segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

J. Rentes de Carvalho e as Duas Perguntas

J. Rentes de Carvalho

Um dia descobri J. Rentes de Carvalho e desde aí sou leitora assídua do seu blogue Tempo Contado. Não deixo de ler nenhum post seu. E porquê? Porque J. Rentes de Carvalho possui aquela característica inquisitiva e crítica, aquele olhar incisivo e perscrutante e aquele espírito irrequieto e lutador, que caracterizam a pessoa que vive inteligentemente consciente de si, dos outros e do mundo que a rodeia. Rentes de Carvalho mostra tudo isso através da sua escrita rica e elegante, ora profundamente séria, ora orlada de humor. E por vezes até mistura o sério com o divertido, imprimindo desse modo uma força ainda mais poderosa ao que escreve.

Ora, no mês passado, decidiu J. Rentes de Carvalho fazer um concurso a que chamou Duas Perguntas. Ciente das minhas limitações e da minha falta de conhecimentos, decidi, ainda assim, concorrer. Assim fiz. E fi-lo secretamente acalentando o impossível desejo de ver respondidas por Rentes de Carvalho, a quem tanto admiro, as minhas perguntas.
E não é que ganhei!? Mas mais, muito mais do que o prémio, que obviamente também agradeço muito, ganhei as respostas de Rentes de Carvalho às minhas perguntas. E essas respostas vieram consolidar, de forma inequívoca, o que eu dele já antes pensava e lho fizera saber: “…a sua escrita, prezado Rentes de Carvalho, essa é elegante, pejada de conteúdo, sabiamente fundamentada e enriquecida, não com uma linguagem pedante e pesada mas com, creio eu, a linguagem que advém de todo um percurso de vida norteado por uma sensatez e uma acutilância que a grande maioria dos seres infelizmente não possui.”
Eis as minhas perguntas e as respostas de Rentes de Carvalho:
IG: Viajado como é, pelo mundo e pela vida, e se a determinada altura lhe desse por fazer um balanço introspectivo, gostaria que me dissesse, à luz desse balanço, se, para si, são as circunstâncias que fazem o homem ou, antes pelo contrário, o homem forja e molda as suas próprias circunstâncias?
JRC: Certezas não tenho, mas se fosse possível forjar e moldar as próprias circunstâncias, creio que a minha vida teria sido bem diferente, sem aventura, com menos sobressaltos, moderada nos resultados. Por outro lado, isso implicaria também a perda de momentos de muita adrenalina, de sentir extrema alegria, alguns êxtases, viver revelações surpreendentes, ter motivos para admiração e paixão. Posso dar-me a ideia de, uma vez ou outra, ter sido o timoneiro da barca, mas a força da corrente sempre pôde mais e levou a melhor sobre a minha perícia ao leme.
IG: Como leitora diária e atenta do seu blogue infiro que são muitas as características, digamos, menos nobres do ser humano que lhe causam sentida e sincera tristeza. A minha pergunta é, por oposição à minha afirmação, que resultados, que efeitos, da sua escrita, lhe causaram e continuam a causar-lhe uma profunda e genuína alegria?
JRC: Uma das desagradáveis características da alegria, mesmo profunda e genuína, é a velocidade com que perde impacto e se vai esvaindo da memória. Tivesse ela a força e a permanência da tristeza. Mas eu seria desagradecido e hipócrita se quisesse esconder ou diminuir as alegrias que a escrita me tem dado. Conto por alto: ver impresso o meu primeiro romance; os primeiros artigos de jornalismo; o impacto de Com os Holandeses no público holandês; as excelentes críticas aos meus livros na Holanda, na Bélgica, na Alemanha, no Le Monde e no International Herald Tribune; o êxito de Portugal, um guia para amigos; a recente edição da minha obra em Portugal.
São de facto muitas, grandes e pequenas, as alegrias que me têm vindo da escrita, mas entre as mais íntimas conto os testemunhos dos leitores, quando me dizem como, e por que motivo, os tocou um ou outro livro meu. 

Estimado J. Rentes de Carvalho, muito obrigada!

