Paisagem - Aguarela de Viktor de Magalhães |
Completamente intoxicada. Os sintomas não enganam: surda
revolta interior, profunda aversão à estupidez, veemente repúdio pelo ludíbrio,
contínuo recurso ao silêncio porque a palavra, tergiversada e conspurcada, já
não serve o esforço da compreensão nem o benefício da comunicação.
A estupidez, crescente, é cada vez mais elaborada. A
exagerada “veneração” ao cineasta, que, apesar da presença de uma elite que se considera
altamente intelectual, foi tão básica e reles como a feita ao futebolista,
pinta-nos a triste cena de uma humanidade vazia que constrói, dia a dia, cada
vez com mais afinco e requinte, a sua própria futilidade. Da hipocrisia de uns
e da estupidez de outros, passando por lamentáveis mostras da decadência humana,
– o espectáculo montado em torno dos mortos, o je suis Charlie, o Papa que lamenta a morte de cristãos mas nem
refere sequer a chacina dos Palestinos, a morte de muçulmanos, a dizimação
sistemática de inocentes nos países intervencionados pelos belicosos e gananciosos
EUA, até às ridículas lutazinhas internas pelo poder cujos conteúdos e formas não
passam de jogos pueris – tudo indica que a humanidade, e com ela a inerente
maturidade, morreu no ser humano. Em vez dela, instalou-se-lhe no coração a
ignomínia dos bárbaros e a fome de ouro dos piratas, a sede de poder dos reis e
o capricho por extravagâncias dos boémios, a futilidade das cortes e o vazio moral
dos demónios.
Iludir o semelhante, enganá-lo, é um acto tão banal e
aceitável como beber água, ainda que esta purifique o organismo e o engano o
envenene. Na política, na religião, na sociedade, na banca, nas instituições, na
educação, na saúde, na comunicação, nas artes, na literatura, o ludíbrio é
constante. Prevalece o interesse. Verdade e qualidade são dispensáveis. A
mentira, a persuasão, a maquinação, a omissão, a tergiversação, a encenação, a distorção
e a ilusão são o séquito do ludíbrio, “virtude” indispensável ao formatado cidadão-robô
actual.
Absolutamente intoxicada. Um zapping rápido aos canais de TV deixa à tona, em segundos, a
degradação da música, das relações humanas, do pensamento, da cultura, dos
princípios, dos valores. Onde está a música que nos eleva, que nos faz sentir o
espírito, que faz vibrar a alma? Música, hoje, é apenas um dissonante ruído
manipulador e entorpecente, viciante como qualquer droga. As relações humanas
ficaram reduzidas à relação por interesse e à relação puramente sexual. A
relação humana que fomenta a compreensão, que complementa cada indivíduo na
troca frutífera de ideias, desapareceu. A reunião de indivíduos com vista à
superação de cada um pela partilha comum, baseada no intercâmbio cultural e
espiritual, foi costume que há muito se perdeu. O pensamento, esse poderoso
criador de realidades, ficou-se pelo nível sensorial. O resultado é a
devastadora criação de conflitos, a atroz geração de ódios, o ignóbil e
exacerbado egoísmo. A cultura passou a ser a capacidade de dominar as novas
tecnologias, quase exclusivamente ao serviço de geringonças distractoras – telemóveis,
tablets, smart phones, TV’s interactivas – e a arte já só quase é a feitura
de absurdas monstruosidades – Joana Vasconcelos e Yayoi Kusama são óptimos exemplos do oco absurdo – desprovidas
da beleza que as verdadeira obras de arte possuem e do avassalador sentimento
extático que produzem em quem as lê com a alma.
Inteiramente intoxicada. A lei da selva no trânsito, a má
educação e a agressividade das crianças e jovens, a absoluta falta de civismo,
o egoísmo à flor da pela nas filas do hipermercado ou da segurança social ou da
repartição de finanças. As etiquetas que prorrogam a validade de um produto,
coladas sobre a validade anterior já ultrapassada. As cuvetes com alimentos de
qualidade inferior por baixo da convidativa primeira camada que atrai o olho. O
cuspir ruidosamente para o chão, o palavrão fácil e a língua tão mal falada. O
telemóvel em todas as mãos, conversas da treta em quase todos os lábios. Conversas
fúteis em abrangente gama que vai do básico futebol ao topo de gama e à 5th
Avenue. O euromilhões, os famosos. A bolsa, os milionários da Forbes. O circo
das ILGA e das LGBT e dos orgulhosos não-homofóbicos. O apelo ao sexo por todo
o lado. Os OGM e todos os produtos processados. Os atropelos e a selvática
competição no trabalho. A premiação das aparências em detrimento dos conteúdos.
