Vladimir Kush |
Gostava
que me deixassem em paz. Que não insistissem em fazer-me sentir obrigada a algo,
seja por meio de palavras, de olhares de reprovação ou de sorrisinhos de
escárnio.
Não
tenho que ir ao funeral de fulano ou beltrano ou sicrano. Não tenho que
engrossar um tétrico aglomerado de enganosos abutres, rostos hipocritamente
sorumbáticos, expressões compungidas quase sempre requintadamente escondidas
sob óculos escuros. Não tenho por que mostrar às pessoas o que sinto em relação
ao morto nem tenho de fingir que somos todos muito unidos e amigos nas “horas
de desgraça”. E por que é que a morte há-de ser uma desgraça? A sê-lo, mais
desgraça é para quem cá fica, que a saudade por vezes é osso duro de roer. Ou
não, se habitarem dinheiros e terrenos no pensamento dos herdeiros. Também não
tenho que ouvir o sacerdote, peça chave do dramatismo religioso, que sempre tem
o condão de transformar um evento natural num acto lúgubre e sinistro, em que
as palavras de uma dita divindade parecem escavar à força um profundo buraco na
alma de cada um.
E por
que hei-de exultar de alegria com um nascimento? Mais depressa me entristeço.
Um novo ser neste mundo decadente, nesta civilização antropocentrista, neste
mar de egoísmo e iniquidade, é muito mais um infortúnio do que uma satisfação.
Um novo ser que será, desde logo, iniciado na insidiosa arte do viver no
faz-de-conta, no quero posso e mando, no vencer a qualquer custo. Um novo ser
que terá, desde o berço, o seu pensamento programado, o seu organismo conspurcado,
o seu valor intrínseco sufocado, a sua humanidade destruída. Muito menos tenho
que ir a baptizados. São violentos. Um pobre ser indefeso, inocente e puro, é
submetido a um ritual de iniciação religioso que, a menos abra ele os olhos
suficientemente cedo, o tolherá para o resto da vida.
Quanto
aos casamentos, a que não vou nem em pensamento, vai a minha preferência para
os divórcios. São estes últimos o único laivo de sensatez em todo o processo de
encenação vitalícia a que os indivíduos se submetem e a que chamam casamento. O
absurdo e o ridículo do acto, desde a preparação à consumação e à vida
subsequente, são o que me leva a acreditar que o ser humano, além de revolver-se
na mais tosca estupidez, é ainda profundamente imaturo. Casamento é
parafernália, é ritual, é tradição, é padrão, é falta de autoconhecimento, de
maturidade, de visão global, cósmica. Casamento não é amor, não é prova de amor,
não é pilar de suporte para a descendência, não é obrigação nem dever nem
devoção. Casamento é negócio. Negócio pessoal, social, político, económico e
financeiro.
Tudo,
afinal, é negócio. Tudo. O nascimento, a morte, o casamento, o baptizado, a
religião, a política, a cultura, a educação. O dia dos namorados e o carnaval,
a páscoa e o natal, a noite das bruxas que antes era a véspera de todos os
santos, os dias mundiais disto e daquilo. Os aniversários e as bodas de prata e
de ouro e de diamante. O amor, o sexo, a solidariedade, a amizade, os
princípios, os valores. A ética, a arte, a beleza, a justiça e a fraternidade. As
homenagens, os tributos, as celebrações, as comemorações. Tudo é negócio. Até a
alma, que é artigo que se vende ao diabo a troco de favores…
De tudo isto me desobrigo. É
inútil qualquer tentativa de dissuasão.
Olá ISABEL...
ResponderEliminarÉ a desobrigação de sermos ESCRAVOS numa CIVILIZAÇÃO que a força de uma MINORIA que soube controlar devidamente a MAIORIA acéfala, construiu...
Em tempos comentei num sítio,
"Então não basta comer, dormir, contemplar, respirar, voltar a comer e a dormir e a respirar e a contemplar... para já ser uma passagem com SENTIDO mais que suficiente?"
Para a MAIORIA parecia que não! E provavelmente continua a parecer...
A única parte em que nos retiraram, propositadamente, a autonomia foi no "comer" pois a maioria de nós não é capaz de colher/plantar a sua própria alimentação... Na parte do dormir e contemplar, apesar de nos limitarem o TEMPO que dedicamos a estas actividades, ainda podemos tentar ser "livres", mas claro que sofremos logo a represália por tal comportamento...
Quando formos (novamente) capazes de efectuar estes feitos, então aí estaremos mais perto de sermos autónomos e capazes de nos desligarmos desta CIVILIZAÇÃO ESCLAVAGISTA...
Começar por desobrigações é sem dúvida a solução... Pois afinal só assim seremos LIVRES para decidir aquilo que queremos realmente fazer!
Bjs
"Então não basta comer, dormir, contemplar, respirar, voltar a comer e a dormir e a respirar e a contemplar... para já ser uma passagem com SENTIDO mais que suficiente?"
EliminarAh, Voz, deveria bastar, não deveria? Mas está a humanidade apostada em esquecer por completo a sua verdadeira natureza e enveredar pelos caminhos artificais que não conduzem senão à auto-aniquilação!
Beijinhos!
É que as pessoas não têm coragem de viver em paz as suas vidas e querem afundar-nos junto com elas em suas arapucas. Mas nós estamos espertas e atentas,não é mesmo, Isabel? Não se deixe iludir. Saia de perto desses esquemas podres. A vida é toda nossa, só nossa. (ultimamente eu ando envolvida numa armadura espiritual que tem me afastado de gente que eu não quero ver nem de costas!!!)
ResponderEliminarAbraços, querida!
Sonia, querida amiga, melhor armadura você não poderia arranjar! Essa armadura é a única que não tem em si nem um átomo de belicismo. Só tem paz e serenidade que são caminhos certos para o nosso verdadeiro ser!
ResponderEliminarO afastamento das coisas e das pessoas obscuras é realmente a melhor maneira de vivermos a nossa vida, essa que você, cheia de razão, diz que é só nossa!
Abraço enoooorme, querida amiga!
Olá Isabel,
ResponderEliminara única obrigação que uma pessoa tem que ter é a de se fazer inteira e feliz sem que para isso prejudique alguém realmente.
É o que faço...e muitas vezes sou mal interpretada, como se de uma afronta directa se tratasse.
Mas eu...eu não faço fretes.
Não se consegue agradar a todos e assim, quem gosta de mim, gosta de mim inteira, não a mentira do que eu seria.
Neste sentido considero-me uma pessoa livre.
poucos mas bons = menos é mais
looongooo abraço
Querida aNatureza, é isso mesmo: ser-se inteiro! E quando se é inteiro, é-se feliz!
EliminarBeijinhos graaandes!
Olá, Isabel
ResponderEliminarQue texto tão bom. Que bem aborda a encruzilhada de ficção tecida pela mentira elevada a si mesma.
É uma grande sorte encontrar as tuas livres palavras em meio da maranha da vida.
Beijos
Minha querida amiga Alexandra, compreendes tão bem os meus textos!
EliminarBeijinhos!
Regresemos, pues, al ocio que nos ha sido usurpado (neg), sin más dilación. Enhorabuena por dejar que la belleza resplandezca a través de tus palabras (aún no leí todas).
ResponderEliminarAbraham, que gusto recibirle aqui!
ResponderEliminarMuchísimas gracias por su amable comentário. Y sí, cultivemos el no hacer en nombre del aprender a ser!
Un abrazo!