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Dissertação sobre o Anonimato

O anónimo esconde o rosto mas deixa perigosamente à vista o seu carácter!
Sempre fiz um esforço para tentar compreender o uso do anonimato. Compreendê-lo pela positiva, claro está. Tentar perceber nele uma causa justa, vislumbrar-lhe uma pontinha de nobreza, enfim, algo que o legitimasse na proporção directa do seu cada vez mais frequente uso. Nada. Nunca fui capaz de encontrar nada sensato que o desculpasse.
Portanto, e até prova em contrário, o anonimato continua a ser para mim a mais comum e estúpida forma de cobardia. O indivíduo cobarde fervilha de emoção ao imaginar-se corajoso. Infla-se-lhe o ego, desabrido desata-se-lhe a voar o pensamento, e a simples visão mental da coragem e da bravura provoca-lhe um quase “orgásmico” estremecimento. Mas não passa disso mesmo: imaginação. Na realidade, o indivíduo cobarde é um indivíduo que não amadureceu. Estará talvez numa adolescência tardia em que o assumir de responsabilidades e a tomada de consciência do que é estão ao nível da importância de um jogo de futebol ou de uma noite de copos; estará numa adolescência a destempo em que a imaginação e a fantasia constituem uma saída viável para o medo de enfrentar a realidade, achando portanto preferível sonhar eternamente com a queca que haveria de dar à loira da turma em vez de enfrentar, em resposta à sua solicitação, uma frustrante recusa ou, ainda pior, uma lancinante zombaria.
O anonimato pode, portanto, significar um escudo de protecção, uma forma de evitar a exposição directa à realidade frustrante e dolorosa. Pode, também, significar uma auto-estima muito baixa, uma auto-confiança quase inexistente, e neste caso o anonimato funciona como um grito de socorro, um pedido de atenção, uma necessidade de mostrar aos outros que se existe.
O anónimo precisa de medir forças para se alhear da sua cobardia, anseia pela comparação com os outros para poder calar a voz que lhe sussurra “tu não és tão bom quanto eles”. O anónimo opina acerca de tudo, do que sabe e do que não sabe, tentando provocar reacções; e cada reacção significa, para ele, a importância, a confiança, a atenção que não consegue encontrar em si próprio por si próprio.
Não merece, pois, o anónimo resposta alguma. Qualquer uma que se lhe desse seria como presentear o ébrio com uma garrafa de vinho. Não merece o anónimo um laivo de credibilidade já que tudo o que transmite advém de raciocínios desviantes. Mas merece, isso sim, compaixão.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Ritmos do Quotidiano

Eos, deusa grega da Aurora
O levantar é sempre uma agradável perspectiva. A aurora que Eos mais uma vez despontou é a antecâmara do novo, um renascer sempre diverso. Qualquer nuvem, mais ou menos densa, que tivesse ensombrecido a alma no dia anterior por certo se haveria dissipado durante a noite, enquanto corpo e mente serenamente se entregavam aos cuidados de Hipnos e Morfeu. Surge, por isso, sempre radiante e pleno, o crepúsculo matutino, seja qual for a cor de que se veste.
Desde o levantar até à fracção de segundo anterior ao primeiro contacto com a balbúrdia mundana, o viver é um fluir constante do pensamento, um brotar de ideias, um confortável e simples existir em regiões insusceptíveis de definição. O funcionamento da mente e do corpo é natural, espontâneo, não forçado, sem tensões. Sob estas condições em que, possante e firme, coexiste uma inexplicável liberdade, sou não sendo eu, sou sem nome e sem forma, sou o que nesse momento é. E assim vivo até ao instante em que a porta se abre para me deixar sair.
Hemera, deusa grega do Dia
Às mãos de Hemera começa o dia e instala-se então a desordem, a confusão. Filas de trânsito, manobras insuspeitadas, travagens bruscas, correrias e ruído, ruído, ruído. E eis a vida em suspenso. A partir de agora, e até que o sol se ponha indiciando o almejado regresso, o comportamento mecanizado, um estranho colete-de-forças que estrangula o fluxo da vida, preencherá as horas. Horas em que permanecer sã é titânico desafio, em que os estereótipos entram sem convite e fervem na corrente sanguínea tentando transfigurar incautos e crédulos. Horas em que as acções, as atitudes, as palavras, as opiniões, são simples artigos em série que abastecem o ávido consumidor do paradigma vigente. Horas de tal efemeridade e falsidade que até os sensatos pensamentos tidos na alvorada, que então, no afã de alcançar o divino, se moviam por entre o perfeito e o sublime, parecem agora, se lembrados, tão assustadoramente irracionais que mais se assemelham a bizarras esquizofrenias ilustradas em forma de imagens mentais.

