Se a
mobilização a que se assiste neste momento tivesse em vista um concerto, um
jogo de futebol, uma festa na praia com música pimba ou uma festa partidária,
lá estaria o povinho em peso. Iriam todos sem hesitar, desde que a música
puxasse o pé para a dança, o tinto e a cerveja escorregassem com fartura e os
comes fossem de borla. E depois seria vê-los, anestesiados e aturdidos,
autênticas baratas tontas, a idolatrar, com caras de basbaque e uma admiração
estúpida no olhar, uma qualquer criatura dita famosa, criada à medida do tosco gosto
da populaça.
Mas a
mobilização é para uma manifestação. E o povo só comparece se não houver jogo
na televisão, ou churrasco na casa dos amigos, ou sol que permita um picnic ou
uma tarde de praia bem passada com bolas de Berlim e gelados. A indignação,
essa, fica para outra altura, quando houver mais vagar. E isso se durar até lá,
porque o que é costumeiro é desabafar em voz alta, quase a berrar, no café, com
os amigos e conhecidos. Ou então mandar uns palpites às
câmaras de televisão que, nem sei se por acaso ou por decreto, se empenham sempre
em escolher a dedo, para entrevistar, os espécimenes mais broncos e mais rudes.
Este é
o comportamento barbárico de uma das maiores faixas da população. Pela sua
natureza e dimensão, portanto, constitui esta faixa a menina dos olhos dos
governos! Ela é manipulável, contenta-se com pouco. Aguenta as pancadas
sucessivas porque é formada por gente habituada ao trabalho duro e ao
sacrifício, e por gente de mão leve no que toca ao alheio. O deus no céu e o
clube de futebol na terra constituem um terreno firme para cultivar a
ignorância, para alimentar as tradições que incentivam à não-mudança. Esta
faixa é a grande garantia de um voto no quadrado certo do político velhaco. Uns
beijos lambuzados, um aroma a peixe e umas escamas que teimosamente se agarram
à mão dos passou-bens, é tudo o que é preciso para vender o voto e garantir a
desejada continuidade. E o povo, inculto, ignorante, crédulo e impreparado
compra-o, sem sequer olhar ao preço que por ele terá de pagar.
Nesta
faixa incluem-se também os imbecis. São aqueles que acham que sabem tudo, que
têm razão em tudo, que percebem de tudo. São os que, apesar de, na sua maioria,
terem formação, permaneceram no nível básico no que toca à inteligência e ao
senso comum. São os que vivem segundo valores e princípios de ocasião, distorcendo-os
e tergiversando-os a seu bel-prazer, sempre com o intuito de ganhar, obter,
subir. Normalmente passam pela vida montados em topos de gama e despedem-se
dela com o mesmo grau de estupidez com que nasceram.
Estes
são os que comparecem nas manifestações para fazerem a triste figura do
engraçadinho no meio da multidão. Gostam de dar nas vistas e, se lhes for dada
demasiada atenção, proferem parvoíces com a convicção do mentiroso patológico e
com a cadência de um disco riscado. Têm tendência para gerar conflitos e
desfrutam com os tumultos que causam. São bastante apetecíveis para os abutres
do poder. Caracterizados pela imbecilidade dos seguidores de modas, votam pelo
som que melhor satisfaz os seus ouvidos. Normalmente soam-lhes bem as palavras
dinheiro, poder, luxo, etc. Costumam votar no partido da moda, isto é, no mais
provável vencedor, mas não sabem, em consciência, porque o fazem.
E fica
assim o governo descansado: o povo que for à rua vociferará alguns impropérios
para aliviar a tensão e voltará a casa tão manso, tão passivo e tão conformado
como antes!
A
segunda maior faixa da população é constituída por aqueles que, tendo educação,
formação específica, princípios e valores, são no entanto discretos, sensatos,
ponderados. Tratando-se de pessoas equilibradas e responsáveis, elas
apercebem-se com racionalidade e senso comum, da degradação galopante da
sociedade, da economia, dos princípios democráticos e de sã convivência. São
normalmente pessoas exemplares como cidadãos, como profissionais, como conterrâneos.
As que votam fazem-no em consciência, dando sempre ao eleito o benefício da
dúvida em nome de uma esperança mais que desejada. As que não votam, branda e persistentemente
vão tentando melhorar o mundo que as rodeia.
Se
comparecem nas manifestações, o seu comportamento é sempre cívico e educado.
Mantêm no pensamento as dificuldades por que passam os seus semelhantes e
tentam sempre fazer o seu melhor. Porque são pouco influenciáveis e pensam por
si próprias, conhecem bem os poderosos maquinismos que se movem por detrás das
desgraças de um povo. Sabem muito bem quem são os amos e senhores que ditam,
implacáveis, os destinos do mundo.
É para
esta faixa que se direcciona a pouca conversa inteligente dos políticos. Não é,
no entanto, uma faixa fácil de convencer.
E
finalmente, há uma terceira faixa de população que é, na sua esmagadora
maioria, a responsável pela situação actual. É a faixa dos magnatas, dos
banqueiros, dos grandes empresários, dos políticos, dos interesseiros, dos
corruptos, dos ladrões, dos extorsionistas, dos habilidosos, dos alpinistas
sociais, do jet-set, dos
oportunistas, etc., etc., etc.
Ora
estes, que se têm em grande conta e pertencem, segundo os próprios, a uma
estirpe superior, jamais se misturam em aglomerados populares. Jamais partilham
também do rosário de lamentações do povinho, que, aliás, se queixa por tudo e
por nada. Alguém que passe dificuldades ou que não tenha que dar de comer aos
filhos, para estes “seres superiores e intocáveis” são meras afirmações que
soam vagamente a títulos deprimentes de filmes lamechas do pós-guerra. E,
obviamente, para estes cérebros de cabeça de alfinete desprovidos de qualquer
compaixão, um salário mínimo é mais do que suficiente para que as famílias,
ainda que filhas de um deus menor, vivam confortavelmente.
Esta é
a faixa que sustenta o poder no seu âmbito geral. Votam uns nos outros, formam
compadrios e assinam acordos. Fazem pender o prato da balança para o lado que
mais lhes convém e chamam a isso equidade. Possuem um sistema de interajuda a
nível internacional e encobrem-se uns aos outros. Tudo em nome do país, da
melhoria das condições de vida, de uma democracia que não passa de uma marca
subliminal implantada no cérebro dos ignorantes, dos imbecis e dos crédulos.
Esta é
a faixa que escora o sistema. Um sistema podre e corrupto, de interesses
elitistas, de profundo desprezo pela vida humana, pelos valores fundamentais do
homem. Esta é a faixa que salvaguarda a sua própria existência à custa da
constante degradação das condições de vida, de educação, de saúde, de
sustentabilidade.
Por tudo isto, as
manifestações, por maior imponência que possam vir a ter, serão sempre, para a
faixa que detém o controlo, um divertimento passageiro e nunca uma pedra no
sapato.