segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Reflexo

Pensa-se que se é o que de si próprio se vê. Pensa-se que se é o nome que se tem. Ou a profissão que se tem. Ou a família que se tem. Ou a riqueza que se tem. Ou a pobreza. Pensa-se que se é o rosto, o corpo que se tem. Pensa-se que se é a imagem que de si próprio se vê reflectida no espelho.  

Pensa-se que se se mudar o que de si próprio se vê, se vai ser diferente. 

E pensa-se que o que se vê do outro é o que o outro é. 

Mas não é de todo assim. O reflexo da lua na água não é a lua. É a imagem dela. E uma imagem não tem qualidades, não tem essência, não tem profundidade. 

Portanto insisto nisto: que quando me olho no espelho, aquela que vejo reflectida não sou eu. Não sou, não senhor. Como poderia ser eu se aquela cara, aquela compleição, jamais me vêm à mente quando sinto, quando penso, quando olho, quando reflicto? Eu sou sem rosto, sem corpo. E a imagem que vejo reflectida no espelho é apenas a imagem que os outros têm de mim.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Borobudur

Gosto de pensar que a vida, no seu mais lato sentido, no seu todo, é como o templo de Borobudur!


Tido como um templo budista, Borobudur é, segundo a interpretação religiosa, um local de peregrinação, uma espécie de centro de formação para aqueles que querem atingir a iluminação.  

Ali, o peregrino inicia a sua longa e dura viagem no nível inferior. Percorrendo toda a sua extensão, vai tomando conhecimento das suas diversas características através dos factos relatados nos baixos-relevos com que se vai deparando. Não consegue ver os níveis superiores, nem sequer aquele que está imediatamente acima do seu. Nada há porém que o impeça, mediante o conhecimento que vai obtendo na caminhada, de os pressentir e de tentar até desenhá-los no seu pensamento, na sua imaginação. 

Chegado ao fim desse nível, o peregrino ascende então ao nível seguinte. Aí constata que não só continua a não poder ver os níveis seguintes, como também lhe é impossível ver o nível que acabou de deixar para trás. A viagem, aparentemente, é igual à anterior, situando-se as diferenças apenas na ampliação e refinamento do conhecimento e da consciência.  

Nível a nível, o peregrino vai fazendo o seu percurso ascendente. E sempre sem conseguir ver nem o superior nem o inferior. A sua consciência, constituída pela experiência obtida nos níveis inferiores, ao ser ampliada no nível seguinte é também depurada dos conteúdos supérfluos adquiridos no nível anterior.  

Uma vez chegado ao cimo, onde imponentes estupas contemplam, a partir de majestosa altitude, a natureza circundante, o peregrino terá atingido a iluminação após ter atravessado as três esferas da cosmologia budista representadas pelos diversos níveis: a do Desejo, a da Forma e a da Ausência de Forma. 

Na vida, e não me refiro aqui à sua acepção cronológica mas sim à sua qualidade intemporal e infinita, gosto de pensar que o homem passa por estádios idênticos. Num estádio inicial, digamos, colhe alguma experiência e adquire algum conhecimento, calcorreando caminhos árduos, procurando refúgio das agruras nos desejos e prazeres mundanos, totalmente afundado na massa grosseira e tosca da superficialidade e da materialidade. Assim atolado, não vê, tal como o peregrino em Borobudur, nenhum estádio superior. Mas pode, no seu íntimo, aperceber-se dele, vislumbrá-lo. 

É esse vislumbre que abre caminho para o estádio seguinte. Aí o homem sente a necessidade imperiosa de se libertar das paixões básicas, arrebatadas, que o cegam e que, contra a sua própria vontade, lhe ditam um rumo que já não quer tomar. Embora um pouco ainda como barco à deriva, e apoiando-se quase exclusivamente em estruturas materiais, ele luta já em resposta a um impulso interior que sente mas todavia não compreende. Pelo menos não totalmente. 

Esse impulso interior é a chave de acesso aos estádios seguintes. Apercebendo-se da enorme riqueza e profundidade do seu próprio ser, e começando a ter consciência de “o Todo em Tudo Sempre”, o homem liberta-se das amarras que o prendem à superficialidade, ao individualismo, ao mundo fenomenal.   

Consubstanciando-se, como éter no éter, do estupa no topo do topo, homem e divindade, feitos um, contemplam o eterno incomensurável.  

Gosto de pensar que assim é…

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Palha ou Sopa?