Nix, deusa grega da Noite
Hespéra, deusa
grega do Crepúsculo
O sol ao desaparecer vai deixando o horizonte pintado de cores irreais cuidadosamente escolhidas por Hespéra. À medida que se encurta a distância entre o inferno mecanizado da agitação da vida fingida e o paraíso ansiado da solidão e do silêncio, o fluxo da vida, agora liberto, retoma gradualmente rumo e ritmo. Vão-se entregando a luz e a cor do crepúsculo, suave e lentamente, à escuridão do manto que Nix estende.

E antes de voltar ao reparador regaço de Hipnos e de aceitar as oferendas de Morfeu, aí estou eu outra vez sendo, não eu, mas o que é nesse momento.



Hypnos and Thanatos, Sleep and His Half-Brother Death by John William Waterhouse


Nota: Eos, Hemera, Hespéra e Nix, pinturas de William-Adolphe Bouguereau

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Sodoma e Gomorra ou a vida aviltada

Jan Brueghel the Elder, Sodoma e Gomorra

Quando a vida é tratada como mero produto financeiro, algo está visceralmente mal! Quando a vida serve de objecto de apostas em que o protagonista é o vil metal, algo está inegavelmente putrefacto na mente e no coração da humanidade!
Soam cada vez mais fortes as badaladas da decadência! E cada vez mais destemidos, cruéis e ignóbeis se mostram os monstros da perversão! Qual Sodoma e Gomorra, a passos largos caminhamos para a esterilidade de sentimentos, para a aridez de princípios, para a secura do coração. Cada vez mais nos aproximamos de uma era glaciar da alma!
E não há deus que valha aos homens, que o deus que há foi o que eles criaram à sua vil imagem!


P.S.: P.f. siga os links do texto!

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Discernimento

Antonio Balestra, A Virtude Defendendo a Educação da Ignorância e do Vício


Ignorância não é não saber ler nem escrever, é não saber discernir. Inteligência não é informação, é saber discernir apesar da informação. E discernimento não é nem cultura nem informação, é percepção sem barreiras, sem condicionamentos, é compreensão instantânea e livre e ilimitada, é a leitura da vida feita com os olhos da alma.

A informação e a (in)cultura actualmente consumidas cegam o indivíduo. Este, já de si algo avesso a ver as coisas com olhos de ver e a exercitar a arte de pensar pelos próprios miolos, deixa-se deslumbrar e atordoar com todo o género de brinquedos, divertimentos e distracções. E de cérebro entontecido e limitado, de mente turvada pela confusão e cheia de raciocínios de segunda mão, de intelecto imbecilizado e cristalizado pela cultivação do disparate, lá ruma ele para onde ruma a turba. E vai cego mas ufano, mecanizado mas contente, morto mas achando-se vivo.
Não sei que espécie de torpor lhe adormece o entendimento. Nem que espécie de embrutecimento lhe rouba a ânsia da auto-exploração e da auto-descoberta. E muito menos sei de onde e porquê lhe vem aquele impulso idiota de achar que conhece os outros, de se permitir avaliá-los, criticá-los, julgá-los. Pois se nem a si próprio se conhece sequer!
Hoje em dia não se tem a humildade de se ter uma opinião. A opinião, que outrora era apenas um modo de ver pessoal, individual, e que servia para que, por meio da modéstia, da partilha e do verdadeiro saber ver e ouvir, da discussão sensata nascesse a luz, hoje, pela ignorância e pela soberba, sabe-se lá por que artes do demo, nasce já uma certeza com um séquito de néscios acometidos de indolência mental. E ei-los que acerrimamente defendem a idiotice que outro pensou. E em todo este processo, nem uma vez, alguém, questiona alguma coisa!
Enquanto a ignorância e a estupidez, a arrogância e a empáfia, a superficialidade e a idiotia proliferam e alastram, o discernimento, a verdadeira inteligência, vai-se tornando, pela sua escassez, um tesouro a preservar!

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