Ainda mal saímos da parvoeira da carga policial e dos
coitadinhos apedrejadores, dos milhentos comentários imbecis a favor e contra
uns e outros, do espanto aparvalhado perante as acções humanas (imaturos e
pascácios que somos, não conseguimos compreender ainda a nossa própria natureza
e reacções!), e já estamos, de novo, paulatinamente, rodeados pela idiotice das
popotas e das leopoldinas, ao serviço da quadra mais hipócrita do ano.
Ainda mal silenciamos as línguas viperinas, sempre tão prontas
a criticar e a julgar, e já estamos com o espírito natalício na ponta da
língua, pronto a ser arremessado a todo aquele que por esses meandros não
enverede.
Ainda soam, estrepitosos, os bombardeios que dilaceram
carnes inocentes. Ainda se usa, diariamente, hora a hora, minuto a minuto, a
morte como moeda de troca por um pedaço de terra. Urinassem-no, aqui e acolá,
delimitando-lhe as fronteiras, tal como fazem os cães, e atacassem os
trespassadores à dentada, em vez de fazer jorrar o sangue de criaturas
inculpadas escudados pela bestialidade das religiões e da história. Ainda a
morte vitima em Gaza, ainda a fome dizima na Somália e morde em Portugal, e já
as cabecinhas ocas se focam nas mil e uma inutilidades que vão compor o fútil cenário
da quadra de todas as falsidades.
Já se fazem contas. Idiotas diplomados fazem estudos e
chegam a valores médios. Sossegam as massas. Olvidam-se indignações. A ocasião
que se aproxima requer pompa e circunstância, requer ofertas, mesas fartas. Enquanto
se atafulham os egos com objectos cuja utilidade se reduz a substituir auto-estimas,
valores e princípios inexistentes, e os estômagos com lautos manjares, os olhos
só vêem os fulgores do egoísmo, e as mentes, convenientemente embotadas, não se
aventuram para além dos círculos do supérfluo e do fútil.
Depois da quadra, voltam as indignações, fazem-se contas
outra vez, soltam-se imprecações contra a crise. Alojada nos cérebros de
ervilha, hibernando por agora, está já latente a quadra do próximo ano. Em
momentos fugazes, durante os meses que a antecedem, lá virão outra vez à memória
pensamentos incómodos acerca do mundo. Lá virão instantes em que os rostos se
compungirão com esta ou aquela desgraça, com esta ou aquela guerra, este ou
aquele flagelo. Mas só por instantes. Instantes que duram apenas o que tarda a
pronunciar palavras como “coitaditos”, “pobrezinhos”, “desgraçados”, na conversa social
do politicamente correcto.
Doze meses depois, repete-se o folclore, repete-se o ritual,
repete-se o fingimento. Volubilidades. Oxalá fosse também volúvel a estupidez,
mas essa, para mal dos nossos pecados, parece ser imutável e contínua…