Se analisarmos, com profundidade e isenção, a aparente e estrepitosa barafunda económico-financeira a que nos habituaram a chamar “crise”, iremos por certo dar-nos conta das insidiosas maquinações que, nos bastidores, a fazem carburar, obviamente ao serviço e no soberano interesse dos seus criadores.  

Se não tomarmos cuidado, se não abrirmos bem os olhos – os da face e os da mente –, se não agirmos de moto próprio fazendo a destrinça sensata entre o que é essencial e o que é forjado, contrariamente às certezas de algumas mentes mentecaptas, a chamada crise não terminará, com toda a certeza, nem dentro de um ano nem nas próximas décadas. O que se manterá sim, incólume e com poder acrescido, será a monstruosa e ignóbil minoria regente e, por conseguinte, manter-se-ão também as crescentes dificuldades da maior parte da população mundial. 

Dizem que não há dinheiro, mas, no entanto, injectam-nos diariamente quantidades industriais de publicidade que, mais ou menos sub-repticiamente, incita ao consumismo. Não vemos, porém, nesse subtil incitamento, quaisquer referências a bens essenciais, pois não? E porquê? Porque é o supérfluo que alimenta a ganância dessa minoria asquerosa que rege o planeta. É essa minoria que dita as nossas pseudonecessidades! Todo o burro come palha, a questão é saber-lha dar! E é precisamente isto o que a maligna minoria no poder tem feito, faz e continuará a fazer. A menos que cada um faça a sua parte, claro está, e se recuse a comê-la. 

Enquanto muitas pessoas procuram já ajuda para as necessidades básicas da vida – comida, roupa e tecto – aquela repugnante minoria maquiavelicamente incute nas mentes fracas e sugestionáveis das massas um patamar de posses sem as quais, afirma, a vida não terá qualquer significado e será triste e miserável. Faz-lhes então acreditar que um determinado leque de bens é essencial à sobrevivência e à felicidade. E as massas acreditam.  

E tal como a rã, na água que gradualmente se vai aquecendo, não foge a uma morte certa devido à lenta adaptação a que é submetida, também as massas com algum poder aquisitivo não sentem a influência progressiva, e portanto a necessidade de saltar para fora desse lucrativo e macabro esquema, e também elas morrem – com os neurónios cozidos – para um discernimento sensato das intenções daquela maléfica minoria. Num ímpeto natural de imitação, de comparação e de competição, o indivíduo assim padronizado, consome sofregamente, e sem prévia reflexão, o que lhe é posto à frente dos olhos, com o objectivo de ser feliz, e de, sobretudo, ser igual ou melhor do que o seu parceiro do lado. Convém, evidentemente, à abominável minoria que se mantenha um elevado grau de ignorância. Corrobora essa conveniência a crescente involução dos processos educativos. 

E a um nível bem mais lamentável, o indivíduo pobre, aquele que realmente tem de lutar pela sobrevivência – e que constitui a grande maioria da população do planeta – tem a mente já per si programada, direccionada, única e exclusivamente, para a preservação da própria vida. Uma mente com preocupações a este nível não tem espaço para outras cogitações. Uma mente assim não questiona, não raciocina, não discerne e portanto, não riposta, não se opõe, não luta (eis a razão primordial pela qual não convém acabar com a fome no mundo!). E assim não perturba as bárbaras manobras de formatação levadas a cabo pela odiosa minoria. 

Eu não como palha. Gosto de me sentir livre. Por isso bastam-me uma sopa e uma mente desperta.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Silêncio e Solidão

Chegados os dias cinzentos e o desconforto de uma ventania ou chuvada assoma-se à alma um sentimento de melancolia e nasce uma tendência natural para o recolhimento. Não que não aconteça durante o resto do ano. Mas agora, com os frios e as neblinas e a vasta paleta da natureza quase reduzida a tons pardos, o convite ao recolhimento é mais apelativo e a inclinação bem mais profunda. 

Em pousio é como quero ficar. Quase em estado letárgico para quem me vê por fora e serenamente activa para quem me vê por dentro. Na solidão e no silêncio do meu ser quero descansar. E explorar, descobrir o novo.  

É que tudo muda. Tudo menos o lavrar do homem. Lavrou outrora assim, e qual jumento embezerrado, jamais experimentou lavrar assado. Lavrou sempre a mesma terra, cansando-a. Lavrou sempre da mesma maneira, ainda que mudasse o aspecto das alfaias. Colheu sempre o mesmo, porque semeou sempre o mesmo. Mudaram os tempos, as épocas. Passaram os anos, os séculos. E o homem a lavrar e a colher sempre da mesma maneira. Jamais permaneceu em pousio, nem a terra lavrada pelo homem, nem o homem lavrado pela terra. 

