momento, em que desnudada de qualquer desejo e em que nenhum pensamento volitivo me assaltava, que toda esta paisagem se me apresentou ao olhar de uma forma diferente, nova, desconhecida: havia naquele campo de visão uma vida pulsante, uma dimensão diferente, palpitante, de uma realidade inequívoca, estrondosamente arrebatadora! O silêncio era de tal modo inebriante que qualquer palavra proferida naquele momento não teria tido sentido algum! E nas cores que eu via, no ar que respirava, aquilo estava ali, esplendorosamente pleno, fundamentalmente vivo e possante, absolutamente indefinível! Enchi o meu ser com aquilo e transbordei de algo colossalmente superior à felicidade, infinitas vezes maior que a alegria; nesse instante redefini-me e então já não era eu porque eu era aquilo!

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Ainda bem!

Ainda bem que no meio da luta e do caos são espectadores os meus olhos, ouvintes os meus ouvidos, passivo e compassivo o meu coração. Ainda bem que outros olhos me vêem e outros ouvidos me escutam e outros corações latem a compasso com o meu. Poucos sim, mas os suficientes para alimentar a minha coragem, a minha cruzada silenciosa e solitária.
Ainda bem que os meus olhos vêem e os meus ouvidos ouvem e o meu coração bate compassado ao ritmo do natural. Ainda bem que os meus pensamentos mudos murmuram às criaturas o silêncio que elas não ouvem. Ainda bem que traçam no espaço com tinta invisível e indelével um caminho quase esquecido, um caminho calado e discreto que poucos ousam trilhar. Ainda bem que gravam no tempo, na própria eternidade, um sentir que dificilmente pode ser expressado.
Os muitos outros olhos que não me vêem, os muitos outros ouvidos que não me ouvem, os muitos outros corações que não palpitam como o meu, são esses que me fazem mergulhar em mim,  e ver-me e vê-los. E assim compreendendo-me, compreendo-os. Através de mim, porque eu sou eles, os olhos começam a ver, os ouvidos começam a ouvir e os corações palpitam com outro som.
Como me aprofundo então! E como se esboroam os actos da superfície, os gritos vociferados no calor da ignorância e da escuridão!  E a vida toma-se da qualidade de um arco-íris que se desenha no céu, precisamente naquele espaço indefinido, único e misterioso, que junta a sombra e a luz, o seco e o molhado, o húmido e o ressequido, o velho e o novo, o falso e a verdade!
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