A subtil implantação de democráticas ditaduras e a cada vez menor flexibilidade
e tolerância para a aceitação do outro. O desrespeito pelo outro. A busca da
originalidade própria à custa da uniformização dos semelhantes. O ascenso de
uns poucos à custa do descenso de muitos. As notícias manipuladas para que só
ouçamos e vejamos o que eles querem, para que não excedamos as linhas
limítrofes do sistema. A educação que implacavelmente treina guerreiros executivos,
que fomenta rivalidades, que aumenta divisões, que dá preferência à informação
em desfavor do conhecimento, da sabedoria.
Totalmente intoxicada. Rodeada de seres automatizados de
pensamento mecânico e idêntico, com objectivos similares. Não há criação, há
imitação. O natural deu lugar à mais fantasiosa e artificial ilusão. Por que é
viciadora, a ilusão mata, a cada instante, a individualidade criativa, geradora
e incrementadora de uma mais ampla consciência, que, infelizmente, vem sendo substituída
por estereótipos, por programas mentais maioritariamente aceites. A supremacia
do eu, o consumismo desenfreado, a tergiversação de valores são cuidadosamente
injectados na mente do indivíduo, que é subtilmente levado a pensar que as
escolhas que faz e as decisões que toma são realmente suas.
Preciso de respirar. E sei que só abrindo a janela do meu
interior poderei respirar ar puro, que só no silêncio me pouparei à toxicidade
das palavras, que só na aparente não-acção evitarei inoculações exteriores. Eu
e o silêncio escreveremos na eloquente mudez da escrita o que a boca decidiu
não proferir. Antes permaneça não proferida a palavra-semente, do que caia em solo
estéril e morra…
Agradecimento: Obrigada, caríssimo Viktor, pela tua maravilhosa paisagem. Admirá-la, com os olhos e com a alma no silêncio, é genuína fonte inspiradora!
Isabel,
ResponderEliminarTexto profundo de inconformismo que partilho.
Também estou farto da uniformisação relatada pelos média sem qualquer lugar para o individualismo craitivo.
Parabéns pelo excelente texto (como sempre).
Um grande beijo.
Olá Isabel.
ResponderEliminarA espécie a que pertenço já está degenerada para lá de qualquer hipótese de retorno, e o que descreves apenas o espelha... Tal pintura!
Sinceramente já só me dá para rir quando às vezes troco umas quantas palavras com os tais "seres automatizados de pensamento mecânico e idêntico".
Ainda outro dia tive a hipótese de trocar umas breves impressões com um grupo desses seres com idades entre os 18 e 21 anos e tal troca só serviu para fortalecer a minha convicção!
Se não for um evento celestial... Será a intoxicação que vai resolver o problema, pois no final de contas os sistemas necessitam de equilíbrio!
As novas gerações estão absolutamente perdidas, pois os progenitores perdidos estão!
Resta-nos este silêncio cibernético para irmos expelindo o veneno tóxico que involuntariamente absorvemos.
Bjhs Querida Isabel
voz a 0 db
Os meus sinceros parabéns à autora do texto pela sua elevadíssima qualidade. E um sincero agradecimento por colocar em palavras o que também me vai na alma.
ResponderEliminarExcelentíssimo taawaciclos, gostaria apenas de subscrever o seu comentário, em especial quando se refere à imbecilidade reinante no seio das gerações mais jovens.
Aproveito também para recomendar a leitura deste pequeno manifesto:
https://odesconcertodomundo.wordpress.com/2015/04/10/manifesto-anti-selfies/
Olá Isabel, minha querida.
ResponderEliminarSaliento estas tua frase depois de um texto excelente e de um desabafo sentido:
"(...)a cada vez menor flexibilidade e tolerância para a aceitação do outro. O desrespeito pelo outro."
Esta é a base de todo o mal no mundo, mas felizmente existe o outro lado.
Para desafinar a "sinfonia" tal como Melkor no épico Silmarillion, deixo aqui uma visão diferente.
Sei que tens uma mente aberta, Isabel e mesmo que te pareça estranho, sempre ficas a conhecer outras perspectivas. Não é a repetição do mesmo de sempre, tipo um disco riscado.
http://marecinza.blogspot.pt/2015/04/revelacao-v.html
Ouve a Inélia, mesmo com a má tradução, pois vale sempre a pena.
Um beijo e junta-te com a Natureza e como dizes, dentro de ti mesma
Excelente texto, concordo totalmente, muito obrigado!
ResponderEliminarIsabel, querida amiga de Portugal, terra de meus ancestrais! Que orgulho em saber que entre tanta mediocridade ainda existem seres sublimes com alma suave e atenta para não se conspurcar na lama. Nossa opção é ficar cada vez mais arredia dessa turba intoxicante se quisermos sobreviver a tempo de uma possível evolução espiritual. Ainda bem que exite um termo para a vida aqui na Terra. O planeta está insuportável. Nossa esperança é que em outros planos possamos viver uma vida digna!
ResponderEliminarUm abraço do Brasil,
Sônia