sábado, 14 de abril de 2012

Perguntas Que Não Se Fazem

The Mirror - Frank Markham Skipworth (1854-1929)

Eramos mais que uma meia dúzia. O ruído da conversa banal de hora de almoço, apesar de persistente, não penetrou as defesas que o meu pensamento há muito havia criado para protecção dos seus raciocínios. Subitamente, incapaz de resistir à força da curiosidade suscitada por um pensamento que me habitava havia uns dias, sem quaisquer preâmbulos, disparei:
- Meus caros, por acaso alguma vez se lhes assoma à mente a pergunta “Quem sou eu?” ou “Porque existo?” ou “Que raio ando eu aqui a fazer?”
Os primeiros segundos foram de profundo silêncio.
- E então? Alguma vez fizeram a si próprios este tipo de perguntas? - insistia eu.
- Existo porque penso – retorquiu alguém.
- Não, não é isso – a minha voz denotava impaciência – não quero que me respondam a essas perguntas, quero que me digam se as fazem a vocês próprios. Quero saber se se questionam dessa maneira…
Por entre a silenciosa resposta da maioria, dada com um simples abanar de cabeça em sinal de negação, alguém declara:
- Eu é mais o contrário: penso que vale a pena existir por causa de certas coisas da vida…
Seguiu-se a óbvia gargalhada geral. Segundos passados apenas e já se havia retomado a conversa banal no banal clima de boa disposição.
Olhei em volta. Vi sorrisos. Constatei a boa disposição.
No silêncio que me impus surgiu-me outra questão: serei eu a única que se entristece com a ligeireza com que a maioria das pessoas considera a vida? A única que se assombra com a infinidade de perguntas todavia por responder?

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Da Necessidade de Se Vir a Ser Alguma Coisa



Parece-me absurda a necessidade de se vir a ser alguma coisa para além do que já se é. Afigura-se-me como um factor de auto-anulação, um desperdício da natureza própria. O indivíduo que, por essência, já é alguma coisa, despreza totalmente o que é e coloca-se no caminho ilusório do devir, ao serviço da transitoriedade e em detrimento do autoconhecimento e da individualidade. Troca a sua unicidade original pela opaca cópia da imitação.
Ao longo desse caminho, olhos postos numa meta quimérica, o indivíduo luta ferozmente pelo objectivo do momento, insensível e alheio ao contínuo violentar da sua própria individualidade. Não existe tal objectivo. É um logro sem realidade porque é gerado na inconsistência do desejo. É um círculo infinito. O desejo nasce, e sendo satisfeito morre para renascer mais forte, mais exigente, mais enganador, mais embotador, mais castrante.
Ninguém consegue ser algo que não seja já, é um facto. Recém-nascido, criança, jovem, maduro ou velho, é-se o que se é. A quididade está aí, em qualquer altura da vida. Ora o verdadeiro problema reside no devir ilusório, no desejo portanto. Porque quererá o indivíduo vir a ser alguma coisa?
A razão mais evidente, assim à primeira vista, será a insuficiência e a inferioridade que o indivíduo sente em si mesmo. Porque não se busca, porque permanece interiormente inexplorado, não se reconhece como um todo integral, completo. Tortura-se então no vasto deserto do desconhecimento de si próprio e convence-se de uma aparente incompletude. Há um vazio que lhe morde a alma. Uma solidão que lhe alimenta o medo e uma pequenez que dele advém. Fugindo de si mesmo, o instinto gregário leva-o à associação cega. Porque não sabe ser plural na sua qualidade de único, na sua individualidade exclusiva, eis que, por suas mãos, tece o seu próprio drama!
No patriotismo, porque perdido e sem referências, pensa que se encontra. E cria divisão entre os semelhantes. Na religião, porque inconsciente de si e desprovido de autoconhecimento, acredita que está a salvo. E cria divisão entre os semelhantes. No partido político, porque egocêntrico e temeroso, crê-se justo e corajoso. E cria divisão entre os semelhantes. Na classe social, no estilo de vida, no clube de futebol, nos bens materiais, porque vazio e insignificante, julga encontrar importância e plenitude. E cria divisão entre os semelhantes. Na agregação, no sentimento de pertencer a algo maior, porque pequeno e impotente, pensa encontrar segurança.
Dividido e fragmentado, firme no caminho do vir a ser, que não é senão desejo de ser algo incitado pelo esquecimento do que se é, o indivíduo estropia cada vez mais o seu carácter humano. Que aberrante mutação o esperará num futuro gerado na insustentabilidade do devir?

terça-feira, 3 de abril de 2012

O Silêncio das Palavras

L'Ecole du Silence - 1929 (Jean Delville, 1867 - 1953)

  
Comunicar é bastante difícil para quem não partilha da quotidiana e fútil azáfama. Falar do tempo é uma absurda trivialidade e reduz o diálogo ao nível da especulação pateta. Todos os demais assuntos com que somos confrontados diariamente ou se classificam na patetice especulativa ou no absurdo redutor, e apenas deixam como rasto o eco de um insípido e incómodo cacarejo.
Tenho por isso optado por ficar calada. Não que me não corroam por dentro ácidas respostas com lesta vontade de expressão exterior, mas a antevisão da estupidez e inutilidade do diálogo que suscitariam faz com que mantenha firme a decisão de manter os lábios hermeticamente fechados.
Talvez pelo manto de nuvens cinzentas que impedem a plenitude da acção do sol, ou talvez pelo processo rítmico da vida que nos balança ciclicamente de um polo a outro, a alegria expansiva transforma-se num sentimento sombrio e introspectivo. É então que me pergunto se a palavra falada terá alguma serventia, salvaguardada porém aquela raríssima excepção em que é usada exactamente ao mesmo nível por ambos os interlocutores e serve de trampolim para uma comunicação que vai muito além dela.
Cada vez mais lhe vejo menos utilidade. Cada vez mais lhe vejo o aspecto de arma de arremesso e menos o aspecto de veículo de exploração e aprendizagem. Cada vez mais a vejo como astuciosa articulação e menos como instrumento de compreensão.
Prefiro, neste momento, a palavra escrita como reflexo da palavra não proferida que andou, muda, curiosa e bailariqueira, pelos silêncios e horizontes infinitos do pensamento. Pode não reflectir, sobre o fundo em que se estampa, qualquer verdade. Pode escrever-se injectando-lhe em cada letra um milhão de partículas de dúvida, um milhão de meias verdades ou de francas falsidades. Mas está aí, registada para memória futura, e tomará tantos matizes quantos os olhares que se lhe deitem ao lê-la.

Entre todas estas vantagens, tem a palavra escrita uma outra que em valor todas excede: porque é virgem filha do silêncio, não tendo sido estraçalhada pelo ruído da palavra falada, mantém intacta e pura a essência da fonte de onde proveio!


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