Porque não fica em pousio é que o homem é tonta e frivolamente activo por fora. Cruel e violentamente activo por fora. E por dentro, desoladamente hibernante, inconscientemente ignorante. Tristemente cego e surdo para uma eventual primavera que o possa despertar. 

E enquanto o homem persiste no contínuo e desenfreado aperfeiçoar das alfaias, no ridículo manter na moda das albardas e no obtuso impedir do descanso da terra, eu busco, no inverno, no terreno fértil da solidão e do silêncio, sementes novas que hei-de deitar à terra. Sementes que, na primavera,  germinarão na mudança que eu própria gerei, serenamente activa por dentro, quase letárgica por fora.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Presunção e água benta...

A autoridade, o poder, a prepotência, a vaidade, e outros conceitos afins, só têm valor na razão directa da importância que se lhes dá. Não se lhes dê nenhuma, e em breve serão conceitos perdidos na bruma dos tempos! 

O grande problema reside no facto de a maior parte das pessoas sentir, consciente ou inconscientemente, a necessidade de se vergar perante outras que crê melhores, superiores a si. Não existe ilusão maior! Experimentem não curvar-se perante os ares de importância de que alguns se tomam, e verão como se lhes desenfuna o ego, como desincham tão estabalhoada e deselegantemente qual balão furado! 

Se existem poderosos, fomos nós que lhes outorgámos o poder. Se existem vaidosos, fomos nós que lhes alimentámos a vaidade. Se existem a autoridade e o comando e a prepotência, fomos nós que os acatámos.

Só a atitude individual, sensata e ponderada, poderá gerar a mudança global. Em vez de fazer vénias, deixando perigosamente desprotegida uma determinada parte do corpo, ergamos o queixo e olhemos em frente, sem a mais mínima tentação sequer de desviar o olhar! Assim fazendo, surpreendidos veremos como ruem por terra os ímpetos de superioridade, os arranques de prepotência, os ataques de ditadura, as crises de autoridade e os arrotos de poder!

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Nascimento e Morte – Uma Mesma Natureza?

“Sendo certo que tudo está no Todo,
não é menos certo que o Todo está em todas as coisas.”

O Kybalion


A morte sempre suscitou curiosidade e sempre se tem tentado indagar sobre ela. Têm-se forjado ao longo dos tempos todos os géneros de teorias. Meras especulações contudo. Dela ninguém jamais regressou para dar conta da sua existência e natureza. 

Consigo entender, até certo ponto, que ela cause curiosidade, temor. Depois de vivida uma vida, não importa durante quanto tempo, surgirá sempre uma apoquentação, mais ou menos intensa, advinda do (quase) natural sentido de posse do ser humano. A perspectiva de se deixar para trás aqueles e aquilo que, toda a vida, se trataram como uma posse – não importa se material, se afectiva –, que possivelmente se chegaram até a confundir com o próprio eu, pinta de crueldade e medo qualquer imagem que se possa construir da morte e do estado pós-morte. Tenho para mim que são estes – o sentido de posse e por conseguinte o sentido de perda – os factores cruciais e motrizes para a busca ad eternum de uma explicação, conveniente diga-se de passagem, para a morte. 

Mas o verdadeiro busílis da questão colocada em título reside no seguinte: porque é que o nascimento não suscita a mesma curiosidade? Será que também aqui são determinantes os factores de sentido de posse e de perda? Porque afinal, quando se nasce, nasce-se sem nada.  

Questionei sobre o assunto várias pessoas. As respostas obtidas parecem ir no sentido de que o nascimento não importa – é indiferente de onde se provém, a partir do que é que se nasce – mas importa, e muito, a morte. Surpreendentemente, ou não, não obtive respostas firmes quanto à razão de assim se pensar. Leva-me tal a deduzir que estas questões não foram nunca antes ponderadas, e a concluir que, para os meus entrevistados, o rótulo de avis rara me assentaria que nem luva.  

De que me rotulariam então, se eu lhes dissesse que nascimento e morte são da mesma natureza? Que a diferença que aparentemente os distingue só existe se para eles se olhar através do véu do apego? Se eu lhes dissesse que o que são ao nascer é o que são ao morrer? Que a única diferença, intangível e imensurável, reside no aumento progressivo da consciência durante o tempo que permeia o nascer e o morrer? E que essa mesma consciência poderá ser o tecido primordial do universo? 

Se nasci para esta existência, morri para algo anterior. Se morri para esta existência, nasci para algo posterior. Trata-se apenas de um processo, um continuum espaço-tempo.
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